Le hasard est le dieu des imbéciles
Georges Bernanos
“O homem que certa vez disse preferir ter sorte a ser bom, entendeu profundamente a vida. As pessoas temem confrontar a realidade: grande parte da vida depende da sorte. É assustador ter de admitir o quanto [dos nossos destinos] está fora do nosso controle. Numa partida de tênis há momentos em que a bola atinge o topo da rede, e durante uma fração de segundo fica-se na dúvida se ela irá avançar ou cair para trás. Se tivermos um pouco de sorte, ela avança, e vencemos; do contrário, perdemos.”
Assim começa Match Point, o melhor filme de Woody Allen.
Se você está lendo este texto e ainda não assistiu ao filme, eis aqui um breve resumo:
Chris Wilton é um ex-jogador de tênis sem muito talento que ascende na sociedade através do seu casamento com Chloe Hewett. Ele vê o casamento como uma oportunidade de obter segurança financeira e social, passando de outsider para membro de uma família rica. Valoriza mais do que tudo o conforto e o luxo proporcionados pela sua nova posição. Desfruta de um estilo de vida privilegiado, tem um alto cargo na empresa do sogro, uma casa grande, empregados sempre à disposição e constantemente é visto andando pelas ruas do centro de Londres segurando sacolas com roupas de grife. Quando Nola Rice, sua amante, engravida e ameaça revelar o caso dos dois, Chris vê essa confortável vida em perigo, e opta por uma solução drástica: o assassinato. A sua prioridade é a manutenção do status, mesmo que isso implique o sacrifício de sua integridade moral e a morte de pessoas inocentes.
Que há um paralelo entre este filme e Crime e Castigo, é logo evidenciado pelo próprio diretor numa cena em que o protagonista Chris Wilton aparece deitado na cama tentando ler o romance de Dostoiévski. Os desfechos dessas duas obras, porém, não poderiam ser mais díspares, com o filme se aproximando muito mais das tragédias gregas, em vez de ser uma história de redenção de caráter semi-bíblico.
I.
Chris Wilton acorda após ter adormecido em sua escrivaninha. A esposa, sozinha na cama, jamais saberá de nada do que aconteceu. Ele volta a escrever seus relatórios, mas ouve sons estranhos, de passos humanos e móveis sendo arrastados. Quem poderia ser? Não há mais ninguém na casa. Assustado, derruba em seus papéis o resto de vinho que havia em uma taça. Decide então ir à cozinha. Enquanto seca o rosto suado com papel-toalha, aparecem-lhe os espectros de Nola Rice e de sua vizinha, a senhora Eatsby. Estamos em uma espécie de sonho ou delírio. Chris confessa a Nola que não foi nada fácil matá-la e que, para seguir em frente, teve de aprender a ignorar o sentimento de culpa. A senhora Eatsby questiona por que também tinha de ser morta numa simulação de latrocínio, ao que seu assassino responde dizendo que “às vezes, inocentes devem morrer para a concretização de planos maiores”. Mas e o bebê que Nola esperava, filho dele? Prossegue o diálogo. Sua resposta, então, é ainda mais aterradora. Em defesa ao crime hediondo, evocando uma passagem de Édipo em Colono, diz que “jamais haver nascido pode ser a maior de todas as bênçãos”.
II.
Mais cedo, pela manhã, Chris livrou-se de todas as provas do crime jogando-as no rio Tâmisa. Entretanto, algo inesperado aconteceu nesse momento. O anel da senhora Eatsby bateu na grade e caiu do lado de fora do rio, na ponte que o atravessa. Esta cena é filmada em câmera lenta para enfatizar o seu significado e o seu papel no desenvolvimento da trama. É como a bola que atinge o topo da rede num jogo de tênis e cai do nosso lado da quadra, favorecendo o adversário. Posteriormente, vemos o inspetor de polícia responsável pela investigação acordar no meio da noite com uma certeza: Chris Wilton, que tantas vezes fora citado no diário de Nola e que tivera com ela um caso extraconjugal, é o culpado. Tudo dá a entender que Chris será pego e punido, mas é aí que tem lugar uma reviravolta, ou peripécia, na terminologia aristotélica. Se o anel tivesse caído no rio, juntamente aos outros pertences roubados, o caso estaria encerrado, mas tendo caído na ponte, acaba por ser encontrado por um jovem viciado em drogas que já tinha antecedentes criminais e vinha cometendo outros delitos. Isso leva a polícia a concluir, com sua falha e ineficaz lógica indutiva, que o rapaz é o criminoso responsável pelos dois assassinatos, assim inocentando Chris.
III.
Essa trágica ironia, com a prova incriminatória virando prova de inocência, é utilizada por Woody Allen para mostrar sua visão de que o mundo é injusto, os culpados nem sempre são punidos pelos seus crimes e o acaso se sobrepõe à moralidade. Mas a sorte de Chris Wilton é apenas aparente e há muito mais entre o Céu e a Terra do que supomos. De acordo com Agostinho de Hipona, o maior castigo que alguém pode sofrer é o de chafurdar na lama de seus próprios pecados. Chris, ainda que não tenha sido apanhado pela polícia, acaba condenado a viver com a culpa que ele em vão tenta ignorar, como podemos ver na cena final do filme, onde todos comemoram o nascimento de sua filha e falam do que esperam para o futuro da criança, menos ele, que, pensativo, exibe um semblante angustiado. Toda a segurança de ter escapado impunemente é falsa. Chris pode não ter sido encarcerado fisicamente, mas está preso à sua própria consciência atormentada. Nesse sentido, o Raskólnikov de Dostoiévski é muito mais livre, uma vez que a nossa liberdade reside no reconhecimento da dependência de Deus e na busca por redenção através do arrependimento. É aí que eles mais se diferenciam um do outro.
IV.
Raskólnikov é o Lázaro que, não morto fisicamente, mas sim em espírito, ressuscita quatro dias após um duplo homicídio e volta a professar a ortodoxia que abandonara; Wilton é um arrivista incapaz de arrepender-se de seus atos, num mundo aparentemente governado pelo acaso. A culpa irá atormentar Chris Wilton pelo resto de seus dias, e ele viverá num estado de desespero existencial, desconectado e alienado de si mesmo e dos outros, sem um propósito maior. Trata-se de uma condição que só poderia ser superada mediante o “salto da fé”, a respeito do qual fala Kierkegaard, isto é, a decisão de acreditar em algo transcendente mesmo sabendo que existe, ainda que mínima, alguma possibilidade de errar, saindo do âmbito puramente ético, de certo e errado segundo a lei dos homens, e entrando no religioso e espiritual. Mas no mundo concebido por Woody Allen os homens esqueceram da existência de Deus.
V.
Em Mighty Aphrodite,a influência dos gregos já era perceptível na adição do coro utilizado para satirizar as ações dos personagens. Embora apresente uma cosmovisão trágica, Match Point não pode ser classificado como uma tragédia perfeita, não no sentido da Poética de Aristóteles. Primeiro: nas tragédias tradicionais vemos personagens nobres que caem em desgraça devido a algum erro de julgamento (hamartía), cometido sem intenções maliciosas (dikaiosýne) ou eminentemente perversas (mokhtherían); no filme, o que reina é o egoísmo e não há nenhum elemento de nobreza. Segundo: não temos aqui um destino trágico e inevitável, mas sim uma ênfase no papel da sorte e do acaso, com o desfecho trágico acontecendo não por conta de eventos alheios à vontade dos personagens, mas por conflitos entre os seus desejos. Terceiro: a reviravolta que leva à impunidade acontece mediante uma série de eventos improváveis, não por consequências imprevistas de atos inocentes. Quarto: não há catarse nem expiação ou qualquer tipo de libertação emocional promovida pelas experiências do protagonista. Não podemos, portanto, dizer que o filme se trate de uma pura tragédia moderna.
VI.
Antes de finalizar, penso que um dos elementos mais interessantes do filme, e que foi o que mais me chamou a atenção inicialmente, é a sua trilha sonora. O gênero escolhido foi a ópera, por simbolizar o status e o glamour dos personagens, que frequentemente assistem aos espetáculos durante a história. “Una furtiva lagrima” (em português, “uma lágrima sombria”), composição de Donizetti, toca durante toda a obra. Mas sempre é tocado apenas o segundo verso da ária, de forma que o restante só pode ser ouvido nos créditos finais. As últimas palavras cantadas por Enrico Caruso dizem “Si può morir d’amor” (pode-se morrer de amor) e são usadas como tentativa de relacionar os acontecimentos apresentados — a incontrolável paixão pela amante, seu posterior assassinato e a destruição moral e espiritual de Chris Wilton.