O Neoclassicismo Sertanejo – comentário sobre um trecho de Câmara Cascudo

– por Jessé de Almeida Primo

A paisagem é parcamente fixada. No ciclo do gado ou do cangaceiro só aparece numa imagem ou para ambiar o episódio. Como uma legítima canção de “gesta”, o romance tradicional sertanejo só tem ação, movimento, finalidades exclusivamente humanas. A Natureza é um acessório. Verdade é que os cantadores mais letrados, Hugolino do Teixeira, Leandro Gomes de Barros, João Ataíde, descrevem as “belezas” do céu, dos campos, da chuva, dos rios cheios. Os cantadores aproveitam esses versos quando não tendo contendores cantam sozinhos. Num embate cordial que assisti em Natal entre José Pequeno e Domingos Cardoso, terminaram ambos cantando alternativamente  versos em louvor da Natureza, com demoradas descrições em manhãs, madrugadas, crepúsculos, noites, luares, estrelas, nuvens e sol.

Dir-se-á que a menção da paisagem denuncia a modernidade do cantador. 

Luís da Câmara Cascudo, in Vaqueiros e cantadores, p. 16 e 17, Global, 2001.

O Nordeste, ao menos o Nordeste profundo, mais recuado, afastado do litoral, como sói acontecer com as regiões interioranas de toda parte do mundo, guarda algo do passado, como se o tempo não tivesse passado por aquelas bandas, qual se fosse uma fotografia ou uma pintura antiga, dentro das quais algumas pessoas moram. Esse fenômeno também se expressa pela cultura artística, mormente a poesia e a música, sem esquecer naturalmente o artesanato – basta ir ao google para conferir o quanto há de medieval, ou mesmo pré-medieval, nas esculturas a que chamam por vezes de “bonecos de barro de Caruaru”. Justamente por isso, a mim me parece, que esses cantadores mais letrados que incluem paisagens nos seus cantos, conforme o diz Cascudo, seriam algo como os clássicos, e mais ainda, neoclássicos do sertão. 

Os poetas neoclássicos ou clássicos, cultos, davam mais atenção à paisagem do que lhas davam os camponeses e pastores que habitavam seus poemas, ou seja, essa modernidade do cantador que “a menção da paisagem denuncia”, fenômeno esse a ocorrer no início do século XX, já havia ocorrido nos grandes centros e no meio culto durante o movimento neoclássico brasileiro, tendo como destaque os autores que fizeram parte da “Arcádia Mineira”, entre os quais Tomás Antônio Gonzaga, com Marília de Dirceu, que idealizavam os pastores da Grécia e Roma antigas, todos eles, ou boa parte deles, formados na Universidade de Coimbra, na Metrópole, de modo que, diante do fato de  “o romance tradicional sertanejo” só ter “ação, movimento, finalidades exclusivamente humanas” reflete uma vida atribulada, com grandes agitações, agitações próprias a esse meio, a saber, ou trabalho duro ou guerras entre famílias ou disputas de terras. 

Não há nenhuma idealização da vida ou devaneio paisagístico em Fabiano, tão limitado mentalmente, nem na Sinhá Vitória, sua esposa, sempre tomada por pensamentos práticos ou presa às necessidades mais imediatas, como sua obsessão por uma cama de ferro, e de tal maneira que música e poesia são expressões inexistentes no universo dessas personagens que compõem o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. No  díptico Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego, vemos uma mística brutalizada, qual o paganismo mais perverso, que reverbera décadas a fio nas guerras cruentas entre as forças do governo, cangaceiros e fazendeiros. Nesse díptico, ao menos, há cantadores, mas Dioclécio não tem devaneios paisagísticos ou românticos, a sua cantiga se limita ao relato dessas mesmas guerras, e este mesmo só menciona a lua no momento em que está fugindo com Bento e Alice, momentos antes de verem uma cena desoladora. Falando em luar, Catulo da Paixão Cearense cantou o “luar do sertão” não no Ceará e, sim, no Rio de Janeiro, para onde se mudou aos 17 anos. A única personagem dos dois romances de Lins do Rego que tinha na sua cantiga os devaneios românticos era Domício, irmão de Bento, devaneios esses que mais tinham que ver com o fato de ser louco do que por algum motivo mais nobre, embora fosse um artista genuíno. 

Os cantos em Morte e vida Severina, de João Cabral, são sempre cantos fúnebres ou que profetizam desgraças, e a exceção só aparece nas partes finais quando nasce uma criança, o que tira a Severino, por um fio, o pensamento suicida. A personagem Macabéa, do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, é uma alagoana numa grande metrópole que desafina até em pensamento, segundo o afirma Rodrigo S. M., o narrador. Diniz Quaderna, do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, esse sim tem veleidades artísticas, organiza festas armoriais, é astrólogo, é xaradista, ocupa-se com poesias e cantos que vão além das necessidades mais imediatas, mas é uma personalidade influenciada pela metrópole, enfim é uma personagem que denuncia a modernidade, como diria Cascudo.