– por Christiano Galvão
*Texto originalmente publicado como prefácio em: Milton Gustavo, ‘Deus Oculto no Canto do Córner’, Curitiba: Editora Danúbio, 2023.
Descobrir um deus oculto no canto do corner pode ser tão espantoso quanto descobrir no boxe o motivo para uma obra literária absolutamente excepcional. Tal é o caso destas memórias que, embora ficcionais, são todas feitas daquelas verdades e ironias que somente os escritores prontos sabem manejar. E tal é o caso de Milton Gustavo que, já pronto, aqui estreia mostrando não ser comum nem de todos os dias este balanço igual e cabal entre violência e arte.
Mas converter a truculência do boxe em literatura de primeira linha não é, como se verá, o único nem o mais notável talento deste escritor. Um amálgama entre fenômenos tão contrastantes só pode ser obtido pela força da poesia ou da sátira. Com efeito, sendo capaz de escrever bem o bastante para nos fazer rir, e até mesmo gargalhar, Milton Gustavo se valeu da segunda, mostrando um talento satírico não só vigoroso, mas, sobretudo, corajoso.
A coragem, tanto quanto a ironia, é um atributo essencial do satirista. Nisso estavam de acordo Cervantes, Nietzsche e Ariano Suassuna, que também enxergavam na sátira uma modalidade de combate – aliás, muito mais antiga do que o boxe. Porém, não é somente por tais afinidades que a coragem se faz necessária. Desde a virada do milênio, quando as suscetibilidades se exacerbaram a ponto de quase esclerosar o senso de humor nas democracias ocidentais, a sátira, em suas mais diversas expressões, vem sendo inibida, frustrada e tolhida por restrições cada vez mais intransigentes – e que, se assim persistir, acabarão por tipificá-la como um crime. Verdade é que esta arte, cujo elemento natural é a irreverência, sempre padeceu com censores. Mas a censura de antes era apenas moralista, tola, e obrigava à sutileza; enquanto a censura de agora é ressentida, sonsa, e obriga ao desacato. Neste sentido, o autor deste romance, como dito antes, tem o talento necessário para corajosamente cometer os mais sutilíssimos desacatos.
Para tanto, ele concede irrestritamente a palavra a um narrador cuja sinceridade não é menos mordaz, descarada e hilária que a do Humbert Humbert, de Nabokov, ou do Brás Cubas, de Machado de Assis. E é pela prosa aliciante deste franco narrador, cujo nome e rosto desconhecemos (fazendo-se identificar apenas como o Treinador), que somos arrastados pelo turbulento universo do boxe numa torrente copiosa de ditos e situações anedóticas que o torna não só agradável, mas até fascinante.
A aventura que constitui suas memórias perpassa suscintamente diversos tempos e lugares, indo do meio para o final do século XX, e do distrito paulista de Casa Verde até o núcleo apoteótico do boxe mundial: a cidade americana de Las Vegas. As pessoas e circunstâncias que nela figuram também completam o retrato vívido pretendido pelo escritor, que, mesmo quando se expressa num jargão técnico, ou faz referência a lutas e nomes célebres da história do pugilismo, mantém todos estes detalhes num plano de fundo, fazendo sobressair aquilo e tão somente aquilo que basta para prender a atenção dos leitores, inclusive aqueles que pouco ou nenhum interesse têm pelo boxe. É assim que, no centro desse retrato, destaca-se Zezão, o herói, o “Monstro”, ou antes o inopinado protagonista das mais alegres lembranças do Treinador:
“Pelos idos de 1995 tive a única e última chance de fazer algo grande. O homem se chamava Zezão; um gigante com coração de criança. Um moleque cruel, que podia quebrar todos os ossos de sua cara sem qualquer remorso, mas era inocente como um vendedor de Herbalife. Nunca conheci um sujeito daquele antes. Não sabia absolutamente nada da vida…”
A saga desse campeão bronco e desavisado, verdadeira jornada cômica do anti-herói, passa-nos à primeira leitura a impressão de um debochado romance de formação, no qual Zezão, arquétipo de uma anima naturaliter brasiliana, desponta, cresce e personifica o inusitado triunfo da gambiarra sobre o método. Esta impressão se mostra tanto mais cabida pelo pragmatismo intuitivo expresso nas falas do Treinador, para quem os verdadeiros campeões são acidentes naturais, flores nascidas no esterco do desespero, e cuja vocação compete a ele adivinhar. Aliás, não são poucas as ocasiões em que este filósofo gaiato diz confiar e apostar mais na vocação despercebida do que na mais eficiente capacitação técnica:
“…porque o campeão a gente molda por dentro, com raiva e dor, o resto é detalhe, que qualquer imbecil aprende. (…) Estava ali o desesperado, o vocacionado, o humilde e trabalhador que sempre esperei.”
Há ainda outra razão para a simpatia do Treinador por tipos como Zezão: eles são a possibilidade de uma desforra contra o nosso detestável “complexo de vira-lata”, aquela inferioridade atávica que Nelson Rodrigues tão bem diagnosticou no brasileiro comum. Contentamo-nos com os azarões, com os vitoriosos ocasionais, com os campeões adiados. Apreciamos o sucesso quando é uma exceção e, de preferência, não duradoura. Ao passo que o sucesso pleno e fulgurante magoa nossos olhos habituados à escuridão do buraco de mediocridade no qual nos achamos:
“Aqui não temos campeões e nem os queremos. Depois que um brasileiro ganha não sabemos mais o que fazer com ele. (…) Olha o Pelé: ganhou tudo, conquistou tudo, foi tudo. Namorou com a Xuxa, foi cavaleiro da Rainha, filmou com o Stallone e deu caneta no Bill Clinton. Juntou grana, fez família. Resultado: todo panaca fala mal dele. (…) Brasileiro gosta mesmo é do Garrincha. Gosta do bêbado fracassado, que nunca atingiu seu máximo e acabou passando fome. Gosta justamente porque ele passou fome, ficou doente, alcoólatra, sustentado pela mulher e a coisa toda. Ele entrou num poço tão fundo que nós até o perdoamos por ter sido campeão do mundo duas vezes. Se fodeu tanto que voltou a ser admirado, dessa vez na condição de “coitado”. Certo fez o Senna, que comeu todo mundo (inclusive a Xuxa) e morreu antes que começassem a falar mal dele. Se não tivesse morrido seria um Nelson Piquet, o melhor de todos, mas que não aparece na TV desde 87. Não aparece nem na Record. Os caras preferem entrevistar até piloto de kart ou os caras da paraolimpíada.”
Nesta sucessão de elogios depreciativos, com quais também vai homenageando Zezão, o Treinador faz reverberar o ensinamento apostólico de que o Divino escolhe os mais estúpidos, os mais desprezíveis, aqueles que nada são para confundir e esmagar os que são – ou pensão ser.
Resta-nos contemplar a natureza dessa divindade. O leitor mais atento talvez concorde que, mais do que um romance de formação, a trajetória de Zezão constitui uma pequena teogonia, e o deus oculto que a intitula não é necessariamente uma divindade una, mas uma trinitária união hipostática. Nela, a primeira hipóstase é o próprio narrador, a potência criativa, ordenadora ou treinadora, cuja palavra, ou melhor, o verbo desbocado atua sobre a potência caótica, disforme e bruta que é Zezão – então a segunda hipóstase – e cujo rosto haveria de ser visto, e até venerado, no panteão de lendários titãs como Joe Louis, Sugar Ray, Muhammad Ali, Éder Jofre, George Foreman, Mike Tyson, Acelino Popó, etc. Dessa sinergia entre Zezão e o Treinador surge uma terceira e misteriosa hipóstase que por vezes, nos momentos mais decisivos, resplandece no canto do corner. Alucinação, mística?… O fato é que sendo três pessoas em um só deus, cada qual tem as suas próprias vontades, e elas nem sempre são conciliáveis. Eis então o vórtice do enredo onde a narrativa cede espaço à tensão dramática.
Milton Gustavo sabe que nem só de zombarias se faz uma boa sátira, e parece ter aprendido com Stendhal, outro grão-mestre do riso, que a seriedade de certos temas pode soar como um tiro no meio de uma ópera, causando uma ruptura na estrutura cômica que é tão inesperada quanto necessária. Qualquer que seja a distância irônica do narrador, não convém que ele seja invariavelmente engraçado, porque há muitas maneiras de se ver e sentir a vida; e a distância entre o narrador e o protagonista não impossibilita uma simpatia comovida nos infortúnios que lhes são comuns. Então, quando a arte o pede, uma nota aflitiva ou melancólica acha lugar neste romance; todavia rendendo-nos páginas que não são menos animadas ou pitorescas. Assim é quando nos deparamos com as ambições conflitantes entre o Treinador e seu herói Zezão; ou quando entrevemos os riscos da proximidade com o poder dos cartolas do boxe; ou simplesmente quando qualquer dos protagonistas sofre a perda de um ente querido.
No entanto, independentemente de qual seja a situação, o leitor perceberá que este romance jamais faz concessões à pieguice. Quando sentido, seu narrador nunca assume um feitio desesperado ou triste, apenas moderadamente divertido. Tudo isso também pode, e talvez deva, ser creditados na conta de uma verve stendhaliana que fica ainda mais patente pelo jeito antitético, pelas sentenças axiomáticas com as quais o escritor exprime seus dotes de observação e de análise:
Homem não seduz mulher; na verdade, elas é que escolhem a gente e ainda nos fazem achar que somos os garanhões. Tem gente que não entende essa coisa nunca. Fica com aquela mania de querer ter despertado um “amor imortal” e essas coisinhas de donzelão. Por sorte não tive isso. (…) Mas o Zezão, depois de um tempo, entrou nessa de querer ser o pau de mel do continente. Só se fodeu, perdeu tempo, foco, saúde e dinheiro. Avisei tanto, mas era como se estivesse falando com um cachorro no cio. O homem tem duas cabeças, o sangue vai de uma para a outra. Quando o sujeito está com sangue todo na cabeça de baixo, se você for tentar argumentar com ele pode acabar até sendo enrabado.
A impressão de uma influência de Stendhal não é gratuita ou deduzida tão somente dessas aptidões. Possivelmente, qualquer leitor que já tenha se divertido lendo A Cartuxa de Parma, terá uma sensação de déjà vu ao ler as páginas em que Milton Gustavo – talvez inspirado na clássica cena do desencontro, ou melhor, do destratado quase-encontro entre Fabrício Del Dongo e seu ídolo Napoleão Bonaparte durante a Batalha de Waterloo – narra uma ocorrência similar entre o Treinador e seu ídolo Éder Jofre durante uma festa do Hall da Fama da cidade americana de Canastota. Se for este o caso, cumpre reconhecer que a influência de um não diminuiu a criatividade do outro, e que o pasticho aqui suposto resultou numa bela homenagem.
Fato é que Milton Gustavo decididamente não pretende afetar uma enganosa originalidade e, como Cervantes, não faz mistério da procedência do fogo onde acendeu sua própria chama. Por óbvio, não se trata daquele fogo morto da sátira domada e constrangida pelas atuais militâncias ideológicas. Mas daquela sátira ardente, solta, espontânea e descomprometida – a única verdadeira porque nunca se acanha e tampouco se desculpa; a única que perdura porque, alheia as pautas do dia, do século, do projeto-político-pedagógico, ocupa-se só daquilo que é substancial e universal. E, na medida em que a leitura avança, vamos constatando que se o autor fez desse fino sarcasmo o moto perpétuo de sua prosa não foi com o intuito vulgar de parecer ofensivo ou escandaloso, mas com o mais decente propósito de ser purgativo, causando aquela higiene mental (filosoficamente denominada de catarse) tão recomendada por gente como Aristóteles, Kant e Kierkegaard, em razão de seu poder de reduzir as coisas às suas verdadeiras proporções e quebrantar os moralismos mais extremados. Nenhuma sociedade pode se dizer civilizada, nenhuma pessoa pode se considerar suficientemente educada sem antes ter confrontado o ridículo e gargalhado à custa de seu “semelhante”.
Por conseguinte, o escritor que aqui estreia não poderia ter escolhido um tema, um tipo, um teatro mais adequado do que o universo do boxe para realçar a essência briguenta desta arte literária. E nenhum outro poderia ser mais condizente com o seu estilo direto e ferino:
O boxe é assim; é como a vida, você pode se dar bem mesmo sendo um bosta como o Bambo, ou, o que é mais comum, se foder mesmo sendo um carinha legal como o Paulinho. O boxe não tem moral da história, nem coisas assim; ou melhor, o boxe não tem moral. Falo disso com toda propriedade porque sou um vencedor. Filho da puta ou não: venci.
Tudo o que acima é dito sobre o boxe pode-se aplicar à narrativa do próprio autor que, escrevendo com a agilidade de um pugilista, num fôlego constante, desfere-nos sentenças certeiras, atordoantes, quebra-nos o siso e nos faz rir a força, a pulso:
“Muay-thai é esporte de maloqueiro! Aqui só treinamos lutadores segundo as regras do Marquês de Queenberry, senhora.” Que negócio mais sem cabimento, entrar na minha academia para perguntar se ensinamos a bater um tiro-de-meta com a cabeça dos outros! A gostosa se ofendeu e foi embora levando o namorado fortão boiola. Patricinhas como ela querem treinar Muay-thai porque engrossa as pernas e afina cintura. Se eu começasse a receber esse tipo de gente aqui, logo teria que comprar um bebedouro e quem sabe até ajeitar a descarga do banheiro.
Milton Gustavo faz sua estreia na literatura como quem pisa num ringue disposto a afrontar os ânimos mais duros e rancorosos. Recomendo-o, portanto, àqueles que estão saturados de ismos, ou vivem assombrados por toda sorte de fóbicos, reais ou presumidos:
Nos anos 90, por causa das bichonas do jiu-jitsu, todo mundo resolveu virar valentão. Até acho interessante o jiu-jitsu, mas, porra, ter que passar a luta esfregando a virilha na cara de alguém pra finalmente estrangular com o sovaco é foda. Preferiria mil vezes apanhar. Enfim, graças às bichonas, começaram a aparecer alguns alunos e atletas em potencial. Mas nada como nos últimos anos. Parece que agora é menos vergonhoso ser ladrão do que ser gordo e algumas dessas revistas de fresco publicou que o boxe é o melhor exercício “aeróbico”.
Se isso lhes parece muito, não é ainda tudo; para os melhore fins purgativos, o que Milton Gustavo pretende mesmo é nos levar a nocaute:
Nunca vamos ser campeões de nada digno, de nada realmente importante. Nunca vamos ganhar lutando nas regras do Marquês Queenbery, com o rosto levantado, peito à frente, olhando nos olhos do adversário. Nunca mais vamos ter um Éder Jofre. Essas bichonas do Jiu-jitsu são campeões mundiais todo ano e ninguém os conhece. Estava ali, na minha frente, o destino do Brasil: só seremos vencedores de cu virado para cima, numa luta em que o campeão estrangula o adversário pelas costas, ora com o sovaco, ora com os ovos.
Por minha vontade citaria muitos outros trechos, mas assim incorreria numa usurpação transcrevendo páginas inteiras que devem permanecer neste formidável romance. Lede-o então, imediatamente, e acharás páginas ainda melhores, todas feitas dessa mesma sátira impagável, dessa sátira purificadora que (no entender dos filósofos) nos alivia do excesso de seriedade com o qual andamos a encarar o mundo e a nós mesmos. Falando em filósofos, ocorreu-me que Kierkegaard, em seus ensaios sobre o conceito e, mais ainda, sobre os efeitos benéficos que a ironia pode surtir em nossa precária realidade existencial, comparava os verdadeiros escritores satíricos aos raios de uma tempestade noturna: eles trovejam contra os ventos, clareiam os céus, espantam as pessoas e purificam o ar. Milton Gustavo atende perfeitamente a todos estes requisitos. Por isso, a estreia que ele faz neste romance é um acontecimento literário verdadeiramente providencial, e certíssimo é o seu futuro.