O Efêmero Anônimo

— por João Filho

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À memória do professor Antônio Barbosa, que me contou essa história.

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A cidade, a rua e o quarto são pobres e, os paramentos católicos para um fim minimamente digno, também. No cômodo apenas os dois, pois a velha Tia dispensou a presença da irmã e das sobrinhas, permitiu somente que ali ficasse o seu sobrinho. O moleque mestiço, magro e cabeçudo, não só olhos, mas o corpo todo arregalado, mira sem entender aquela resignação que, no início da velhice, preparou o seu próprio funeral. 

Pobre e perdida pelo interior sem fim do país, a cidade não possui iluminação pública, a rua está deserta e é sem calçamento. É noite alta, de uma secura quente, ventania sem véspera de tempestade, comum a esta região de planícies largas e estios longos. 

No quarto quase sem mobília, com o leito a um canto, bruxuleia uma vela sobre o tamborete que serve de cômoda. 

A velha Tia é ossuda, empertigada, e não saberia dizer se rememora sua vida ou apenas se resigna. Talvez rememore. 

Com o olhar estupidificado de quem se atenta impotente para o drama da morte e quase inconscientemente se dá conta disso, o moleque está imóvel; no silêncio do quarto, as paredes sujas parecem escutar seu coraçãozinho. Um barulho — o vento no telhado? Um rato? — muda sua atenção sem desviar seu olhar do corpo estendido, e ele repassa de cor o chão de terra batida, a cama de vara, sobe até o sebo derretido da vela, vai pelas paredes de taipa, não demora no teto e desce brusco para um bafejo mais forte da velha Tia. Nela, novamente, se concentra. 

Sua palidez de mestiça moribunda agora é mais densa. Ela contrai o corpo como se numa câimbra completa, o ricto é mais duro, parece ser o último respiro e… Sem alívio se afrouxa inteira e resmunga: 

— Não foi dessa vez.

O moleque sai da imobilidade, se achega mais ao leito e escuta a velha Tia balbuciar, talvez delirando, sua meninice profunda.          

— Água no embornal de couro, no lombo do burrinho…

Entre uma frase e outra um mosquito zumbe.

— O rio… 89 foi ano de enchente. Água muita e muita fome.  

É intermitente o frêmito de morte que roça a velha Tia e a faz se esticar nessa espera resignada. Respira… Relaxa… E deixa escapar dos lábios murchos: 

— Não foi dessa vez. 

A atenção do moleque já não gira pelo quarto e se fixa na velha Tia. Sua memória vai-se vincando profundamente por essa estranha coragem diante do fim. Sua mãe e as duas irmãzinhas, em silêncio aflito no cômodo ao lado, persignam-se quando escutam um suspiro mais forte, mas não alcançam o:

   — Não foi dessa vez. 

O tempo se agiganta. O espaço encolhe.  

O vento traz atenuados latidos, pios, sibilos, estalos, rumores indistintos… A velha Tia parece serenar-se enquanto monologa:

— Depois da noite chuvosa, manhãzinha, mamãe foi pro eito, coei fedegoso e fiquei cuidando de Orozino naquele dia. O bichinho ‘tava com fraqueza, devia de ser de fome. Papai não aparecia desde que Orozino tinha nascido. 

O moleque formulou, mas não disse “— quem, Tia?” Desconhecia os nomes murmurados. Apesar da fragilidade magrela, da janta rala de muitas horas antes, da lembrança de fome sussurrada pela Tia, o moleque é pavor concentrado. 

Súbito, ela, num esforço último, lhe agarra a mão, num instante suspenso em que os dois se travam:

— Não foi dessa vez.  

Sua mãe e as duas irmãs saem do mutismo angustiante e circulam pelo cômodo vizinho, arrastam sandálias, cochicham. A irmã mais alta vai até ao fogão de lenha, mexe e remexe atrás de qualquer raspa comível, derruba utensílios. Barulhos que agora chamam a atenção do moleque e ele sente no corpo a tensão das horas de expectativa fúnebre, a penúria de sua infância, e quer se largar num choro convulso sem peias. Levanta-se! Põe a mão na tramela da porta do quarto, mas volta para pegar a vela, se aproxima do corpo quieto demais e se dá conta de que sua velha Tia morreu.     

João Filho é um poeta e contista nascido na Bahia. Entre seus livros já publicados constam diversos livros de contos como Encarniçado (Editora Baleia, 2004); Ao longo da linha amarela(P55 Edições, 2009), e também de poesia, como A dimensão necessária(Mondrongo, 2014, livro que recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional), Auto da Romaria (Mondrongo, 2017) e Um sol de bolso (Mondrongo, 2020). Além de diversas colaborações em publicações nacionais e de livros de outros gêneros, como crônica e teatro.