“Miserere” e outros poemas, por Luiz Renato de Oliveira


MISERERE

Eu sou um dos leprosos dentre os dez,
A adúltera que foi pega em flagrante,
A mãe sírio-fenícia suplicante,
O hidrópico que o edema se desfez.

Eu sou o miserável publicano,
O cego de nascença que enxergou,
Sou a mulher do fluxo que cessou,
O servo moribundo do romano.

Sou o bandido morto numa cruz
Na véspera da Páscoa, que, no fim,
Crucificado ao lado de Jesus,

Ali, morrendo como incircunciso,
Fez um pedido, “Lembra-te de mim”,
E foi com Ele para o Paraíso.


BABEL

Shoah. Pogrom.  Seyfo. 
Medz Yeghern. Terreur. Holodomor. 
Paredón. Da’ish. Kamikaze. Gulag.
Porajmos. Apartheid. Khmer Krahom.
Wénhuà Dàgémìng. Lebensraum. Nakba.
O diabo é poliglota.


***

Ouvir ao outro é sempre uma auto-escuta;
Ouvir-se é sempre ouvir uma outra voz.
Pois não existe a voz absoluta,
Pois tudo o que transmite se transmuta,
Pois nós dizemos eu e eu digo nós.

Assim, a tua voz, mais que um ruído,
Tem ressonância em mim quando me soa,
Porquanto o nós é voz de um indivíduo
E, quando digo eu, eu me divido,
Eu me conjugo em todas as pessoas.


CECILIANA

Lancei as minhas naus sobre o deserto
E acompanhei os barcos bem de perto
As naus não foram a nenhum lugar
Como é que eu pude me afogar?


O BEM-TE-VI (UMA PARÓDIA ROMÂNTICA)

para Edgar Allan Poe e Emmanuel Santiago

Certo dia, fim de tarde, quando o sol fraquinho arde,
A pensar na minha vida, tanta coisa que eu vivi,
Debruçado na janela, vendo esta vista bela
Qual pintura de aquarela, um piado eu ouvi.
Um canto de passarinho, um piado que eu ouvi
Desse jeito: Bem-te-vi!

A beleza do piado me deixou muito encantado, 
Invadiu toda a minh’alma, tão feliz de estar ali;
Não me fora bom o dia, mas aquela melodia
Me encheu de alegria – Mas o pássaro não vi.
Onde estava o passarinho, onde estava que não vi?
– Onde estás, meu Bem-te-vi?

Onde estás, meu passarinho? Escondido no teu ninho?
Estás no pé de laranja? De limão? De sapoti?
Escondido no telhado? Onde tu tens te ocultado?
Só por ter te escutado, tanto eu me comovi!
O que tem neste teu canto que eu assim me comovi?
Me responda, Bem-te-vi! 

Pra que tanta timidez? Aparece de uma vez!
Quero ver toda a beleza que em teu canto eu já ouvi!
Deixa dessa camuflagem, quero ver a tua imagem, 
Qual a cor da tua plumagem. – Mas o pássaro não vi,
Insisti por muito tempo, mas o pássaro não vi, 
Só ouvia: Bem-te-vi!

E eu lembrei de minha Lenora, com quem eu, viúvo agora,
Num passado já distante, tantos anos convivi,
Pois também eu não a vejo, pois também eu a desejo,
Pois agora eu lacrimejo porque nunca mais a vi,
Nunca mais ouvi sua voz e nunca mais seu rosto eu vi,
– Nem te vejo, Bem-te-vi!

Como tu, ave canora, minha amada era cantora,
Tinha a voz bela e suave, a mais bela que eu ouvi.
Era um canto sobre-humano o seu timbre de soprano,
Mas num desatino insano dessa vida eu a perdi.
Crueldade do destino, muito cedo eu a perdi
Ainda jovem, Bem-te-vi.

Aparece, passarinho, pois eu vivo tão sozinho
Depois que minha Lenora já não vive mais aqui,
Depois que minha Lenora, me deixando, foi embora,
Tudo o que eu posso agora é  lembrar do que eu vivi
Ao lado de minha Lenora, é lembrar do que eu vivi
Com minh’amada, Bem-te-vi.

Mas quando eu ouvi teu canto, que me veio de algum canto
Que eu não sei dizer de onde, ah! como eu me comovi,
Me lembrei de sua beleza, da sua delicadeza,
Do seu rosto de princesa – Rosto como eu nunca vi!
O seu rosto era tão lindo como igual eu nunca vi,
Era linda, Bem-te-vi!

Mas agora eu vivo só, passarinho. Tenha dó
Desse velho tão viúvo, de tudo que já vivi.
Se a sua cantoria já me trouxe alegria,
Que alegria não traria poder ver o que eu ouvi!
Como outrora vi Lenora, quero ver quem eu ouvi,
Quero ver-te, Bem-te-vi!

Eu chorei, mas chorei tanto, não pude conter meu pranto
De alegria e de saudade, por ouvir o que eu ouvi.
Nesse instante, o passarinho de peitinho amarelinho
Vem voando bem baixinho, vem voando e entra aqui
Na minha casa, no meu quarto, vem e pousa bem aqui
Nesse canto o Bem-te-vi.

Pousa neste crucifixo cujo Cristo olha fixo
Pra mim, preso na parede do meu quarto. Eu o vi!
E eu atônito assisto ao passarinho no Cristo
Sem vergonha de ser visto a cantar pra mim aqui.
A casa se encheu do canto que ele me cantou aqui
Neste canto: Bem-te-vi!

Com a sua cantoria eu me enchi de alegria,
Como o Cristo aí pregado ao crucifixo, revivi.
Mas, do nada, ficou mudo de um silêncio muito agudo
Que deixou o céu desnudo. Foi então que eu ouvi
A sua voz bela e soprano – Minha Lenora eu ouvi
Me dizendo: Bem-te-vi!

Minha Lenora, tu me viste daí do Céu? Viste eu tão triste,
Tão sozinho desde o dia que fiquei aqui sem ti?
Também viste o meu pranto de saudade do teu canto?
E pra meu maior espanto – Eu vos juro – Eu ouvi
Minha Lenora respondendo. Sua resposta eu ouvi
Desse jeito: Bem-te-vi!

Como cai um corpo morto, eu caí ali, absorto,
Absorvido pela voz, pela resposta que eu ouvi.
Ainda morta, minha Lenora ainda me ama como outrora
Me amara – Mas agora minha Lenora eu não vi.
Eu ouvi a sua voz mas sua imagem eu não vi,
E nem mais o Bem-te-vi.

Como um anjo mensageiro que fez Cristo de poleiro
Foi que aquele passarinho aquele dia, bem aqui,
Me entregou uma mensagem e sumiu na paisagem
Novamente – Pois sua imagem já não via, eu só ouvi
O seu canto lá de fora, o seu canto eu ouvi 
Me dizendo: Bem-te-vi! 

Apesar do forte impacto, levantei dali intacto,
Como alguém que sobrevive a um raio, eu sobrevivi.
Mas não era o mesmo agora, tinha ouvido minha Lenora
Com seu timbre de cantora, de soprano eu a ouvi.
Mas agora só o silêncio em nosso quarto ali ouvi,
E, lá fora, o Bem-te-vi.

E já ia escurecendo, ia o dia já morrendo,
Vinha vindo já a noite – Logo eu me recolhi.
Toda aquela epifania que marcara aquele dia
E me enchera de alegria – Me cansou. Logo eu dormi.
Nesta noite, eu sonhei com minha Lenora… Eu dormi
E sonhei com o Bem-te-vi…

Muito bem ainda me lembro desta tarde de dezembro,
Como lembro de Lenora e de tudo o que vivi;
E por isso, com carinho, toda tarde, aqui, sozinho,
Venho ouvir o passarinho na janela em que eu ouvi
Esse canto transcendente – Esse canto agora ouvi,
Meus amigos: Bem-te-vi!

Luiz Renato de Oliveira Périco (1983 – Jacarezinho/PR) é bacharel em Letras pela FFLCH-USP e em Direito pela FDUSP. Vive em São Paulo/SP, onde é funcionário público. Em 2006, foi segundo lugar no II Festival de Letras da FFLCH. Em 2014, obteve menção honrosa no 22º Programa Nascente, da USP. Tem poemas publicados em antologias e revistas literárias, como Toró, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Lavoura e Sepé. Forma Amorfa é seu primeiro livro publicado, (Viv Editora, 2021), do qual são parte os 3 primeiros poemas.