– por Fábio Gonçalves
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“Proverbs of Hell:
[…]The lust of the goat is the bounty of God”.
(William Blake)
C’est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
Chaque jour vers l’Enfer nous descendons d’un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.
(Charles Baudelaire)
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— Muita gente descrê da existência do diabo, e dentre os crédulos, a maior parte dúvida que seja ele capaz de se fazer matéria ou de assenhorar-se dum corpo para agir neste mundo.
Dizia isto o velho padre Gonzaga a um seminarista que foi procurá-lo com angústias de fé:
— De Descartes a Freud, meu filho, a ciência foi diluindo na imaginação dos homens a ideia tradicional do diabo. Reduziu-o — quando não a crendice irracionalista —, ao destempero dos humores, a certas tensões nervosas, a esgarçamentos ou manchas no tecido cerebral. As explicações progrediram, na verdade, ao ponto de aquilo que ainda se admitia, há um século, como influência maligna, embora de causa natural, ter se convertido, quer no discurso público, quer na arte mais difundida, em energias positivas e superiores do homem, energias — alegam os profetas de satanás —, que a religião, o decoro aristocrático ou moralismo burguês, num acordo tácito e secular, sempre conseguiram reprimir.
Daí que hoje o diabo sugira a uma garota que se toque diante de uma câmera, a fim de atiçar a concupiscência dos luxuriosos e arrancar deles alguns elogios e trocados, e ela o faça, com a mesma obediência e felicidade de uma Santa Joana atendendo aos comandos divinos. O mesmo se dá com o preguiçoso, com o narcisista, com o corrupto, com o assassino, com o blasfemo. O diabo passou séculos tirando partido da incredulidade; hoje — persignou-se — fizeram-no deus e sua igreja conta com um soberbo cabedal de fiéis e apóstolos.
Como seja, creio que você — já que ainda não frequentou a filosofia —, esteja no número dos que acreditam no diabo, mas julgam impossível sua materialização na esfera terrestre. Veja nas Escrituras: o Tentador não se fez Serpente e falou à mulher com a fina retórica dos homens? Sodoma não pereceu ao fio da espada dos anjos, criaturas que repartem com os demônios a mesmíssima natureza? Cristo, no Deserto, não recusou o pão e o cetro das mãos de Satanás? O mesmo Jesus não esconjurou os espíritos imundos do geraseno, e eles não saltaram nos porcos, que, segundo o evangelista, de possuídos desabalaram penhasco abaixo?
Sim, entendo sua cara e leio nela o seu argumento: a tudo isso cabe a exegese do símbolo, quando não a da simples alegoria, e por isso suspeitei que para convencê-lo talvez não bastasse a Palavra de Deus. Conforme o gosto da época, ouçamos o que o próprio diabo diz dessa matéria, ou melhor: como ele mesmo narra uma de suas epifanias.
Vê esse livro? É do Senador e Ministro Givaldo Alves. Creio que você não recorde a sua história, o Senador que sumiu no mar. A obra é uma autobiografia em que ele conta o porquê e como chegou a tão altos postos da República; também nela, a exemplo de Moisés, profetiza miudamente a própria morte. Como de regra, quase ninguém leu, embora chegasse a best-seller. E quem leu, tomou as revelações do autor por pilhéria, seja porque ele era mesmo afeito a irreverências, seja porque somos nós também irreverentes e não damos nada por sério — eis mais um triunfo do coisa-ruim.
Pois li e meditei nesse escrito, que julgo o mais importante em muitos e muitos séculos. Vou resumi-lo.
Givaldo afirma ser ele o próprio capeta, o diabo em pessoa. Ri? Tudo bem, concedo que nos nossos tempos tenha algo de cômico numa declaração dessas, coisa que já disseram, para fazer graça, no cinema, em stand-ups, em talk shows, na pop music. Mas a legião falsa, esta que faz rir, é a fantasia carnavalesca que disfarça a verdadeira — e esta, promotora de tormentos e tragédias, não pode nos provocar senão o mais amargo choro. Escuta; depois julgue.
O Senador abre o volume se dizendo o demônio. Segundo ele, enfastiado do mal corriqueiro que nos fazia, apostou com um outro seu igual que nosso país já estava tão aberto a recebê-lo como senhor que para isso nem precisaria apelar aos disfarces tradicionais: 0 de humanista, o de guerreiro, o de sábio. Não viria sequer belo. Tampouco imitaria os populistas, emulando simplicidade nos gostos e alguma selvageria nos trejeitos — para, à força da semelhança, conquistar a empatia da massa. Eis o seu advento:
Uma jovem belíssima, segundo o conceito moderno, e sinceramente cristã, malgrado a indiscrição com que se exibia nas ruas e na internet, andava a cata de fazer uma caridade penitencial, no centro da cidade em que vivia com seu marido e sua filha, e achou a oportunidade num mendigo, o mais feio, chagado e malcheiroso que entreviu, sob manta de papelão, diante da Igreja Matriz. Foram forças sutis que a levaram até aquele ponto, pois o mendigo era justamente o demônio, que aparecera ali, na véspera, dando-se a conhecer como Givaldo.
O diabo explica a escolha do nome numa nota de rodapé:
“Valdo é radical que se junta a muitos nomes portugueses. A origem é gótica, weald, vald, e o sentido é ‘força’, ‘poder’, ‘governo’. Gi é contração de Gil. Este nome, por sua vez, deriva do latim Aigis, ‘pele de bode’. Givaldo é: O Bode que Governa”.
Ninguém deu o menor crédito. Acharam graça e aplaudiram-lhe a engenhosidade. Voltemos à história.
Acordou-o a beldade piedosa. Vinha ela equilibrada num salto e metida num vestido florido que revelava o torneado dos músculos diligentemente esculpidos na academia em que trabalhava o marido. Seus cabelos, castanhos com mechas louras, escondiam-se sob um véu negro de fina renda. De suas mãos pendia um rosário. À sua passagem, o cheiro rançoso e nauseante da gente sem banho cedia a um perfume fresco e doce, réplica de uma fragrância francesa. Ela trazia consigo uma Bíblia. Gostaria de presentear um desenganado com o Santo Livro, Deus lhe mostraria o abençoado. Era essa a bondade que saiu de casa determinada a fazer — como para redimir-se de um pecado que sequer descera do pensamento ao ato.
Givaldo recebeu o volume muito agradecido, com caretas de comoção, logo convertidas em lágrimas. Era um homem alto e corpulento, de pele tisnada, o rosto sulcado do sol, os dentes desfalcados, a barba desgrenhada, os cabelos desbotados e sebosos. Nem mais bonito nem mais feio que os mendigos que topamos por aí. Senão pelo olhar. Seus olhos eram de um castanho muito claro, algo lupinos. Eram chamativos e enigmáticos, sedutores a muitas mulheres, essas curiosas por natureza e admiradoras daquilo que não podem dominar. Pois foi trocarem um olhar mais demorado para se operar no espírito da moça a mais completa revolução. Passou a ver naquele andrajo um galã; nos seus gestos grotescos, finura e cortesia; no seu bafo mefítico e alcóolico, o cheiro silvestre da hortelã. Ela encarava o homem com olhos patéticos. Seu peito ondeava, a respiração descomedia, um calor insuportável a impelia à imediata nudez. Dali um pouco, ele pediu:
— Me dá um beijo, dona.
E ela deu. Os mendigos do arredor assistiram àquilo boquiabertos, coçando olhos, praguejando as cachaças e os alucinógenos. A bonitona beijava gulosamente aquela fera, beijava com sanha pornográfica. Dali um pouco, o homem desvencilhou-se e propôs qualquer coisa no ouvido da jovem. Ela o soltou a custo e acedeu ao seu comando. Foram para o carro dela e dali partiram a uma rua discreta. Entrava a noite.
Nesse ínterim o marido deu por falta da mulher. Há muitas horas ela não o atendia, não lia suas mensagens. Assaltado por um bando de considerações perversas e maliciosas, foi procurá-la no bairro; bicando informações, entrevistando testemunhas, formulou um juízo atemorizante: sua amada teria caído nas mãos de um psicopata estuprador. Redobraram-se as buscas. Empregou amigos e parentes na missão. A polícia fora avisada e até se cogitou levar o sumiço à imprensa local. Não houve tempo: o marido, também conduzido pelas forças sutis, achou o carro da mulher estacionado aos pés de uma macieira. Atirou-se ao veículo como um desesperado. Piscava-lhe na mente imagens cruéis, o corpo dilacerado, sangueira, o rosto lindo da esposa escondido sob a fria máscara da morte. Mas um fato tratou de borrar essas impressões fúnebres: chegando mais perto, notou que o carro movimentava-se num ritmo desonesto; que molas e pessoas gemiam compassada e gostosamente. O homem nada mais cogitou, nada mais viu, tornou-se pura ação, animada pela quentura do sangue, pela febre do ciúme e do despeito. Socou o vidro do carr0 de mãos limpas e não sentiu o ardido dos talhos. Sacodiu, chutou, pulou no capô, bradou palavrões. A luz se acendeu e revelou o vulto nu da mulher desmaiada de prazer nos braços do outro. De furioso, logrou quebrar um dos vidros e venceu abrir uma das portas. A mulher, no lusco-fusco do delírio, mal o viu, terminou de desmaiar. O mendigo quis escapar, mas foi derrubado pelo traído e recebeu dele as mais indignadas pancadas. O marido viu pelo aspecto tratar-se de um mendigo: quase caiu louco. Intensificou o festival de murros e pontapés enquanto esperava as viaturas e os familiares. Semimorto no meio-fio, o diabo, com dentes a menos, ria, ria de si para si.
Alguns alegaram azar, mas as revelações do satã afirmam que foi tudo maquinado: o vídeo do espancamento, gravado por uma câmera pública, foi lançado nas redes sociais, e todo o país, no espaço de poucas horas, não falava em outra coisa senão no personal trainer que perdera a mulher para um mendigo. E vai nisso um sinal da saúde dos nossos tempos: não houve um sussurro de solidariedade ao humilhado; só berros e gargalhadas de escárnio. Sua imagem virou tema das mais sádicas piadas; suas capacidades como homem e marido viraram artigo de discussões debochadas e cínicas; sua vida foi devassada pelos programas de fofoca; o seu infortúnio virou letra de funkeiros e sertanejos. Na boca do povo, ele era o maior chifrudo de todos os tempos. Na inversa proporção, seu rival era um bem-aventurado, um conquistador. Só a situação da mulher admitia conjecturas mais plurais: havia as admiradoras, que entendiam nesse lance exótico um grito pela liberdade feminina; havia as mulheres que reprovavam por ojeriza, outras que reprovavam por escrúpulos; havia por fim aqueles, mais prudentes, que tentavam adivinhar as causas de uma tal aventura em distúrbios cerebrais. E esta ficou sendo a opinião vencedora. Um próprio depoimento privado da moça, mais tarde divulgado ao curioso público, somado a laudos da equipe de psiquiatras que a investigaram largamente, confirmaram que ela fora vítima de um surto psicótico raro.
Repara, meu jovem, que não entrou na cogitação geral a hipótese de ela ter sido vítima dos encantos da Velha Serpente. Nem a Igreja aventou essa possibilidade. Do fato, poderíamos ter tirado catequese e homília, mas os padres tiveram medo de entrar na conta de supersticiosos, de medievais, de inocentes. E note que a conclusão suspostamente científica se manteve inabalada e talvez ainda mais firme depois de o diabo afirmar, em papel impresso, que fora ele próprio quem urdira, fio a fio, essa trama dantesca.
A maledicência acendeu os brios do marido e ele convocou a imprensa para prestar esclarecimentos. Sem conquistar com isso nenhum aplauso, nenhum incentivo, defendeu muito galhardamente a honra da mulher; disse se tratar de mãe dedicada, de esposa honesta. Explicou, conforme orientação médica, que a companheira estava internada numa clínica, ainda sob o jugo da loucura, e ajuizou que era tremenda crueldade fazer tão má fama, por meios tão pérfidos, e com tamanha obstinação, de uma pobre doente. Creio ter sido jogada do demônio: a coletiva surtiu efeito simetricamente contrário: viram aí a chance de chamá-lo corno manso. Pior: justificou jornais e tevês a buscarem também a versão do mendigo. O causo elevou-se a disputa digna de nossa ágora, a julgamento digno de nosso areópago.
Começou aí a ascensão do mendigo. Ele apareceu, de primeiro, num desses tabloides de mexericos. Estava ainda desfigurado da surra, mas com bom ânimo, com serenidade incomum, com alguma altivez na pose e na voz. Logo na primeira resposta — e isso também o diabo o revela — ele tratou de fazer troça com o povo, misturando uma prosódia clara, um tom confiante e um vocabulário rico, a um conteúdo sem pé nem cabeça, borboleteando entre o assunto mesmo, o sexo com a bonitona, e questões geopolíticas, teorias da conspiração, anedotas da vida andarilha, o que lhe viesse à cabeça. Como, porém, dissesse tudo com muita firmeza e desembaraço, o impacto foi: “olha só, o mendigo é inteligente”; “viu como ele fala bem?”. Naquele dia, os mais astutos já cravavam seu sucesso na política. Era líquido.
A longa entrevista seguiu nesse descompasso entre forma e conteúdo. Digo, quase toda. Em certos momentos, e esses foram os marcantes, o demônio adequou o estilo à narração, e isso para contar, num detalhismo escandaloso, a porcaria que se passara entre ele e a mulher no automóvel. Suas palavras e feições engendravam na mente do espectador sucessivas imagens de um erotismo bestial. E ele dizia essas partes com um fulgor nos olhos, com um sorriso de fauno, sugando saliva. Fato é que a opinião pública, após dois ou três esgares de despeito, perdoou-lhe o estilo, justificou-o pela condição do orador, culpou, antes, a sociedade desigual. E com a mesma gula de tragédia, o país seguiu banqueteando.
A aparição consolidou-o como celebridade popular. Reunia milhões de seguidores virtuais — de maioria feminina —, apinhava gente em praças e em shoppings, assinava autógrafos e batia fotos mesmo com crianças, fazia presença especial em festas da elite paulistana, mineira e carioca. Marcas disputaram a agenda do homem para campanhas publicitárias, e não tardou a estar o sorriso mefistofélico do mendigo estampando ônibus e outdoors. Um rapaz influente e rico, buscando com isso mais dinheiro e fama, resolveu dar ao mendigo um apartamento luxuoso em bairro nobre do Rio de Janeiro. Num clássico entre Flamengo e Corinthians, no Maracanã, o telão estampou sua imagem e as duas torcidas, num coro ineditamente uníssono, cantaram: “Mendigo, Mendigo, Mendigo”. E o mais impressionante: toda essa idolatria foi espontânea. Nem o demônio protagonista nem nenhum coadjuvante titereavam as massas com barbantes sobrenaturais. O inferno, de queixo caído, foi dando razão a Givaldo.
Cumprindo sua palavra, ele não se usou de artifícios sedutores para dominar a multidão. Não fez filantropia, nem a amigos nem a parentes, não levantou nenhuma bandeira social, não quis fazer figura de humilde. Pelo contrário: esbanjava, se deixava fotografar comendo bem e viajando melhor; rodeavam-no jovens lindíssimas, bajuladas com bolsas e colares; respondia os fãs com arrogância, até com sadismo, tirando sarro da má vida que levavam, acusando-os de serem fracos, limitados, de visão estreita, incapazes de chegar ao topo como ele. A certa altura, lançou um curso de conquista amorosa, A Arte da Sedução. Calculam que tenha feito em dez horas a fortuna que o proletário brasileiro não juntaria nem em dez vidas.
Se ele atraia invejosos? Certamente, mas estes não se atreviam a dispensar veneno em público, temerosos da virulência dos fãs. Se alguém lhe fazia oposição aberta? Alguns pentecostais mais antigos, católicos tradicionalistas, alguns espíritas, e principalmente os civilistas, os cidadãos que nos anos setenta cantavam o hino no pátio da escola e tomavam aula de moral e cidadania com base na cartilha do quartel. Estes não se intimidavam, diziam de peito aberto que ganhar a vida com vagabundagem e pouca vergonha era indecente. E fez-se até um movimento político, com marcha nas ruas, em prol de uma nova decência nacional.
Mas o diabo é astuto. Atacava de antemão os invejosos, acusando-os daquilo que realmente eram, e troçava dos religiosos, chamando-os de hipócritas, mostrando que partilhavam dos mesmos pecados: eles praticando-os sob o véu encardido do escrúpulo; ele, de cara limpa e peito estufado. Quanto aos civilistas, domou-os num discurso de amor à pátria e numa insinuação de apoio ao candidato conservador. E isso o catapultou à política — um outro sucesso sem o concurso de qualquer malandragem metafísica.
Um site direitista publicou artigo que defendia a candidatura de Givaldo à Casa Baixa. Apelou-se ao pragmatismo, à realpolitik. Era amainar os julgamentos de ordem moral e sobrelevar suas capacidades práticas. Que ele levasse a vida que bem entendesse. Não éramos seus pais, seus filhos, não éramos a sua consciência. Que Deus o julgasse. Importava, dizia o texto, que ele estivesse do lado certo — e, segundo o portal, já estava. Converteram-no, com efeito, de libertino em liberal; de aproveitador em self-made man; de desregrado em antissistema; de cruel e orgulhoso em autêntico. O homem saíra do lixo e se fizera rico, empresário, professor. Condená-lo pelos pormenores eróticos de uma história que ele sequer quisera protagonizar, seria leviandade; numa palavra: indecência.
Tudo aconteceu no espaço de seis meses. O demônio Givaldo conquistara fama de sábio entre seus coirmãos. O país estava mesmo no seu papo; quisesse, investisse, fariam-no presidente no pleito do mesmo ano. Aliás, agremiações de todos os espectros aliciaram-no para tal empreitada. Analistas enxergavam-no como fiel da balança, como peça fundamental no tabuleiro: para onde ele pendesse, estaria a vitória; o movimento que ele fizesse, determinaria o xeque-mate. Venceu a disputa uma legenda do centro. Satisfizeram-se a direita e a esquerda.
Os caciques do partido ofereceram-lhe uma campanha nababesca para a chefia da República; os marqueteiros, ele escreveu, já estavam com o jingle na ponta da língua. Mas o demônio recusou soberbamente. Disse que queria o Senado, a Casa Alta. Ali, o Templo dos Anciãos, era onde se assentavam os representantes mais perfeitos do povo. A presidência que ele aceitaria, presidência digna do seu nome, era a desta Câmara Superior — simbolizada, conforme o gosto de Niemeyer, pela concha fechada aos céus.
Foi a maior votação da história. Ele chegou ao Senado com o prestígio de um Júlio César após o Cerco de Alésia. Vencendo tímida oposição, conquistou, logo na primeira semana, a presidência da Casa. Triunfara.
Daí lhe voltou o enfado. Os discursos, as votações, os bajuladores, as reuniões secretas, as ameaças nacionais e internacionais, as prostitutas, tudo isso foi chateando o diabo. Tentou novos ares aceitando o posto de Ministro da Cultura, onde ficou seis meses. Depois foi solicitado na pasta da Cidadania: mais seis meses de burocracia insuportável.
Desceu ao submundo para pedir baixa. Como houvesse provado e ratificado sua tese, e como conquistasse aquela vitória honorável com fantasia tão grotesca e desvantajosa, conseguiu dispensa de seus imediatos e arquitetou uma retirada simples, mas travessa: simulou um desaparecimento nas águas da Praia de Ipanema. E note: ele revelou no seu livro, publicado um mês antes, que faria exatamente isso: sendo um demônio cansado de Brasília e do Brasil, “sairia de cena para entrar para história”, fingindo-se morto por afogamento, fugindo daqui para uma terra distante e inacessível aos mortais.
Em vão. Mesmo críticos e opositores choraram sinceramente a sua morte. Ainda jovem, rico, poderoso, no auge da vida, desfrutando todos os sabores do mundo. Morte trágica, morte injusta. Quiseram achar o corpo para desfilá-lo em carro aberto, com as pompas merecidas, mas as buscas cessaram no terceiro mês. Artistas lhe dedicaram canções, estádios lhe respeitaram com rara piedade o minuto de silêncio, os programas de tevê relembraram sua trajetória gloriosa, cineastas projetaram sua cinebiografia. Pelas circunstâncias, claro, formularam-se mil e uma hipóteses sobre a sua morte: assassinato político, vingança de algum desafeto, que eram muitos. Também se especulou sobre sua vida: estaria numa ilha das delícias, debochando de todos. Os mais fanáticos apoiadores, adeptos desta última teoria, cogitaram um retorno prodigioso. Ele teria compreendido a engrenagem da nossa sociedade e voltaria, em breve, arrasador, seja com as ferramentas para restaurar a velha máquina, seja com o desenho e as peças para construir uma nova. Aliás, cresce o número dos que sonham com essa reviravolta escatológica. Especialistas chamam o movimento de givaldismo. Eis como o demônio narra a sua história.
Fez-se silêncio na sacristia. Como o jovem, meditativo, não se animava a falar, perguntou-lhe o padre:
— E então, meu filho, ainda duvida que os demônios possam assumir contornos humanos e agir deliberadamente neste mundo?
— E Deus, padre, por que permite?
O velho, cavando na memória, achou uma sentença que julgou digna na forma e sutil no conteúdo:
— Menino, um homem não pode escolher o seu pai; mas Deus fez os povos livres para escolher os seus reis.
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Fábio Gonçalves é professor de Linguagem e autor da novela Um Milagre em Paraisópolis e da coletânea de contos O Retrato Doente, além do romance inédito Peroba, vencedor do Prêmio 200 Anos da Independência, da Secretaria da Cultura.