“Meu nome é Legião” – um ensaio sobre Coringa (2019)

– por Pedro de Almendra

Várias vias podem ser adotadas para que se interprete o drama de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) em Coringa (2019): se, por um lado, pode-se focar nos problemas psicológicos do personagem e resolver o filme com um diagnóstico clínico e uma citação de Freud, por outro, igualmente válido, pode-se dar ênfase à sociedade à qual ele pertence e arriscar uma crítica à economia de mercado. Ambas as abordagens, a psicológica e a sociológica, apesar de justificáveis, atingem, quando muito, uma sugestão, algo convincente, mas insatisfatória. Nenhum desses problemas, acredito, ocupa um lugar realmente central no filme e aparecem, por vezes, de modo um tanto caricatural, beirando o substituível, o descartável: ratos gigantes, risos involuntários, elite cruel, etc. O lugar que ocupam aqui é, antes, o de moldura; servem de ocasião e não de motor ao drama.

Todas as tensões do universo de Coringa condensam-se no destino individual do protagonista e resolvem-se, juntas, em um só gesto.

Para que se compreenda esse processo de forma mais clara, é importante levar em conta que o filme obedece ao ritmo de uma tragédia grega. Segue, quase perfeitamente, o script clássico, com a agudeza de adaptar devidamente a mitologia grega à mitologia moderna — em vez de revelar a profecia de Tirésias, por exemplo, o roteiro faz sentir o peso do destino através de um antigo relatório médico. Por sua vez, o motor da tragédia permanece intacto: não a querela entre os deuses, mas a violência que progride à procura de um ponto final – um sacrifício.

René Girard, em A Violência e o Sagrado, salienta no início das tragédias gregas um estágio de caos, por ele definido como crise mimética: uma série de rivalidades generalizadas em que, tão espelhadas, equivalentes, nem mesmo as distinções entre pureza e pecado, culpa e inocência, fazem-se possíveis; as hierarquias e as instituições perdem sua força e todas as soluções parecem inalcançáveis, à exceção de uma. A ordem só se impõe, diz-nos Girard, na forma de uma vítima expiatória – não raro o herói da tragédia, como em Édipo —, capaz de reunir em si todas as rivalidades de modo único e converter o todos contra todos em um todos contra um. A menos que esse indivíduo seja encontrado, todos, haja vista que ninguém é inocente, podem ser vítimas da massa insaciada — na tragédia simbolizada pelo coro —; eles precisam do bode expiatório definitivo, de culpa inquestionável, escolhido pelos deuses, para, antes de tudo, salvarem-se.

O sacrifício, esse mecanismo — ressalto — satânico, é uma instituição real e nada fictícia. É um rito observável em quase todas as manifestações culturais e religiosas humanas (no cristianismo, porém, ele é denunciado, pois é visto sob a perspectiva da vítima, do crucificado); o que a tragédia grega faz é ensaiá-lo no intuito de replicar o seu efeito purificador na plateia. O tragediógrafo tem o triunfo estético de tornar o rito ainda mais bem acabado, justificado, de modo a amarrar a vítima expiatória (que, em uma situação real, pode muito bem ser inocente) à culpa, ao destino inevitável, provocando no público uma sensação de alívio em ver a ordem afirmada.

No filme, afirma-se, da mesma forma, a crise mimética: é desperta por Coringa com o assassinato dos três funcionários da Wayne Enterprises e progride desgovernada corrompendo todo mundo. Rivalidades e mortes intensificam-se à medida em que, um a um, todos os personagens em quem Arthur confiava ou que admirava (a mãe, a psicóloga, o palhaço com quem trabalhava, etc.) se mostram hipócritas, cúmplices, em alguma medida, do caos que ora atormenta-lhe o espírito. A jornada de Coringa se mistura ao percurso dessa violência: ele é quem a desperta, quem a prossegue, e quem anuncia o seu ponto final.

O conflito entre Arthur e Murray Franklin (Robert De Niro), o seu ídolo, porém, recebe certo destaque no filme e merece uma análise mais detida, pois nos permite observar uma natureza ignorada da loucura de Coringa: a quixotesca. Considerem: se Dom Quixote, por ter lido tantos romances de cavalaria, presumiu-se um cavaleiro real, saindo à rua para salvar princesas — que na verdade eram prostitutas —, invadir castelos — que na verdade eram pousadas — e lutar contra gigantes — que na verdade eram moinhos —, esse Coringa assiste a tantos programas de comédia que presume-se um comediante, mesmo sendo incapaz de fazer a própria mãe sorrir. Da mesma forma que Dom Quixote via, num balde, um elmo, Coringa vê a graça nas suas piadas ruins. Murray Franklin é o seu Amadis de Gaule, com uma importante diferença: ao contrário de Amadis, que a Dom Quixote era inalcançável, impossibilitando qualquer atrito entre os dois, Murray entra em conflito direto com Arthur, humilhando-o no programa e, depois, convidando-o para uma entrevista, no intuito de constrangê-lo ainda mais. Ele queria ser como Murray, mas o próprio veio impedi-lo e não aprová-lo, conforme sonhara. Decepcionado e já tendo efetuado a sua metamorfose, Arthur ensaiava suicidar-se ao vivo no programa; quando chega a hora, porém, opta por matar Murray. Procedeu de modo distinto do ensaio, mas nem tanto: pode não ter apontado a arma em direção à própria face, mas a apontou ao seu espelho.

Pouco antes do encontro com Murray Franklin, tendo acabado de descobrir que sua mãe, Penny Fleck (Frances Conroy) abusara dele em criança, Arthur a mata enquanto declara, resoluto: “eu costumava pensar que minha vida era uma tragédia, mas hoje entendi que se trata de uma comédia”. A sentença marca a sua transformação em Coringa; marca a sua descoberta quanto ao seu papel nessa tragédia: o de coro. Vendo-se privado de medicamentos e consultas, Arthur recorreu à mais primitiva das terapias, que acabou por ser adotada pela sociedade como um todo: a catarse. Ele, de fato, não vive em uma tragédia, mas a assiste, rindo, por entre o coro que o reflete.  Não só a assiste, passivo, como concede-lhe certa cor e trama no que a narra de si a si; não podendo ser, como o ídolo, um comediante, tornou-se um tragediógrafo. E o verdadeiro herói dessa tragédia que Coringa assiste é Thomas Wayne(Brett Cullen). No momento em que Arthur lê o relatório médico de Penny, é fechada em Thomas uma tragédia perfeita: no passado, Thomas demite e destrata a mãe de Arthur, que, mais enlouquecida, desconta na criança, fazendo-a crescer traumatizada e, sem culpa alguma, dar início à cadeia de violência que ora fere a cidade. É tudo fechado em um círculo perfeito na mente de Coringa. Coroando tudo, como tempero, há ainda a tensão gerada pela possibilidade de Thomas ser o pai biológico de Arthur.

Ao leitor moderno que for ler uma tragédia grega, esse efeito purificador do sacrifício costuma passar batido devido à distância que o separa daquele universo mitológico. Por isso, não raro, tende a lê-la como uma instigante obra literária, ou uma boa fonte de metáforas para problemas contemporâneos – oh, como nosso tempo é narcisista! –, esquecendo-se de atentar para o rito por detrás do mito, a dinâmica da violência que, apesar de milenar, ainda o envolve e o seduz. Coringa é tão somente possuído por essa dinâmica antiga: ante o sofrimento incompreensível que lhe fora imposto, não tendo feito nada para merecê-lo, buscou aquele que fez, o culpado. Qualquer um que, diante do mesmo impasse — a saber, o fato de que a conta entre as culpas e as dores não se fecha — , ignore a via contrária, que é o martírio, o “seja feita a Tua vontade” do Pai Nosso ou o resignado “That’s Life” de Frank Sinatra, seguirá a mesma lógica e também cairá na armadilha satânica, cuja premissa é a piedade e a conclusão é o sacrifício — “Eu sou a vítima e o algoz”.

Ante Thomas Wayne, todos os problemas, os da economia da cidade e os do espírito de Arthur, se encerram. Ele, basta que se observe pelas ênfases e cores ditadas por Coringa, está na raiz de tudo: da desigualdade social, dos ratos gigantes e dos risos involuntários. Coringa entrega à massa o bode expiatório perfeito. Contra Thomas Wayne a massa absolve Coringa — qual Barrabás —, adota-lhe o rosto e une-se-lhe em intuito e espírito; porque seu nome é legião.