O Caso Misterioso do Assassínio do Relojoeiro

– por Gabriel Coelho Teixeira

I

A lua vai alta. Abaixo, uma rua paira deserta. A madrugada avança. Na via pública as lâmpadas são escassas. Os halos de luz provenientes da queima do querosene são fracos, impotentes contra a força opressiva da noite. Em vez de se oporem à escuridão, incorporam-se nela, evocando ares fantasmagóricos.

Longe na extensão da rua desponta uma figura indiscernível à vista. Vem vindo. Conforme avança, adquire contornos bem definidos.

É um homem. Veste um sobretudo preto, camuflado na noite. Anda com a cabeça arqueada a esconder o rosto por sob a aba do chapéu. Torna-se ainda mais sinistro quando atravessa a luz de uma lamparina. Avança devagar mas nada hesitante – segue resoluto. Dos seus passos, nenhum ruído.

Pára de repente. Do meio da rua, volta-se para a fachada alta de uma casa de cômodos. Avança até a porta, com a mão enluvada apanha na maçaneta, gira – trancada. Como previra.

Espreita os arredores. Por sob a aba do chapéu, corre os olhos dum lado ao outro. Ninguém. Só ele existe no mundo.

Volta a atenção para a porta diante de si. Abaixa-se na altura da maçaneta, retira do bolso interno do sobretudo um jogo de ferramentas. Cirurgicamente as insere no buraco da tranca. Com calma, revira as vísceras do mecanismo da fechadura.

A porta se abre.

O homem põe-se de pé e certifica-se uma vez mais de não haver ninguém nas proximidades. Atravessa a porta e fecha-a atrás de si.

II

Dentro da casa ele não passa de um vulto. Ali, seus instintos estão mais apurados; sua atenção, mais aguçada. Arqueado, atravessa os cômodos da casa com a desenvoltura de um felino; ameaçador, paira secretamente pelo recinto como uma assombração. E se algum desavisado andando por ali acaso imaginasse ter visto algo, estacaria por um momento, espreitaria o ambiente e constataria não haver nada de anormal.

Assim embrenha o homem pelo interior do casarão, sobe escadas, cruza corredores, até alcançar o local desejado.

Num certo andar da residência, o homem pára ante a porta de determinado quarto. Com a mão enluvada, pega na maçaneta e gira – trancada também. Nada a que ele não estivesse acostumado.

Abaixa-se uma vez mais na altura da maçaneta e repete todo o procedimento que fizera lá fora. Dessa vez, porém, redobra a cautela. Ali dentro qualquer ruído seria denunciador.

Mas o homem domina seu ofício. O mecanismo da fechadura estala em baques surdos cuidadosamente intervalados. Até que a tranca se abre.

O homem põe-se de pé. Com uma mão pega firme a maçaneta, controlando o giro; com a outra, segura a porta para controlar a abertura. O rangido das dobradiças se propaga tão sutilmente que é engolido pelo silêncio da casa. E a etapa final de seu trabalho apresenta-se fácil diante de si.

III

A luz pálida vinda da lua entra pela janela aberta, atravessa as cortinas sopradas pelo vento e cai sobre a extensão da cama a frente, acima da qual dorme um senhor de idade, com a cabeça no encosto rente à parede oposta. Coberto apenas por um fino lençol branco, imerso num sono profundo, alheio à ameça iminente – jamais uma caça foi tão fácil.

O homem, da porta, analisa todo o cenário. Adentra o recinto, com passos leves, lentos, silenciosos. Não há motivo algum para pressa. Coloca-se no espaço entre a janela e a cama. Vislumbra por um instante a sua vítima que dorme inconsciente. E, com o corpo bloqueando a luz da lua, a sombra do homem cobre a vítima como uma manta fúnebre.

IV

O corpo foi encontrado na manhã do dia seguinte pela arrumadeira do casarão, que todas as manhãs passava pelos quartos dos hóspedes. A vítima era o relojoeiro Charles Tissot, um senhor de 70 anos, imigrante, que vivia sozinho no Brasil. A polícia chegou em questão de minutos para apurar a ocorrência. O estado do morto era lamentável. O assassino não se limitara a matá-lo, mas também retalhara-lhe o corpo, dos pés à cabeça. O caso foi noticiado por toda a imprensa local. A cidade ficou estarrecida com a brutalidade do assassinato. Mas o crime jamais foi solucionado.