A Joy of Influence: do ‘Pássaro da Noite’ de Henrique Nascimento – por Jessé de Almeida Primo

Sob o sol forte, com a mão em pala, olha o horizonte:
seu ônibus não vem. A outra mão segura a alça
da mochila puída, e nessa Adidas falsa
bottons de bandas rasgo e remendos escondem.

Cruza a perna pra trás e com a ponta do tênis
a panturrilha coça. O jeans grosso da calça
se estica, tensionando, e sobre o corpo traça
uma marca no azul: colina, polpa, pênis.

Usa farda e num bolso há manchas de caneta.
O tempo é seu aliado e, ainda assim, o espreita,
preparando a traição… Mas nada sabe disso.

Vai se esconder do sol sob os pés de manga; lá,
bota os fones de ouvido e há, suspenso no ar,
fruto quase maduro alheio ao próprio viço.

“Canícula”, in Pássaros na noite, ed. Mondrongo, 2022

Será este poema de Henrique Nascimento uma subversão do soneto e das formas fixas em geral, que se contamina com uma matéria que lhe é estranha, para o contentamento dos transgressores de cátedra? Sim e não. Sim, para dizer pouco e superficialmente, porque nele o primeiro verso tem sua expectativa metafísica sendo quebrada, de forma jocosa, já pelo início do verso seguinte. Um olhar expectante, como que enfrentando a luz do sol, por isso as mãos em pala, busca algo além do horizonte, na verdade busca algo que deveria aparecer já no horizonte, que é nada mais nada menos que um ônibus, que não vem, quase à maneira de um Juó Bananere sem o sotaque italiano do Bixiga. A isso se acrescentam outros elementos contemporâneos, típicos de uma juventude sem dinheiro, a “mochila puída”, um sonho de consumo que se revela menos por ter uma mochila que pelo fato de ser mera imitação de uma marca famosa, “Adidas falsa”, e cujo mal estado se procura atenuar com o uso de “remendos” e um item de moda contracultural, “bottons de banda”, num uso, não diria irreverente desses objetos, mas sim indiferente ou alheio à força simbólica de que essas bandas deveriam ser dotadas, em favor da utilidade mesquinha de servir para tapar buraco de uma mochila mulambenta, elementos esses, enfim, embalados numa construção refinada, mais ao estilo escultural do parnaso, valendo-se de inversões, meio que imitando uma construção latina, que era uma das marcas da literatura renascentista e da neoclássica, que tem a literatura greco-latina como modelo e que o mesmo parnaso buscou recuperar, a resultar numa feliz conformidade entre um fraseado culto, ainda que simples, e a melodia do verso. E o verbo repousa tão bem no fim desse verso, que se articula sem peias à melodia e ritmo buscados: “rasgo e remendos escondem”, além de uma bela aliteração aspirada.

No quarteto seguinte, a atenção deixa de ser o indivíduo se relacionando com o cosmo mesquinho de um ambiente urbano para se concentrar no corpo desse mesmo indivíduo, e deparamos dessarte a modelação verbal do corpo masculino, tal como Jean Genet modelando no seu romance o corpo de Querelle e de outros marinheiros.

Essa focalização no corpo que resgata a cultura homossexual mais em voga nos anos 50, na figura do já mencionado marinheiro, ao qual podemos acrescentar os trabalhadores braçais no romance Confissões de uma máscara, de Mishima, dos anos 40, que também explora essa imagem em outros romances,  imagem essa que influenciou na apresentação visual das estrelas do anos 50, sejam elas homossexuais ou não, entre os quais James Jean e Marlon Brandon, é uma preparação para o leitor constatar algo mais grave, constatação essa que se faz no momento certo, nos dois tercetos, que costumam fechar o raciocínio, como se espera de um soneto propriamente dito.

Tanto física quanto espiritualmente, há a aproximação do crepúsculo, e se a noite não chega – afinal “o tempo é seu aliado” –, por outro lado está à espreita, e faz-se apresentar por “e há, suspenso no ar,/ fruto quase maduro alheio ao próprio viço”, um elemento da natureza que é um símile perfeito, posto que de natureza muito diversa, e talvez por essa distinção, a forma como essa fruta ilustra o jovem que pouco se lixa para a passagem do tempo, só porque ainda é bonito, tem um funcionamento bastante expressivo, como se os dois, um que “bota os fones de ouvido” e outro, pendurado a uma árvore, “alheio ao próprio viço”, se tornassem um o espelho do outro, ou a tradução do outro, quiçá, seu duplo.

Reparem, a partir do segundo quarteto, que até chegar ao corpo e daí à reflexão sobre o envelhecimento e a passagem do tempo, o poeta, tal se vê no romance ou no cinema, apresenta ao leitor o cotidiano de um jovem colegial, que poderia ou não levar à descrição e reflexão que se apresentam nos versos seguintes. Não há nisso, porém, nada de arbitrário e menos ainda de ocioso, faz parte do engenho narrativo descrever um momento desinteressado, qual uma personagem contemplando uma paisagem ou conversando com uma garota ou com um amigo ou, esse é o caso, esperando um ônibus debaixo de um sol esturricante.

A pergunta com a qual dou início a este ensaio, força é dizer, tem algo de retórico, parece ser ociosa num momento em que tantas coisas acerca das formas poéticas já foram esclarecidas, ou como se diria numa expressão muito apreciada nas academias, “superadas!”. Por outro lado, ao que parece, esses esclarecimentos só se deram em nichos muito restritos, de modo que ainda há vanguardófilos ou neófilos que deploram a presença de um espírito obscurantista ou ultrapassado em quem faz sonetos, ou há quem acredita que, em se fazendo sonetos, resgata-se uma tradição nobre e, veremo-lo mais adiante, a poesia de Nascimento não se encaixa nem numa coisa nem em outra.

Henrique Nascimento é um poeta solar, da alegria e dos bons momentos da juventude. Ao mesmo tempo, por sê-lo, percebe, ou dá-nos a perceber, uma sombra ameaçadora.

No poema “Maresia”, em que o poeta explora muito segura e graciosamente o versos longos, após descrever uma farra com os amigos, naqueles momentos mais felizes da juventude, um encontro de turmas, por assim dizer (…Descíamos até a areia e, deitados, conversando, fumando um/ beck…), conclui com uma nota terno-melancólica, como que antecipando um sentimento nostálgico, meio que se vendo já como um homem maduro a recordar um doce passado: “Assim/ como na praia a criança nem imagina a hora de ir/ jamais pensava que isso tudo acabaria…”, em que vemos ecoar “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, e principalmente o proêmio de Espumas flutuantes, de Castro Alves: “E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara…” Se a palavra “beck” causa surpresa, ou ruído entre alguns, isso se deve mais a uma questão geracional; assim o era o uso do ópio do século XIX para trás; e, em segundo lugar, em ter aparecido num poema de construção mais rigorosa, uma vez ser mais associado à poesia marginal, na qual essa palavra aparece tão bem conformada quanto numa conversa de rua. Mais bem conformada em termos! O vocabulário e as formas (ou a abolição delas) eram frutos de uma decisão da parte dos poetas marginais, era um ato deliberado mesmo, concebido como uma afronta antissistema ou antissocial; os poetas marginais podiam, afinal, ser românticos, mas os poetas românticos, bons ou ruins, nunca abriram mão do cálculo, de criar um efeito visando uma reação específica. Nesse poema de Nascimento, a gíria “beck” parece mais ocasional que provocação (ao contrário do que acontece, porém, no poema “Juízo dissonante”, em que a palavra “maconha” causa deliberadamente um curto-circuito de grande efeito humorístico), como vemos, tratados de modo igualmente ocasional, os “bottons de banda” que servem de remendos a uma mochila no poema “Canícula” ou, ainda, primeiro em vernáculo logo em seguida em quicongo, num poema de Jorge de Lima publicado em 1928, “Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos?/Serra da Barriga,  / Serra da Barriga, as tuas noites de mandinga,/ cheirando a maconha, cheirando a liamba?”, ou no parágrafo final de Casa grande & Senzala, de Gilberto Freyre, associado a uma tragédia humana envolvendo os negros: “E sem achar gosto na vida normal – entregando-se a excessos, abusando da aguardente, da maconha, masturbando-se.” Contudo, aqui, embora associada a uma tragédia humana, não como algo específico dessa droga em si, e sim em pé de igualdade com outros prazeres, a bebida alcoólica e o sexo, que se tornam numa necessidade, perdendo assim o aspecto recreativo ou de celebração, tal como um “Cão que ante o pasto a ladrar mais se aferra//, – que só por devorá-lo vive em guerra…”[1] sem, naturalmente, experimentar nenhum prazer nisso.

Estou falando de um poeta muito jovem, que mais se identifica com um tipo de poesia mais refinada e, ao mesmo tempo, contrariando certa tendência do jovem bem formado que se isola numa torre de marfim para se mostrar superior aos que o cercam, não é alheio ao que outros jovens de sua geração vivem ou sentem, incluindo os que vivem à margem da sociedade, em periferias, por diversos motivos, entre os quais o abandono paterno mais extremo,  a que se acrescentam elementos histórico-sociológicos típicos das províncias que se isolaram da civilidade dos grandes centros, e por isso se manifestam de forma tão despudorada e impunemente sádica:

Dédalo, fosse me dado saber
quem tu eras e que tu me farias
sofrer mais nos cinco anos de presença
do que nos dezessete de tua ausência,
preferiria continuar ignorado.
Mas como eu poderia te ignorar?
Na favela em que eu cresci, antigos
frentistas dos teus postos não cansavam
de dizer: “cópia cuspida e escarrada.
Até o cabelo liso. Até o jeito…”
Enquanto eu crescia sob a tua sombra,
um pistoleiro teu dava quinhentos
reais por mês pra minha mãe, e foi
anos depois que ouvi da tua boca
que ganhavas mais de cem mil por mês.
Sem nem um pingo de remorso, para
minha mãe só esse cuspe, um cala boca.

A referência que fiz a algumas linhas a Casimiro e Castro Alves não é casual. Os poetas românticos, boa parte mortos antes dos 30, viviam a tensão entre a visão solar da vida e a proximidade da morte, mais ainda: a visão solar é justamente o feliz momento antes da morte, é o sol com a mesma propriedade da sombra, é o mesmo “sol que, além dos montes depois do dia radioso,/ caindo, some, e é como se dissesse/ que a aprazível juventude esmorece.”, diz-nos o poeta pela voz de Giacomo Leopardi. Essa solaridade se radicaliza, qual uma fênix,

Porém minhas feridas saro
pelos meus dotes apolíneos:
minha garganta sem catarro
transforma o Tártaro em Elíseos.

como se o aspecto solar estivesse articulado com o sofrimento e com a perversidade humana da mesma forma que o lírio se destaca no pântano, no qual tão confortavelmente se assenta:

Coisas que não se compram tenho aos montes
e lanço-as aos convulsos… Se Caronte
me encara, eu o ignoro. E, ainda limpo,
o Lete não se apossa de mim se eu
ecoo num riso o Apolo que há no Orfeu
junto ao dionisíaco Menipo.

Dito isso, “Canícula” não poderia ser reduzido a um tipo de subversão, porque isso diria pouco de um poema que é muito rico. É irresistível vê-lo como um procedimento disruptivo, pela forma como consegue articular com muita habilidade um vocabulário com acento beatnik, ou, cá no Brasil, característico da poesia marginal, que se esculpe em conformidade com as regras do melhor parnaso, como outrora o fizeram Rimbaud e Baudelaire na França, não apenas o vocabulário bem como a matéria, ao menos no tratamento inicial, uma vez que nos tercetos aponta para uma meditação grave que certo humor nos primeiros versos não deixa entrever, ou melhor, torna imprevisível.

E, permitam-me aqui abrir parênteses, reparem na analogia entre “Canícula” e “Maresia”, cuja diferença está em certa jocosidade daquele e no lirismo jovial – não juvenílico – deste. Ambos têm estrutura narrativa. Num, vemos o cotidiano ordinário de um jovem, cumprindo despreocupadamente tarefas cotidianas, enquanto ouve música, e sem que ele, qual o “fruto quase maduro alheio ao próprio viço”, se importe com isso (“O tempo é seu aliado”), paira a sombra do envelhecimento e da morte, “e, ainda assim, [o tempo] o espreita,/ preparando a traição”. Noutro, somos jogados de imediato no paraíso da juventude, num momento de felicidade, e essa sensação de estarmos participando daquele momento é garantida pelo fato de o poeta não usar recurso verbal algum que o ponha como testemunha desinteressada daquele momento, como se não houvesse um intermediário entre quem vê e o que é visto: Ele não diz que viu um grupo de jovens, alegres, que “balançavam as cabeças de um lado para o outro/ e jamais por negação…” E sim que “Balançavam as cabeças de um lado para o outro/ e jamais por negação”, qual um filme que nos faz ver imagens sem o recurso à voz em off. Há, sim, alguns momentos em que o poeta – ou sua voz – aos poucos aparece, sem contudo causar ruptura narrativa, uma vez que ainda não aparece como testemunha distante no tempo, mas se mistura àquele acontecimento, harmoniza-se com ele por meio do acréscimo da primeira pessoa do plural: “O sol lambia os nossos corpos jovens e sempre/ tínhamos uma textura de suor, de sal. Descíamos/ até a areia(…)” Mais adiante, e mantendo uma gradação suave, aparece a primeira pessoa do singular,  ainda localizada no tempo de que fala: “Quando as/ cabeças dos meus amigos  saíam da água, os seus/ cabelos escorriam para baixo: buscavam o mar…” (E esses cabelos que escorrem para baixo, como se buscassem ao mar já não seriam uma luta contra o tempo, como se o mar, qual uma sereia, os prendesse para não saírem daquele eterno presente?), até que por fim, a hora da verdade, porém sem quebrar a harmonia gradativa, e sem mostrar-se numa descida implacável do tempo, todavia como uma antecipação de algo por vir, expressa-se no destaque ainda maior dessa primeira pessoa, por finalmente se encontrar separada daquele grupo, na solidão do seu lar,

Assim

como na praia a criança nem imagina a hora de ir,
jamais pensava que isso tudo acabaria, que no fim
apenas ficaria (antes de dormir depois de um dia
de praia) igual o mar balançando dentro de mim.

mas sem a tensão exasperada de “O pássaro solitário”, de Leopardi, que Henrique Nascimento traduziu, em que o presente dorido e doce passado, ao qual certa amargura já se antecipava, se misturam, abrindo uma ferida: “E de todos os meus anos? E de mim?/ Terei remorso, enfim,/ E, desconsolado, irei recuar.”

Por fim, em “Canícula” o jovem colegial não sabe o que o espera ou não se importa com o que o espera, toda consciência da passagem do tempo está na voz lírica do narrador; em “Maresia”, a consciência dessa passagem encontra-se em um dos participantes do acontecimento narrado, isto é, por meio de diferentes operações líricas, a passagem do tempo permanece, impassível.

Fechando por fim os parênteses, nada há que a tradição, incluindo a das formas fixas, não absorva, tudo dependendo da capacidade de o poeta conseguir fazer a matéria respirar pela forma fixa que escolher, e talvez seja justamente aí onde a subversão na relação entre forma e conteúdo perde a importância em favor da capacidade de se colocar um conteúdo específico dentro de uma forma específica. José Guilherme Merquior – comentando Carlos Drummond de Andrade – disse que “o estilo grotesco se serve da comicidade como arma antitrágica, mas não elimina a consideração séria, problemática do mundo. O humor grotesco nada tem de irônico; não ridiculariza  seu objeto a partir de uma certeza superior tranquilizadora.”[2] No caso, não há em “Canícula” o elemento grotesco, mas algo da matéria que ainda se considera inusitado, o sentimento contemporâneo que se expressa por imagens igualmente contemporâneas, e é preciso dizer que o modelo literário para essa vertente da poesia não é exatamente a poesia marginal ou mesmo a beatnik, mas sim os poetas decadentistas, alguns dos quais já fizeram parte do parnaso, como Verlaine, cuja presença se mostra desde a escolha do título “Pássaros na noite”. Acrescente-se a isso que o soneto, hoje tão associado ao que há de mais solene e atrasado, surgiu como uma manifestação revolucionária, sendo as suas formas, como são mais conhecidas, a petrarquiana e a inglesa, que imitam pela música das palavras um discurso argumentativo, uma das ilustrações mais evidentes de razão versus religião. Era já uma forma que, por assim dizer, dava seus primeiros passos para fora da metafísica mais mística, para fora da religião, era uma despedida do alegado obscurantismo da Idade Média e o mergulho no mundo esclarecido do Renascimento, posto que os autores que mais dominavam essa forma fossem ainda religiosos, entre os quais Dante e Camões, não é à toa que os parnasianos, num gesto progressista, bem irmanados à claritas iluminista, cultivaram essa forma contra o que havia de medieval e derramado no romantismo, derramamento esse que deu lugar ao espontaneísmo, que os modernistas de 22, afrontando os parnasianos, retomaram, contra as quais se insurgiu, por sua vez, a Geração de 45, dando-se início a uma nova modalidade literária, o samsara poético.

Henrique Nascimento é um jovem escritor que a um só tempo lida com uma tradição poética bem sedimentada por séculos de uso, com a linguagem e com o espírito de sua época, da mesma maneira que Camões teve de lidar com certa maneira de falar e de escrever a língua portuguesa do século XVI e também com a situação atual de seu país em relação ao grande projeto épico que se traduziu nas oitavas dos Lusíadas, num período em que os sentimentos gloriosos tinham ficado para trás e cujas virtudes eram já duramente questionadas, bastando recordar o antológico sermão de O Velho do Restelo a Vasco da Gama, no canto IV, nas estâncias 95 e 96:

“Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

“Dura inquietação d’alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!”

Logo, o que vemos em “Canícula”, e também nalguns outros poemas de Pássaros na noite, não é o uso irônico ou irreverente das formas fixas, a saber, o soneto, como não o eram as oitavas heroicas camonianas escritas num tempo em que o triunfalismo guerreiro começara, aos poucos, a perder o sentido. Até porque, quando se faz o uso irônico ou irreverente, não é porque necessariamente a tradição pareça irrelevante ou um elemento risível ao poeta contemporâneo, e que lhe não mete medo, pelo contrário, essa irreverência só se justifica porque a tradição assombra o poeta rebelde, que, para justificar o uso daquilo de que não consegue escapar, procura lhe conferir um ar ridículo. “Canícula” tem elementos cômicos ou quebra de forma jocosa uma expectativa específica, sim, ele todavia vai muito além disso: há uma conformidade tão perfeita entre a forma de dizer e o que diz, que se não consegue imaginar outra maneira de dizê-lo senão essa, tamanho é o engenho com que funde certo coloquialismo a uma construção verbal elaborada. Ou por outra, esse soneto retratando, com toques humorísticos, o cotidiano de um colegial, alheio a um futuro sombrio, cumpre exatamente a mesma função outrora cumprida por um soneto de Camões ou de um Gregório de Matos, para os quais as formas antes conformadas a temas e ideologias específicos se puseram a serviço de temas e ideologias que os colocavam em xeque ou a eles se opunham.

Não há entre o autor de Pássaros na noite e a tradição algo que se aproxime daquilo a que Harold Bloom chamaria de “anxiety of influence”. Pelo contrário, é como se a tradição, em vez de assustar ou inspirar algum tipo de irreverência, fornecesse os meios de expressão mais adequados para o jovem poeta pernambucano realizar sua própria obra e encontrar sua própria voz; o soneto, ou qualquer outra forma fixa de que se vale, não é uma oportunidade de revolucioná-lo ou de subvertê-lo, fazendo-o tratar de matérias que lhe são estranhas, mais encontráveis em meios de expressão contraculturais ou mesmo suburbanas e periféricas, é uma relação que se estabelece com uma linguagem contemporânea cujos ossos estão no melhor português que legaram os clássicos luso-brasileiros, e com o espírito próprio de nossa época.

NASCIMENTO, Henrique. Pássaros da Noite. Salvador: Mondrongo, 2022. O livro foi Finalista do Prêmio Biblioteca Nacional de 2023.

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[1] Inferno, VI, vv.28-30, trad. Jorge Wanderley, ed. Record, 2004

[2] Verso universo em Drummond, José Olympio, 1975, trad. Marly de Oliveira, p. 10.