Termino de ler “Fala, Memória”, a autobiografia de Vladimir Nabokov, e fico na dúvida do que concluir a seu respeito.
Pela impressão contínua que o livro quis deixar no seu insone leitor ideal, eu talvez pudesse defini-lo provisoriamente assim: uma longa e brilhante declaração de amor à arte da palavra, impulsionada por um sereno e por vezes inacreditável esforço de autoexpressão e detalhamento. Um libelo da noção nabokoviana de que o comunicar individualizante, estilizado, essencialmente visual do mundo de cada um é quase que a única razão para que exista literatura; e essa é uma autobiografia literária, ou pelo menos literarizada. Não é a conclusão completa, nem a melhor; mas é o que consigo encontrar para o momento.
Do começo, com as remissões de genealogia, as datas, os rostos mortos, os membros de uma linhagem aristocrática que o aproximou da literatura antes mesmo de nascer — um ancestral teve não lembro que contato com Pushkin, outro foi comandante na fortaleza em que Dostoiévski esteve preso, prestes a ser fuzilado —, até o fim, em companhia do filho e da mulher, a gente segue impressionado com a exuberância que, à maneira da folhagem de certos outonos no Oriente, pareceu cobrir a vida de Nabokov com um fundo multicolorido, prismático e encantador.
Na primeira dificuldade que o esforço biográfico traz, o instinto da verossimilhança gostaria de tomar as rédeas da memória e completar as lacunas a seu bel-prazer. E Nabokov não cede, ou se esforça ao máximo para não demonstrar. O passado lhe pertence com todas as minúcias, e é por meio delas que o escritor consegue evocar seu rastro vital e transpô-lo para uma atmosfera fantástica, mirífica, de sonho: em “Fala, Memória” a arte sobrevive à ausência de ficção.
De nenhuma página fica a transparecer o material embrutecido e opaco da simples imitação, e nenhum traço da intranscendência típica dos diários vem macular a sua história. Nabokov é um extraordinário escritor, dos grandes mestres do estilo em língua inglesa (seus melhores livros foram escritos originalmente nela), e sabe disso muito bem.
Assim, em meio às perturbações do exílio que a Revolução impôs a ele e aos seus, a varar uma história da pátria perdida e todas as metamorfoses duma escrita que nasceu russa, virou francesa para versos e enfim se consagrou num inglês clássico e exemplar, não há como não notar a marca do gênio capaz de reconstruir, num quadro nuançado e imaginoso até o impossível, a lendária Rússia da própria infância.
Desde quando, em menino, via ao levantar-se nos dias taciturnos “uma luz pálida e aquosa” penetrar através das persianas brancas, ou nos dias mais felizes o “longo refulgir de brilho orvalhado” dividir o quarto em luz e sombra, quando lá fora “a folhagem das bétulas se movimentando ao sol tinha o tom verde translúcido de uvas, e contrastando com isso havia o veludo escuro dos pinheiros contra um azul de extraordinária intensidade”, até o surgimento da governanta Mademoiselle, robusta e marcante mulher que, em olhos de aço por trás do pince-nez preto, passava as tardes de verão lendo para ele e os irmãos, na varanda “onde os capachos e as cadeiras de vime desenvolveram um cheiro picante e ressacado com o calor”.
Ainda impressionam as memórias quando resgatam a descoberta aliciante, aos sete anos, da sinestesia que Nabokov herdara (segundo ele, da mãe) e que o levava a associar as letras e os sons que lhe chegavam a cores as mais específicas: ao ‘a’ longo do alfabeto inglês, por exemplo, juntava “a tonalidade de madeira exposta à intempérie”; na letra ‘m’ via “a dobra de flanela rosada”; do ‘p’ sobressaia a cor da “maçã não madura”, o ‘h’ trazia-lhe à vista o “pardo cadarço de sapato”; e tantas outras confissões do tipo, que “devem parecer tediosas e pretensiosas àqueles que são protegidos de tais vazamentos”, mas que, não sendo um dom isento de inconvenientes, praticamente o fizeram perceber a música como um simples e visualizado tormento de ruídos, uma confluência caótica de sentidos; o equivalente a um quadro de William Turner para os ouvidos. E Nabokov ainda é bastante hábil em reviver os jardins na casa de campo, em que muito cedo o tocou, para não mais o soltar, essa estranha magia da caça às borboletas, para ele atividade tão inefável, de um prazer tão deliciosamente inútil quanto a composição de problemas de xadrez e a própria arte literária; suas três maiores alegrias.
Tudo isso deslumbra e fascina. Mas não como aquele colorido impressivo, polifônico e feérico que envolve a obra de Proust, e sim como uma imensa bolha iridescente, congelada em trezentas páginas. O próprio magnetismo que em Lolita atrai o leitor para um estado de permanente arrebatamento e graça, quando não está aqui ausente, aparece de maneira diversa, difusa e inferior; e não só porque um é romance e o outro não é.
A impressão geral é de exotismo. Como se ante os seus encantos, inegáveis e plurais, eu estacasse, imobilizado numa admiração a distância, e me dessem um tapa na mão sempre que chegasse perto desse valiosíssimo vaso chinês que não sei para que serve. Não falo do sentido de serventia que o burguês habitualmente poria a condenar essa quintessencial inutilidade. Sem dúvida a experiência linguística (porque é uma) é admirável. Mas nada se faz com aquilo.
A esterilidade dos relatos, em que seria de resto injusto apontar uma permanência capaz de simplesmente detonar um livro tão bem escrito, equivale a uma certa falta de ressonância sentimental que em alguma medida enfada até mesmo os hedonistas da literatura, propensos a admirar toda a sorte de irrelevâncias que o estilo enforma e cinzela. É um livro belo, indiscutivelmente; de uma beleza porém tão certa, tão realçada, quanto opressiva e inviável.
Essa percepção é causada pelo culto que Nabokov estabelece para o detalhe em sua obra toda, aqui porém de modo menos cativante. Dedica-se quase sempre ao aprofundamento individualizador, à busca da partícula essencial de cada instante, ao desejo de imobilizar o relâmpago (para recorrer de novo a Proust), como quando ficava, em deslumbrado silêncio, entre os jardins que visitava e dos quais olhava para o céu, entre cujos “acúmulos cambiantes imperceptíveis, podia-se captar detalhes estruturais do vitral brilhante de organismos celestiais, ou fendas luminosas em extensões escuras, ou praias planas, etéreas, que pareciam miragens de ilhas desertas”, ou mirando sob o pôr do sol “acima da música negra dos fios de telégrafo uma porção de nuvens compridas, violeta-escuro entremeadas de rosa-flamingo, pendiam imóveis num arranjo em leque.”
As passagens são lindas. E a cada página se repetem, constrangem e esmagam o leitor com o seu esplendor de figura e sintaxe.
Mas não sei o que se passa com o espírito geral do livro, ou talvez comigo enquanto bebo alguns desses maravilhamentos com uma impaciência violenta, um incivilizado fastio. Há algo no ritmo dos relatos que não me retém quieto, absorvido na história que deveria interessar, no domínio do tempo; em Lolita, aliás, uma façanha à parte, acompanhada de uma verve cômica poucas vezes alcançada em literatura.
Essas mudanças de ritmo parecem antes consequência, não causa. Esta fica no próprio detalhismo, e por vezes saturação inacessível à própria visão, pelo qual Nabokov nos atenta para a ambição de tudo ver e a obsessão de tudo mostrar.
Diz James Wood, em “Como funciona a ficção”, que a história do romance pode ser contada em paralelo com o progresso de algumas técnicas da prosa literária, a exemplo do discurso indireto livre, fusão entre a voz do personagem e a do narrador do qual se desdobra, por exemplo, a famosa técnica do fluxo de consciência, cujo ápice talvez seja o solilóquio de Molly Bloom, ao fim do Ulysses — mas que, tal como ensina o próprio Nabokov em outro livro, nasceu de Anna Kariênina, pelas mãos de Tolstói. Há na literatura ainda uma história do detalhe, que acompanha mais ou menos o desenvolvimento do discurso indireto livre e faz lembrar de uma figura de importância central para ambos: Gustave Flaubert.
É claro que Flaubert não inventou nem um, nem outro. Mas dentro deles fez descobertas; expandiu, no pretérito imperfeito, algumas propriedades ou facilidades narrativas, como a referência, na vida de certos personagens, a períodos que por uma indistinta habitualidade se permitem reagrupar numa única menção verbal (falo que fulano acordava a tal hora, trabalhava de tal modo, e assim me poupo de descrever anos inteiros de sua vida), ou por ele o ordenado uso do discurso indireto livre, num extravasamento da vida interior que funciona muito bem quando articulado com o pretérito perfeito, mais reservado à sucessão horizontal de instantes. Mas também, ao “inventar” o flanêur no romance, esse andarilho das letras que se põe a vagar sem mais nem menos pelas ruas de uma cidade que é toda sombra, luz e movimento, acabou por criar ou pelo menos popularizar o tal “detalhe estudadamente irrelevante”.
Exemplos surgem aos montes. Mas creio que o conto “A dama do cachorrinho” de Tchekhov ilustre bem. Há uma cena em que, logo depois do sexo, a personagem senta na cama tranquila e começa a comer melancia.
Não tem nenhuma razão para isso. É apenas pitoresco, estranho e profundamente humano. A função desse detalhe para o entrecho não é senão vestir o ambiente em que ele transcorre com um vasto lençol de vida, adornando o mundo ficcional das épocas seguintes com essa que é uma das mais notáveis convenções do realismo.
Mais conveniente ainda para esse efeito realístico é a confusão propositada entre os detalhes essenciais, motores da narrativa, com aqueles cuja desimportância é tão convicta quanto fundamental para a atmosfera de familiaridade; tudo misturado para nos convencer de que aquele mundo é como o nosso.
Outra conquista importante, no caso a maior delas para os nabokovianos fins, consiste em que, na fusão entre o detalhismo e o papel do narrador, os personagens deixam de eles próprios atentar, com a interferência de seu vocabulário pobre, indireto e livre, contra as pretensões estilísticas do autor, que pode enfim contar a história à sua maneira, sem dar satisfação de quem percebe o quê. E será que os personagens notam tanto quanto o leitor?
De qualquer forma, a estilização em Nabokov não é necessariamente um vício.
Em Lolita, o estilo é algo muito próximo da perfeição, o equilíbrio entre a unidade e as partes é impecável, e ali, ao retratar as cenas sem apontar mais do que deve, Nabokov consegue se preservar no comando do destino geral, levando qualquer um, pelo caminho da ruína e da morte, a sentir e deplorar a história de Humbert Humbert e Dolores Haze.
Em “Fala, Memória”, a exploração incessante de cada cena, a personificação de cada objeto acontecem, porém, em muitos momentos, à custa do alheamento completo do leitor, que não consegue se distanciar o suficiente para assimilar bem o que está havendo (e por que razão deveria se preocupar com isso), e fatalmente se desinteressa, e deixa de querer ajudar o formidável escritor a encontrar o seu tempo perdido.
Poderia alguém objetar, o próprio Nabokov talvez, que, não sendo a história de um ser ficcional, e sim a de um escritor vivo a refletir sobre si, seu passado, sua família, sem saber como acabará, é natural que do relato todo, à parte a escala irregular, fique uma inevitável sensação de perda e desolação, faltando um direcionamento apenas onde ele de fato não existe para ninguém.
Mas o sentido das coisas é também, sob certo aspecto, um fenômeno da memória. E se na somatória irracional dos dias a consciência não encontra nem seleciona, sem muita distância ou exagerada proximidade, aquilo que então contará ao derradeiro juiz, por maior que seja o talento, não haverá interesse que perdure ou emoção que sobreviva.