Mete Gol – um conto de Marcel Novaes

Existiam terrenos baldios na cidade, mesmo em regiões não muito distantes do centro. Alguns deles se tornavam campinhos de futebol improvisados, cujos limites eram marcados pelo mato e não havia linhas. Não havia a grande área e muito menos a pequena. Também não havia impedimento. O que havia de sobra eram moleques dispostos a passar metade do dia jogando bola nesses campos. Jogavam seminus, sem calçados ou camisas, e viviam vitórias épicas e derrotas monumentais. Voltavam para casa no fim da tarde com as solas dos pés escalavradas e o corpo coberto de poeira colada com suor.

Não se cogitava em supervisão adulta. Lances duvidosos eram decididos de forma democrática, por aclamação, ainda que eventualmente houvesse uma ou outra tentativa de intimidação, na base do cospe aqui se for homem. Mas nenhum deles era homem. Eram moleques e para aqueles moleques só duas coisas importavam: o gol e o show. Ou seja, a vitória no placar e a vitória moral, para a qual uma bola no meio das pernas valia meio tento. Qualquer das duas só era lembrada até a partida seguinte, no máximo por dois ou três dias se fosse goleada tremenda. O sucesso era efêmero e não deixava registro, não contavam com fotos nem filmagens, não havia sequer torcedores. Um moleque podia se revelar craque de bola sem que seus pais ou professores jamais ficassem sabendo. Tinham que confiar na memória, cada um se esforçando para gravar seus feitos nas mentes alheias, às vezes à revelia do interlocutor.

— E aquele chapéu que eu dei no Clóvis, hein?

— Chapéu?

— É, quando estava quatro a três, dei um chapéu, ali no canto.

— Aquilo não foi chapéu.

— Claro que foi, como que não foi? Toquei a bola por cima, assim.

— Mas não pegou do outro lado, para ser chapéu tem que pegar do outro lado, foi só um toque por cima. 

Carlito era craque de bola. Reconhecido. Tocava entre as pernas como se nada fosse, parecia adivinhar o próximo movimento do adversário. Magro de tudo, magro de ruim, como dizia sua mãe, flutuava em campo. Em vez de tentar avançar em linha reta, rodopiava por cima da bola como um saci com duas pernas, riscando e rabiscando feito um compasso, e estava sempre de costas para o combate. Deixava o amigo na cara do gol com um toque inesperado de calcanhar. Irritava ao imitar Garrincha — naquela época se imitava Garrincha —, jogando com o corpo e deixando a bola parada. Era um virtuoso, perdia o gol mas não perdia o drible. E driblava para se divertir, para testar o limite físico do drible, numa disputa mais consigo mesmo e com a natureza do que contra o outro time, de modo que ninguém se sentia humilhado com suas piruetas. 

Assim foi que, quando o time de verdade que havia na cidade, com campo de grama, uniforme e tudo o mais, anunciou uma peneira, todos o incentivaram a participar. 

— É você, Carlito, chegou a hora. 

Outros frequentadores do campinho iam participar da peneira, mas a grande esperança era mesmo o Carlito. Se alguém ali podia fazer carreira como jogador, era ele. Mesmo assim, achou melhor não contar para os pais. Chegaria com a notícia já completa, tendo sido aprovado ou reprovado. Comentou o assunto com o dono do boteco que ficava em frente ao campinho, um cara legal que deixava os moleques irem ao banheiro e beberem água da torneira. Dá uma água, seu Jerônimo. Vai querer mineral ou torneral? Pergunta retórica, era sempre torneral. Quando Carlito falou da peneira, seu Jerônimo foi taxativo, colocou até o dedo em riste:

— Não fica dibrando à toa, hein, mete gol. Os homem quer ver gol!

— Pode deixar, seu Jerônimo, vou meter gol.

Conforme o dia marcado foi se aproximando, a maioria dos moleques foi desistindo. E aí, vai na peneira? Vou nada. Por que não? Não vai dar. Amarelou? Sim, amarelaram. Começaram a duvidar do próprio valor. Jogavam bem ali, naquele campinho, mas quem haveria de saber que surpresas encontrariam lá no campo de grama? Que craques viriam de outros bairros? Ninguém queria ser humilhado. Contavam com o Carlito para defender a honra do grupo, bastava ele, um só já estava ótimo. Um por todos e nada mais. Conforme for, quem sabe no ano que vem. Teria peneira de novo no ano que vem? Ninguém sabia, mas fingiam ser a coisa mais óbvia do mundo. 

Na véspera do evento, só Carlito e mais dois afirmaram que ainda pretendiam participar. 

À noite, quando espiou o quarto dele, a mãe viu Carlito fazer um rápido sinal da cruz.

— Tá pedindo o quê?

— Nada. Saúde.

— Sei.

— Amanhã vou sair cedo, mãe.

— Vai aonde?

— Jogar bola.

— Sei.

Quando Carlito chegou ao campo, pela manhã, nenhum dos outros dois estava presente. Tinham roído a corda. Nonada. Foi até lá e assinou o nome na linha pontilhada, ansioso pela oportunidade. 

Do lado de dentro, uns vinte moleques perambulavam e olhavam em torno, intimidados. Os que se conheciam formavam pequenas rodas e tentavam adivinhar quem seriam os verdadeiros craques. Um enorme fazia alongamentos, parecia um adulto. Um chute dele devia mandar para o hospital. Do outro lado, um baixinho que talvez tivesse metade do peso do grandão fazia caretas e corria sem sair do lugar para se aquecer. 

Carlito caminhou pela faixa de britas que circundava o gramado, ouvindo as passadas fazerem tchic, tchic, tchic. O sol estava baixo e ele pensou que seria ruim se tivesse que jogar com a luz nos olhos. Olhou para as arquibancadas, mas estavam vazias. Tentou imaginar como seria quando estivessem lotadas. Deviam caber mais de mil pessoas ali.

Um cara com agasalho de nylon entrou no campo, com um apito no pescoço e uma prancheta na mão. Todos os moleques se aproximaram dele. Com vagos movimentos do braço, ele os dividiu em dois times de dez. Mandou um dos times tirar a camisa, para poderem se identificar. Que se organizassem nas posições e começassem a jogar, mesmo que fosse sem goleiros. A peneira não era para goleiro. Um dos times reclamou ao descobrir que só tinha nove integrantes. Não tem problema, ele disse, a ideia não é ganhar a partida. Eu só quero ver como vocês jogam. Vamos lá.

Os mais agressivos foram logo gritando que eram atacantes, apontando o dedo para os outros e mandando que fossem para a defesa. Carlito não deu atenção, sabia que o que vale é quem se garante com a bola rolando. Um lance por entre as pernas era um santo remédio para curar empáfia, e essa receita nenhum médico prescrevia melhor que ele. 

— Ei, você aí! 

Voltou-se para ver quem tinha dito aquilo. Era o cara com o apito e a prancheta, e estava olhando para ele. Carlito apontou um dedo para o próprio peito.

— É, você mesmo. Não pode jogar descalço. 

Carlito tinha ido com uns chinelos já bastante estropiados, que deixara na beira do campo. Sempre jogava descalço. Não tinha escolha, já que seu melhor sapato era de ir à missa e o outro, mais gasto, era de ir à escola. Se usasse qualquer um dos dois para jogar bola, sua mãe seria capaz de lhe dar uma surra com um cabo de vassoura. 

— Por que não?

— Porque não. Você tem que sair, vem.

O homem fez um gesto com a mão, chamando. Carlito não saiu do lugar. Você é surdo ou idiota, perguntou um dos outros moleques, sai logo, anda. Um deles se aproximou com ar decidido e Carlito não teve dúvida de que pretendia empurrá-lo. Não queria criar confusão, então foi saindo lentamente. Ficou feliz por não ter contado nada aos pais sobre a peneira. Mas o que diria no campinho? Sentiu uma coceira no nariz e teve medo de chorar na frente dos outros. 

— Usa o meu. 

O moleque que tinha dito isso se aproximou. Tinha nos pés chuteiras novinhas. Carlito achou que ele fosse desistir do jogo e lhe dar as chuteiras, o que pareceu um sinal do céu, verdadeiro milagre. Mas não era isso. O moleque passou por ele e correu para buscar um par de tênis que estavam jogados num canto. 

— Só não esquece de me devolver na hora de ir embora.

O tênis era um número maior e Carlito não tinha meias, então apertou bem os cadarços e deu um nó duplo, com tanta força que a mão ficou marcada. Os outros esperavam ansiosos enquanto ele se arrumava. Todos os olhos estavam sobre ele quando se levantou e deu uma corridinha até o centro do campo. 

Demorou um pouco para se acostumar a jogar calçado. Não tinha a mesma desenvoltura, ainda mais no meio de tantos desconhecidos. E se um deles entrasse para machucar? Nos primeiros lances livrou-se rápido da bola, tocando para quem estivesse mais perto. Mas o corpo logo assumiu o controle e, quase sem perceber, já tinha tocado entre as pernas do primeiro desavisado. 

Aos poucos, começou a jogar como se estivesse no campinho, pedindo bola, rodopiando e dando passes de calcanhar. Sentiu que estava indo bem mas, mesmo depois de uns quinze minutos, ainda não tinha feito nenhum gol. Estava três a dois para o outro time. No próximo lance, chutou de longe, afobado. Errou e pediu desculpas. 

Cuspiu no chão. No campinho era proibido fazer isso, mas ali era grama então não tinha problema. Além disso, seu cuspe era só uma espuminha de nada, que brilhou no sol e logo foi absorvida.

No lance seguinte, dominou com calma e levantou a cabeça. Passou por um adversário sem dificuldade, tocou para um colega que devolveu de primeira na frente, triangulando outro oponente. Sentiu a confiança crescer. Ajeitou de leve para a perna direita e mandou o chute mais forte que podia. Errou de novo. Passou as mãos pelo rosto, irritado.

— Larga de ser fominha!

A reclamação era justa. Baixou o olhar e levantou a mão, contrito. O time evitou tocar para ele durante um tempo, o que o deixou nervoso. Volta e meia espiava na direção do cara com o apito. Será que o notava? Teria percebido seus dribles? Estaria interessado apenas em gols?

Um moleque que tinha ficado muito tempo na defesa pediu para vir para o ataque, e Carlito não teve como dizer não. Resignou-se a ficar mais próximo do próprio gol, um pouco emburrado. Não tinha jeito para ser zagueiro. Não tinha corpo. Para trás do meio campo, ficava mais perdido que cebola em salada de fruta. Vários minutos se passaram sem que ele interferisse muito no jogo.

A certa altura, o outro time fez um lançamento muito longo e ele pôde interceptar facilmente. Com a bola dominada, avançou. Driblou um, driblou outro. Uma mão levantada pediu o toque, mas cruzamento não era o seu forte. Seguiu em frente, pulando por cima do adversário que deslizou tentando um carrinho. Tinha espaço livre à sua frente, era o momento, finalmente, ia entrar no gol com bola e tudo. 

Mas o mundo de repente virou de ponta cabeça. O céu estava no chão, o chão estava por toda parte.

Levantou-se atordoado. Tinha sofrido uma falta desleal. Olhou em torno. A bola já estava rolando de novo, ninguém prestava atenção a ele. Deu alguns passos, sentiu dor numa das pernas. Um fio de sangue escorria, minando de um ralado pouco abaixo do joelho, deixando um traço escuro ao se misturar com o suor e a sujeira da pele. Decidiu ir embora, já tinha jogado bastante. Tinha dado o seu melhor e, se não era suficiente, paciência. Saiu discretamente, os passos novamente fazendo tchic, tchic, tchic nas britas. 

Descalçou os tênis emprestados e colocou-os de volta no canto de onde tinham sido tirados. Enfiou os pés nos chinelos.

Deu uma última olhada para o campo. Sentiu raiva dos outros moleques. Fazer gol na base da trombada, o que é que vale? 

Poucos metros ao seu lado, um passarinho ciscava o chão. Era todo marrom e dava pulinhos ao acaso. Uma hora o passarinho parou e olhou para ele. Virou a cabeça, intrigado, depois olhou o jogo, olhou para ele de novo, saiu voando.

Carlito caminhou na direção do portão. Era só voltar para casa e fingir que tinha sido um dia normal. 

— Tá indo embora por que, tá com vergonha? 

Era o cara com o apito e a prancheta. Carlito olhou para ele, sem saber o que dizer. O homem disse que o jogo ainda não tinha acabado. Carlito levantou e abaixou os ombros, sem dizer nada. 

— Vai desistir por causa de um tombo? Vai chorar?

Carlito balançou a cabeça de um lado para o outro. Não ia chorar.  

— Só vou embora.

— Como é o seu nome?

— Carlos. 

O cara anotou na prancheta.

— Pode ir embora.

Carlito se virou de novo na direção do portão. 

— Mas à tarde você volta.