O belo e o sublime: Pobre Gente #MêsdoSubsolo – Temas do subsolo na literatura brasileira recente

-por Jessé de Almeida Primo

Gostaria, antes, de observar que a minha leitura do romance As almas que se quebram no chão, de Karleno Bocarro (É Realizações, 2010), deu-se paralelamente a de duas outras bem sucedidas realizações literárias: a peça Os amadores, de Pedro Sette-Câmara(2008), ainda inédita, e Consagro-vos a minha língua, romance de José Carlos Zamboni (É Realizações, 2010), também lançado recentemente.

Por que cito essas três obras? Elas têm em comum o fato de suas personagens procurarem triunfar sobre as pessoas e sobre a realidade com a literatura, com o modo de dizer de grandes personagens literárias, ou com alguma pose que cause forte impressão. Mais precisamente são personagens mais ou menos cultas ou com uma simples educação formal ou ainda que ouviram falar do mundo da cultura e resolveram usar seus elementos mais aparentes para fazer a “diferença”, tornarem-se distintas, para criar um território, para mostrar aos outros o quanto são autênticas, o quanto têm uma identidade, o quanto têm uma personalidade forte ou enigmática. Porém, todos os seus sonhos desmedidos, sem o auxílio de um esforço que pudesse concretizá-los, foram reduzidos ao que Manuel Bandeira chamou de “uma vida inteira que podia ter sido e que não foi.” Padecem, desse modo, de uma ordem da invisibilidade que contraria as expectativas que criaram para si mesmos. Dito isso, chama atenção que essas obras orbitem em torno de outro grande romance: Memórias do subsolo, de Dostoiévski (ed.34, 2009). Cada uma dessas obras seria algo como um prolongamento das grandes discussões propostas por esse grande romance.

O narrador do romance de Dostoiévski é alguém obcecado pelo “belo e o sublime” e que em vários momentos julgou que poderia vencer as adversidades do mundo pelo simples fato de conhecer as sutilezas desse objeto de obsessão. Porém, todas as vezes em que ele queria mostrar ser alguém de valor, alguém cuja ausência faria chover lágrimas no mundo, por fim todas as vezes em que buscava o triunfo sobre o outro, acontecia de esse outro não tomar conhecimento dele para que tal triunfo acontecesse, vivendo assim numa constrangedora invisibilidade. É o que podemos perceber na passagem sobre um incidente na taverna, em que ele, um sujeito pequeno, é erguido do chão por um oficial tal como alguém, que com indiferença, retira uma cadeira da sua passagem para continuar indo em frente.

Indignado, vai para casa com raiva, rumina a humilhação por muito tempo, e dois anos depois escreve uma carta cheia de veleidades literárias em que desafia o pretenso desafeto para um duelo, a qual não envia por conta do óbvio descompasso temporal entre a elaboração da carta e o acontecido; ou ainda, quando procura uma ocasião para dar uma lição de moral a seus colegas de repartição, a partir de tudo que teria aprendido com os textos filosóficos e literários. Humilha-se para conseguir ser convidado por esses colegas que organizaram um jantar, durante o qual teria a oportunidade de jogar-lhes na cara tudo que queria dizer a respeito deles, seria o momento da desforra. Porém, chegando lá, ora faz de tudo para provocá-los, chamar-lhes atenção, ora afeta desprezá-los, mas mal tomam conhecimento de sua presença – a não ser vez ou outra para fazer troça de sua pronúncia – e continuam com a sua festinha particular. Mais uma vez, volta humilhado para casa, e acaba se voltando contra a única pessoa que lhe dava atenção: uma prostituta que, num gesto de caridade, o visita, e contra a qual fez o tão sonhado discurso e com a eloquência que deveria ser antes dirigida aos seus colegas de repartição, e jogando-lhe na cara toda a condição precária em que ela vivia e, enfim, pondo violentamente em sua mão uma quantia em dinheiro que, antes de ir embora, ela deixa em cima de um móvel. Nunca mais ouve falar dela.

A peça Os amadores, de Pedro Sette-Câmara, prolonga a discussão a respeito da obsessão pelo “belo e o sublime” sob a espécie de uma engenhosa comédia romântica para adolescentes (em parte inspirada em Werther, de Goethe), por meio de diálogos jocosos e que conta histórias de amor bem ou mal sucedidas e cuja personagem principal, Valter, vive a se queixar porque o homem não consegue determinar seu destino: “nada pior do que depender de alguém que não é você”, e para arrematar lamenta-se dizendo:

Eu mesmo sempre fiquei chocado com uma coisa: quando alguém importante morre, as montanhas continuam no lugar, o céu continua ali, e nem os prédios têm a decência de desabar, o que aliás seria o mínimo. Nós nem mesmo celebramos mais o sublime, não valorizamos o amor que vai além da morte e que, ele sim, pode definir quem é alguém.

Valter é alguém de mentalidade romântica, mas que dos românticos herdou apenas o sentimento e suas fraquezas. Só que a diferença, neste caso, é trágica: os românticos, ao contrário dele, ao menos se realizaram artisticamente com seus devaneios, ao passo que ele se tornou alvo de comentários mordazes, como este a seguir, entre sua ex-namorada e sua amiga:

CARLOTA: Assim não dá, não é? E ele faz promessas. Outro dia falou que ia passar a eternidade fazendo poemas pra mim. E eu vou fazer o quê? Ficar ouvindo poesia a eternidade toda?

LEONORA: Realmente. Só com poesia não dá, não é? E esse negócio de ir a Paris assim do nada? Parece que ele nunca fincou o pé no chão.

CARLOTA: Só fala do que não dá para fazer.

LEONORA: (Pegando no braço de Carlota.) Ele devia andar de túnica e harpa na mão.

CARLOTA: Em vez de andar de carro, ele devia andar de nuvem!

Já o romance Consagro-vos a minha língua, de José Carlos Zamboni, tem como personagem principal Hildo Rielli, funcionário de um banco, graduado em letras, aborrecido com seu emprego – e ao mesmo tempo temeroso de ser demitido por conta da privatização –, que julga indigno para alguém de sua estatura, para alguém de sua cultura e sensibilidade, para alguém que tem ambições literárias, assim como é indigna toda sua vida: um homem triste e destruído por não ver concretizadas as expectativas que outros tiveram dele ou ele de si mesmo. Curiosamente, um homem capaz de perceber as coisas como são e de dizer as coisas certas, mas ao qual falta consistência moral e que vive sob uma chantagem que envolve uma história nada edificante, a de um ato de pedofilia envolvendo a filha de sua amante, e que muito se relaciona com a seguinte reflexão da personagem de Dostoiévski:

… por que me acontecia não apenas conceber, mas realizar atos tão feios, atos que… bem, numa palavra, atos como os que todos talvez cometam, mas que, como se fosse de propósito, me ocorriam justamente nos momentos em que eu mais nitidamente percebia que de modo algum deveria cometê-los? (Editora 34, p.19)

Além disso, padece de um problema físico que parece refletir sua vida, que é a gradativa diminuição da voz: 

A conseqüência é que me tornava lacônico e, nos melhores momentos, conciso, quando na verdade era um sujeito fragmentário, pela metade, impedido ou envergonhado de exibir-me como era ou pelo menos como julgava que fosse.

Sujeitos fragmentários e pela metade são também os que habitam As almas que se quebram no chão. A história é ambientada na Alemanha Oriental, a partir dos poucos meses que antecedem a queda do muro, e se prolonga por mais alguns anos, após os quais o protagonista volta ao Brasil e assim confere uma cor nacional aos seus desastres pessoais. E vemos nessa narrativa os efeitos dessa queda em diferentes tipos de personagens.

No livro de Bocarro, a crença nas utopias foi em geral substituída por um ritmo de vida desenfreado, pelo intenso uso de drogas, pelo hedonismo que beira o desespero, e o inimigo que era o império norte-americano passou a ser a AIDS, à qual o cantor e compositor Cazuza chamou de “complô contra a sacanagem”. O protagonista é Marco Dilthey, funcionário do Banco do Brasil, como Hildo Rielli, e que cansado de viver numa espécie de invisibilidade, vê na oportunidade de estudar na Alemanha o fim de uma vida sem maiores significados e o início de uma consagração pessoal e literária que apenas a Europa poderia oferecer.

Consegue, então, uma bolsa pelo partidão para estudar em Berlim Oriental, e vislumbra a possibilidade de ampliar seus horizontes, encontrar elementos que o tornem um grande escritor e, por que não, conhecer as mulheres alemãs, certamente mais interessantes que Luiza, sua  namorada brasileira, a qual diga-se de passagem, é certamente a personalidade estável e forte do romance e que não se deixa atingir pelas vozes dos novos tempos tão bem representadas por Marco. Porém, chegando lá, e não percebendo sinais positivos com relação às suas pretensões literárias –  tão intensas no desejo de serem atingidas, mas muito vagas no que se refere ao esforço necessário para atingi-las –, e muito menos conseguindo êxito nos estudos, todas as suas ambições foram reduzidas a conseguir mulheres alemãs, depois qualquer tipo de mulher e por fim alguma ideia de mulher.

Além dele, seu antípoda, Barad, também brasileiro, mas diferentemente dele, mais bem integrado ao país, tem uma namorada alemã, disciplinado, dedicado aos estudos – e, diga-se, tão dedicado a eles que suas pretensões literárias, ainda que sem o sacrifício delas, poderiam esperar mais um pouco se a questão era cumprir todas as etapas acadêmicas. Por outro lado, uma figura com uma visão estética da vida e para a qual o mal e o bem são destituídos de qualquer hierarquia moral e as pessoas à sua volta, na melhor das hipóteses, são alvos de um interesse frio, uma vez que não são mais que possíveis personagens.

Por meio de Barad, Marco é apresentado a Dias, um exilado do regime militar brasileiro, mas que se recusa a voltar para o Brasil, porque acredita que os agentes da repressão ainda estão na seu encalço, por conta de uma curiosa adaptação que fizera do Manifesto comunista para os operários do ABC. Além disso, vive uma vida pessoal um tanto atribulada e sonha com o grande dia em que seus contos serão traduzidos para o alemão e conseguir, desse modo, o tão desejado reconhecimento. Enquanto isso, continua vivendo sua vida como eterno estudante e faz bicos como pedreiro. Indo à casa de Dias para conhecer seus contos, numa situação nada edificante para o ex-exilado, Marco trava conhecimento com Bocas, uma personagem hedonista e mefistofélica, capaz de transformar os que estão à volta dele em capachos e ainda fazê-los agradecer por isso. É também uma figura demiúrgica que tem o dom de perceber boas oportunidades financeiras em países comunistas em fase de transição e de usar despudoradamente a curiosidade que o europeu tem com relação ao exotismo latino-americano. E entre várias outras personagens que habitam o livro, por fim, temos Grubas, que é um grande contador de histórias, uma personagem que dá à luz vários episódios notáveis, muitos dos quais giram em torno de relações mal-sucedidas, e que têm algo de parábolas invertidas.

Quero, porém me concentrar em duas personagens que são uma variação do “homem do subsolo”: Marco e Dias. Ambos querem marcar, destacarem-se, são personagens, como já foi dito, com alguma educação formal ou, se não são cultas, que ao menos absorveram o sotaque acadêmico-intelectual da época, além de terem sido explorados desavergonhadamente por Bocas. Vemos, então, um jovem hedonista mal sucedido e um engajado de meia idade, que ainda age como se o regime militar, de alguma forma, estivesse na ativa, como se o regime militar não cessasse sua existência enquanto o não prender, o torturar, o matar e apagar da memória da nação brasileira o seu Manifesto comunista para os operários do ABC. Marco, por sinal, passa por uma situação análoga: toda vez que não consegue cumprir com alguma tarefa acadêmica ou não é notado pela mulher alemã ou é por ela rejeitado ou agredido fisicamente por um grupo de lésbicas em fúria ou ainda posto para fora sob tapas e pontapés de uma casa de espetáculos eróticos, é o império europeu, com sua insensibilidade aos problemas do terceiro-mundo, que o persegue. Ou seja, ambos tendem a desviar a discussão sobre a verdadeira razão de seus fracassos pessoais e exagerar o poder de seus perseguidores. Mais precisamente, criam perseguidores poderosos para conferir estatuto de heroísmo à não conclusão de seus projetos pessoais. E sempre saem derrotados diante das adversidades porque acreditam que seus pretensos inimigos serão tocados pelo impacto de seus discursos com veleidades filosófico-literárias ou clichês políticos. É o que vemos neste diálogo em que Marco, após ter fracassado na tentativa de explicar a uma austríaca o que era sincretismo, tenta impressioná-la falando da política internacional:

E se danou a falar da exploração dos africanos, do egoísmo dos europeus: por que não dão mais dinheiro àqueles coitados, depois de explorá-los e dividi-los como a uns doidos?

– A culpa é deles – ela respondeu com toda clareza.

– Como deles? A Áustria está livre disso, eu sei. Mas todas as outras potências européias – e emendou em português – deitaram e rolaram por lá.

Ao perceber o erro, e por não saber como dizer em alemão “deitaram e rolaram por lá”, usou o verbo ausbeuten, explorar. Ela lhe devolveu:

– E agora que não são mais explorados, por que não se ajeitam?

–  Não deixam.

– Quem? Se escolhem presidentes corruptos, ditadores, canibais… Que se danem. Fazem a opção pela merda, Scheisse!

(…)

– E a África do Sul, Mandela, apartheid? – ele revidou.

– Não justifico o apartheid, é um tema maldito. Mas se não fossem os ingleses e holandeses estariam bem pior.

– Ah, quer bem me dizer que vocês representam a civilização?

– Vocês quem? Já que tocou no assunto, confirmo: Quanto mais se mirarem em nosso modus vivendi…

– Modo de quê?

– Mas não, querem é vir para cá viver às nossas custas.

– Quem disse isso, você?

– Terminei de falar.

– E as crianças que morrem aos milhares de fome?

– … que usem o aborto e a ligação de trompas (…) falo sério. Pois se aumentam como ratos, que culpa temos? E os governantes mais corruptos…

– Se cada europeu adotasse uma criança – apregoou Marco. – Mas preferem os cães às crianças. Aposto como você tem um…

– Um pastor alemão, e não o troco por nada neste mundo.

(…)

– É egoísmo puro, colocar um cachorro acima de uma criança.

– Quatsch! Cachorros não provocam desequilíbrio ecológico no planeta. Tem muita gente na Terra, e a África é a maior parideira. Agora, por que você não vai lá e aplica suas palavras?

– Se eu pudesse eu iria – apelou Marco.

– Que nada! Quem fala não faz.

– Iria mesmo, quer saber?

– Ao coração das trevas? Duvido.

– Como assim?

– São supersticiosos, e vocês, brasileiros, seguem atrás. Acreditam em demônios, espíritos ruins, em bruxaria. Os homens estupram meninas como cura da AIDS…

– Você, ó! – e Marco passou dois dedos diante dos olhos – Louca.

– E você? Como todos lá de baixo, um idiota que detesta a sinceridade, o toque na verdade, na ferida, não é? Vive bem de ilusões, pois não se esforça para sair delas. Quer dizer, d.h., um besta dum hipócrita preguiçoso.

– … sua nazi de uma figa. – pegou o reco-reco, aproximou-o do rosto dela, passou a ponta de ferro pelas molas, arrancando uma estridência incômoda, e se afastou, ainda olhou para trás.

Por fim, como podemos perceber por esse diálogo, Marco não apenas não compreende que lhe faltam as virtudes dos seus heróis como acaba falhando de forma humilhante, porque é mais interessado em impressionar que ser verdadeiro: observem que o ocorrido se encerra com “ainda olhou para trás”. A austríaca, não se pode negar, também dizia seus clichês, mas eram clichês que estavam em pleno acordo com sua visão de mundo, de modo que clichê ou não clichê era sincera e, por isso, desembaraçada. Também são desembaraçados Bocas e, até certo ponto, Barad, além do contador de histórias Grubas, e outras personagens bizarras que, se por um lado são símbolos de uma vida desperdiçada, por outro lado, no tempo que lhes resta, não perdem tempo fazendo pose. Simplesmente agem e vivem, ainda que seja no erro. Marco, assim como Dias, porém, é a representação de um esteta romântico esfarrapado, que não conseguiu para si o pathos dos revolucionários que têm sede de justiça nem o ar enigmático dos vilões.

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