Matrícula

            – por Mariel Reis

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Meu avô, comerciante, com razoável nível de escolaridade, referia-se à escola como um balcão de ensino. Parecia desmerecê-la em seu comentário, o que não era verdade. No seu tempo e lugar geográfico, as escolas públicas eram raras ou mesmo inexistentes. As classes mais abastadas, em geral os negociantes, matriculavam seus filhos em instituições particulares administradas por uma irmandade religiosa ligada à Igreja Católica cujos proventos cobrados pela educação revertiam-se em obras para os mais pobres e à própria igreja. 

            Estávamos os dois, numa madrugada fria, em uma fila interminável para a matrícula estudantil, sentados em cadeiras de praia, conversando sobre a necessidade de me desasnar. Levávamos uma garrafa térmica com café, uma lancheira com sanduíches preparados na véspera e um livro lido por ele em todo lugar, cujo assunto não era dividido comigo, que me encontrava ocupado por revistas em quadrinhos apropriadas à minha idade. Ele me olha comprido e, interrompendo minha leitura, tasca a pergunta: “Não é, pequeno, uma violência, a escola?”.

            A minha escola primária era acanhada, com um retalho de pátio. O uniforme pinicava e lá certamente havia uma coisa errada: todos pareciam deprimidos. As primeiras letras que aprendi foram ministradas por meu avô, em casa. Sempre severo, sem tolerância com o erro. A cartilha me entrou toda no cérebro, acompanhada da tabuada, com rapidez. Evitava altercações com meu educador que, toda vez, me punia com o oitão da parede. Sentado em banco alto, repetia toda a lição perdida. Meu avô, com o passar do tempo, suavizou-se, bania de si o travo amargurado da disciplina jesuítica.

            “Então, pequeno, não é uma violência?” Repetia a pergunta. Era de manhã. Os portões da escola estavam fechados, embora um ou outro funcionário, desembarcado da condução, se conduzisse para o desjejum na padaria quase defronte. O livrinho lido por meu avô parece ter reformado a sua opinião quanto à violência da educação recebida nos bancos escolares. Ele parecia odiá-la. Serviu-lhe durante muito tempo, não negava, essa educação, mas o destempero das violações e das imposições sofridas para a correção do espírito tornava o educandário um calabouço ou coisa pior.

            Um menino lerdo de sono alegrava-se com a retirada das correntes do portão. A escola abria e a fila agitava-se. As cadeiras de armar eram recolhidas sob a vigilância do sol forte da manhã, que dissipava o resto de trevas. “Aquele ali parece se comprazer com o torniquete que levará”, disse meu avô, sombrio. Olhava meu único documento, minha certidão de nascimento, e uma embalagem com três pequenas fotografias tiradas no lambe-lambe. Subia-me um discreto otimismo, tomando meu rosto.

            Comemos os sanduíches e tomamos o café. “Não me parece disposto a largar de mão a besteira, não é, pequeno?”, ele indagava. Como largar de mão a besteira? A ideia se afixou de modo irremediável na minha cabeça, nem por ferro seria possível tirá-la de lá. “É o último apelo que lhe faço antes da forca…”, anunciou. Não avistava patíbulo algum, nem me convencia da tortura de que me alertava. Diante da secretaria, com a papelada em mãos, quase na minha vez, o menino à minha frente parecia matriculado num internato, e mostrava-se abatido. Era como se súbito tivesse perdido a infância, entre carteiras e cadeiras — árvores defuntas que outrora, embora não se possa vislumbrar nenhum indício, esbanjaram folhagens verdes e frutos suculentos.


            Estava tudo claro. Diante do verdugo, caminhando rumo à imolação, titubeei inútil e timidamente.  Os olhos de meu algoz eram verdes, uns olhos de verde-mar, e com lentidão submergiram meu espírito na cidade dos afogados…Ó Nossa Senhora dos Afogados, gemi contrito, de mim a mim. Meu avô resignou-se quanto à minha escolha, observando nossa interlocutora de voz suave e gestos pausados que explicava o objetivo da instituição a que servia. “Pode ser que o diabo não esteja mais por aqui, pequeno”, pôs as mãos em meus ombros. “Ou que ele, em suas artimanhas, tenha ficado mais bonito”, completou. “Ainda há tempo…”.

Mariel Reis é contista e vive no Rio de Janeiro. Participou de diversas antologias literárias. É autor de Vida Cachorra (Ed. Usina das Letras)