– por Gabriel Coelho
Tão logo o vi, desviei o olhar. Ergui o pulso, fingi conferir as horas. Até acelerei o passo, para transparecer ar de pressa, tamanha a ponto de me tirar a atenção do mais ao redor. Fiz que passei despercebido, sem notá-lo sentado ao chão, a mão erguida. Sem ouvir-lhe o rogo por esmolas, “– dez centavos, senhor”.
Horas depois, refazendo o itinerário em regresso, dei com ele naquele mesmo ponto. “Ainda não me viu, vai já, já pedir algo”. Antecipei-me: acelerei o passo, voltei o rosto na direção oposta, conferindo a movimentação dos carros, preparando-me para cruzar a pista. Certamente deve ele ter imaginado que eu o não vira, e que por isso não reagira à súplica para que o ajudasse a minar a fome daquele fim de tarde. Talvez tenha até pensado que eu julgara, desatento e apressado, ter ele se dirigido a uma outra pessoa específica. Ou até a ninguém em particular, antes esperando ser acolhido por quem viesse a acatar o pedido lançado a esmo. Mas vacilei um instante e voltei-lhe a vista. Nossos olhares se cruzaram, desviei rápido. Ele olhava direto para mim, falava a mim e a mais ninguém. Corri para travessar a rua.
Na manhã do dia seguinte, em tomando o mesmo caminho, de novo o transtorno, de novo a dissimulação. “Ele não sai daqui?” Na hora de retorno, sabia que o encontraria lá de novo. Não queria vê-lo outra vez, ter todo aquele trabalho outra vez. “Toda hora me vai pedir dinheiro”. Então quando cheguei na esquina que me levaria ao encontro dele, optei por dar a volta no quarteirão. Andaria mais, é certo, mas o evitaria. Não teria que vê-lo de novo. Aquela presença me incomodava. Quando terminei o perímetro, estava aliviado.
No dia posterior lancei mão da mesma estratégia. “Ele deve estar lá”. Evitei até olhar na direção em que ele estaria, vai que ele estivesse me olhando. Tomei o caminho para contornar o quarteirão. “Será que ele me viu?”, ia pensando. “E se tiver visto? Será que teria estranhado me ver indo por outro caminho?”.
“Ontem ele me viu na ida e não me viu na volta”, tomei a direita ao fim da rua. “Será que estranhou?”, metade do caminho. “Besteira. Nem deve ter me reconhecido. Quantos não passam por ele ao longo do dia, pra quantos não faz o pedido por esmolas?” Tomei a última direita. “Mas naquela vez me olhou tão diretamente…” O passo desacelerava progressivamente enquanto eu ia imerso em pensamentos.
Talvez aquele homem soubesse quem eu era. Não que me conhecesse pessoalmente. Mas talvez me reconhecesse como alguém em particular. O homem que passa ali no início da manhã e no fim da tarde, o perfil que ele identifica se aproximando, a quem ele ergue a vista da altura do chão, para quem ele suspende a mão, e por quem é sempre ignorado.
– Você sabe quem eu sou? – poderia me perguntar.
– Não.
– Eu sei quem você é.
– Quem eu sou?
– Você é o que sempre me ignora.
“Que vergonha, meu Deus!”
Eu precisava vê-lo, precisava me reparar com ele. Em vez de seguir meu rumo, permaneci no perímetro do quarteirão. Iria dar a volta completa, até chegar naquele ponto. Lá me repararia. Retomei o passo, apressado. Assim que tomasse a próxima esquina, eu o veria naquele mesmo ponto, sentado. Então correria direto até ele. Ele certamente me veria, e saberia que eu estava ali por ele.
“Desculpa, senhor. Eu o vi todas as vezes. Do que o senhor precisa? Ainda tem fome?”, tudo isso lhe diria. Mas quando enfim virei a esquina, o homem não estava lá.
Mais tarde, na hora do regresso, imaginei que o encontraria. Afinal seria o horário de sempre. Aquilo de mais cedo talvez fora só um desencontro. Talvez alguém lhe tenha dado algum trocado com o qual ele fora comer. “Agora ele vai estar lá.” Mas não o encontrei. Tampouco na manhã do dia seguinte.
No fim da tarde, decidi mudar o percurso. “Talvez ele tenha apenas mudado de ponto.” Enveredei por outras ruas, afastei-me consideravelmente do itinerário mais curto da minha lida diária. Adentrei vielas. E nada dele.
Na manhã do dia seguinte, a mesma tentativa. Em vez do caminho de sempre, tomei rotas alternativas. Ia e voltava, perambulando. Mas tinha pressa. Conferia as horas no relógio do pulso. “Não posso me atrasar. À tarde retomo a busca”. Tomei meu rumo.
A busca da tarde, mais prolongada, não deu em nada. Já estava cansado! Caminhava fatigado, vagaroso, pensativo, rumo ao meu destino. Em cada canto eu buscava aquele corpo sentado ao chão, em cada rosto eu procurava seu semblante. “Será difícil reencontrá-lo”, divagava. “O homem não tem compromissos com locais e horários. Pode estar em qualquer lugar, até bem longe daqui.” Andava assim, com a cabeça longe, decepcionado.
– Uma moeda, senhor!
Arrebatou-me dos devaneios essa súplica. Contive o passo. Não vira que passava por essa mulher sentada ao chão. A essa hora da tarde devia estar com fome. Aquele senhor talvez também esteja. Na verdade, ela devia estar com fome sempre. E ele também. Agachei-me diante dela e entreguei algumas notas.
Nos dias subseqüentes estava de volta à normalidade da minha rotina. Não traçava rotas alternativas, nem andava à procura dele. Mas me lembrava imediatamente da sua pessoa quando cruzava com alguém em estado semelhante, quando me deparava com alguém numa situação em que ele talvez também pudesse estar.