Janeiro

-por Matheus Bensabat

Era dia cinco de janeiro, uma tarde em que os raios de sol, ultrapassando os limites da laje, penetravam discretamente pela fresta da janela, circundando a poltrona, quando o vi segurar a grade de proteção da maca, e, com as mãos flácidas porém vigorosas como sempre, pedia que eu chegasse mais perto, pois sentia medo, e a sua apreensão, a qual percebi pelo tom de voz, era enorme; queria tocar a minha mão como sempre fizera desde que eu nascera, quando ainda me encontrava numa incubadora com um quilo a menos no corpo miúdo.

Levantei-me e fui até ele. O corredor estava silencioso. Cessara o retinir dos carrinhos de limpeza, o eco dos passos das enfermeiras, o golpe seco das portas a bater, os gemidos dos doentes nos quartos ao lado.

Ele olhava para fora, comprimindo os olhos. A poucos quilômetros de onde estávamos, em um quarto de hospital na Zona Norte de Niterói, conseguíamos ver, ao longe, o Corcovado; e, no peitoril da janela, flores-de-cera cujas longas hastes formavam uma esfera. O aroma adocicado tornava-se intenso durante a noite, atenuando o forte cheiro dos desinfetantes.

Passava as manhãs na varanda, com as duas pernas apoiadas sobre a cadeira. O tronco, que cada vez mais parecia com o de um adolescente, ficava descoberto. Mantinha, a todo momento, a cabeça arriada, mirando o piso de pedra, as paredes, as grades da janela e, quem sabe, o céu lavado. Uma ou outra vez, para nos responder, mirava-nos, mas os seus olhos — vivíssimos! — nos deixavam entrever uma dor tão grande que olhá-lo defronte feria-nos. Dizíamos que tudo iria passar, quando operasse, recuperaria a vitalidade; estaria, mais uma vez — tivera, durante a vida, inúmeros problemas de saúde —, pronto para voltar às atividades habituais. Mas, no fundo, tinha consciência da sua condição. Compreendia os nossos esforços e agradecia-nos sempre, contudo não poderíamos, por maior que fosse a nossa vontade, sobrepô-la à Providência Divina.

Sentia, para se movimentar, enorme cansaço, que agora, na maca, fazia-o arfar, ora suspirando como criança, ora comprimindo o peito, como se nele fincasse um guindaste de meia tonelada.

Quando o feixe luminoso, tal qual um pequeno arco-íris, ultrapassou as extremidades da mesa de cabeceira, estendi-lhe a mão; ele segurou-a e, em pouco tempo, fechou os olhos. Por um instante, parecia ter adormecido, mas não demorou muito para voltar a abri-los. Abria-os e fechava-os várias vezes ao dia. Não sabia dizer se em algum momento cochilava, se sentia sono, se estaria ou não cansado. “Pode ter adquirido o hábito de fechá-los — os mais velhos colecionam muitos —, mesmo sem sono”, pensei.

Uma semana depois, enquanto eu aguardava a hora destinada à troca dos acompanhantes, entendi que o fazia para ver-se distante do cenário no qual estava imerso há mais de um mês. O único contato que tinha com o mundo era por meio das vidraças, que, na maior parte do tempo, se mantinham fechadas — por recomendação médica, o ar-condicionado deveria funcionar durante o dia. Fechando os olhos, recorria às suas lembranças e usava-as como amiga.

Encostei o antebraço na grade de proteção para checar a borracha de oxigênio, as válvulas da rede de gases, a quantidade de soro que ainda restava, quando alguém entrou no corredor, àquela hora sem nenhum movimento. Aguardávamos o fisioterapeuta que, às terças e quintas, costumava visitá-lo. Era o período de maior silêncio, além dos finais de semana. Medicado todos os dias pela manhã, o seu estado de saúde não exigia a presença constante de médicos e enfermeiras, o que explicava a ausência de outras pessoas dentro do quarto. As horas escorriam à míngua, entediando-o.

A copeira já estava no quarto ao lado; ouvi-a recolher os talheres. Segundos depois, bateu à nossa porta. Disse-lhe em voz baixa que entrasse.

Ao empilhar as cumbucas em que nos fora servida a sobremesa, olhou para ele e sorriu.

— O vovô está bem?

Ele levantou o polegar, demonstrando amabilidade.

— Não demora muito estou em casa.

— Se Deus quiser!

E saiu, mandando-lhe beijinhos.

Pouco tempo depois, fechou os olhos. Naquele momento, pude perceber que cochilava. Alterei a posição do travesseiro, de modo a acomodá-lo, e sentei-me. Não demorou para abri-los de novo e, após respirar profundamente, pôs-se a falar, embalado por uma estranha melancolia. Aqueles momentos eram os únicos em que, passados os efeitos dos ansiolíticos, conseguia se expressar com naturalidade.

Recordava-se da dura e fatigante infância na região do Vale do Café fluminense, evocando o pai, judeu sefardita, membro da comunidade judaica. “Ele gostava de comer húmus com pão árabe no café da manhã.”

Homem magro de expressão branda, imaginava-o muito parecido com ele, o que confirmei por meio de uma foto antiga. Usava um chapéu de palha, com o sobrenome bordado no forro, e vestia terno. Possuía pálpebras fundas, como se padecesse de algum mal, e espessas sobrancelhas, que se contraíam em arco. Traços marroquinos, em suma, de sua origem.

Certo dia — e conduzia a fala como se narrasse um épico —, ele construiu uma caravela em miniatura, colocando-a dentro de uma garrafa de vinho. O desenho primitivo fora elaborado em uma semana, no papel. Fizera os cabos do mastro em madeira; elaborara os traquetes com flanelas brancas, amarrando-as com barbante, tal como as velas. No entanto, adiava a conclusão, insatisfeito, até não poder mais — assim como o pai, o vovô esforçava-se para fazer tudo muito bem feito —, recomeçando o trabalho de talhe, encurvado na cadeira, em silêncio. Um mês depois, redesenhou toda a estrutura, com novas medidas, e usou produtos químicos para torná-la flexível. Ele enfatizou o dia em que o vira em frente ao lampadário, acabando, com um canivete, as imperfeições laterais. Depois, lixou-as: as extremidades e todo o corpo. Ao cabo de um mês, apresentou ao filho, com uma fita azul na ponta, a garrafa com a caravela a movimentar-se de um lado a outro, oscilando sem partir-se, ajustando-se ao formato da garrafa.

Narrou-me os detalhes com nitidez e precisão: imaginava ser impossível uma outra pessoa fazer algo semelhante.

Memória de sua infância, talvez a mais profunda e enraizada que conserva ao lado do pai. À sua fala, era possível perceber que a figura paterna exercia sobre ele certo fascínio. De sua mãe, “uma mulher belíssima e bondosa”, disse-me pouco, mas sempre em tom afetuoso, destacando a beleza física. Dizia que a amava muito. Perdera-a aos cinco anos de idade; morrera deixando seis filhos.

Aos sete anos, com a morte do pai, fora com mais dois irmãos para o Sistema de Atendimento ao Menor no município de Rio das Flores, perto de Vassouras, região sul do Rio de Janeiro. Os outros três se espalharam; cada qual foi para um estado. Ele, o mais velho, ficara responsável por cuidar dos mais novos. Acordavam cedo e tomavam banho frio, mesmo no inverno, e depois iam para o trabalho na lavoura. Plantavam ou colhiam. À tarde, estudavam. A professora metia-lhes na cabeça a tabuada, à força de cascudos e esporros. Contou-me os castigos os quais ele e os irmãos sofriam. A brutalidade irrefletida que os administradores infligiam às crianças órfãs, como se se alegrassem em vê-las padecer, impressionou-me pela frieza com que a perpetravam, sem maiores consequências. Boa parte dos internos eram infratores, adolescentes que viviam pelas ruas a praticar pequenos furtos. Tinham já a malícia dos malandros, apesar da pouca idade. Penso logo que o convívio dele e dos irmãos com os outros não poderia dar-se sem máculas; de um lado, meninos que viviam à larga, calejados pela experiência adquirida na rua; do outro, três crianças que mal conheciam o mundo. Saíam aos socos a ponto de arrancarem sangue uns dos outros, e o castigo imposto pela administração era severo. Consistia, muitas vezes, em deixá-los, à noite, imersos até o queixo dentro do mangue fronteiriço ao casarão. Das janelas, os mais comportados caçoavam dos que se debatiam de frio. As sanguessugas lhes grudavam à perna, de modo que eram obrigados a mergulhar para retirá-las, uma a uma, ao que elas resistiam. No dia seguinte, não conseguiam voltar ao trabalho, acamados. Com os pés inchados, mal podiam se erguer. E tudo sem medicação, sem tratamento. A tia Luna, uma parente distante, contou-me que às vezes ia até lá para dar-lhes roupas e sempre os via maltratados.

Poucos anos depois, deixou o patronato e foi trabalhar num armazém de um tio em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Também sofrera enquanto esteve lá. Trabalhava no caixa, e não recebia nenhum salário: davam-lhe comida e uma esteira a qual estendia no depósito destinado às sacas de açúcar e farinha. Aos finais de semana, para auxiliá-lo na reforma do armazém, era obrigado a percorrer as ruas do bairro com um carrinho de mão à cata de pedras as quais os pedreiros usariam para fazer concreto. Se retornasse com o carrinho vazio, batiam-no. Perguntei-lhe o ano. Ele não soube precisar, mas disse que tudo se passara por volta de mil novecentos e cinquenta. Contava, então, treze anos. Perguntei-lhe se não havia outra possibilidade, se por acaso não teria sido melhor deixar o armazém e voltar ao patronato. Respondeu-me que não, que as dificuldades enfrentadas naquele lugar eram preferíveis às do patronato. Sofria pelos irmãos, por não os ter levado consigo. Mais tarde, adulto, ajudá-los-ia financeiramente, prejudicando-se. O caráter ardiloso dos irmãos sobrepôs-se facilmente à sua boa vontade. Sentia-se, ainda, responsável por eles, e tal senso de dever se estendeu até a morte de cada um. A do primeiro o afligiu pela forma estúpida; a do segundo trouxe-lhe inquietações. Via-os partir: dos seis, apenas um estava vivo; vovô era o mais velho.

Permaneceu no armazém durante dois anos, quando a tia Luna o tirou de lá. Matriculou-o no Colégio Salesiano, que fica no mesmo bairro onde naqueles dias ficara internado — precisamente a poucas quadras de onde estávamos. Imagino que tenha sido alfabetizado em casa, com aulas ministradas pelo pai, ou no patronato. Nunca nos comunicou nada. É certo que lia muito bem, escrevia muito bem e tinha uma caligrafia muito bonita, da qual se orgulhava.

Levantei-me para ajeitar-lhe a camisa. Ele falava ainda, mas, em determinado momento, começou a mudar os locais, a trocar as datas, a confundir os nomes, e aos poucos rareou a narrativa. Por fim, perguntou-me, os olhos sempre vivos a despeito da fragilidade do corpo, sobre os meus estudos. Disse-lhe que tudo corria bem.

Logo depois, a copeira trouxe-nos o lanche da tarde. Ele não sentia fome. 

Os diuréticos e o anticoagulante mantinham-no estável, mas comprometiam, silenciosamente, o fígado e os rins, de modo que comia tão somente um pedaço de pão pela manhã com uma fina camada de manteiga. Desde a infância, umedecia-o numa caneca com café com leite. Muitas vezes o vi, nas primeiras horas da manhã, à mesa, submergindo o pão com os dedos em pinça. Deixava-o escorrer pela borda para depois, encurvado, levá-lo à boca, e comia sem pressa, olhando para o quadro que vovó comprara em Teresópolis — o viticultor seguia, com uma carroça, por meio de uma avenida de ciprestes; e, ao longe, a folhagem das videiras resplandecia sob o sol…

Ela deixou a bandeja na mesa e sorriu.

— Não demora muito estou em casa.

— Se Deus quiser!

Qualquer outra coisa embrulhava o seu estômago — as misturas pastosas da janta, cenoura e quiabo com peixe grelhado, beterraba e batata com carne moída, inhame batido com frango e feijão, e o suco, muito ralo, de caju ou de uva. Por vezes, no café da manhã, davam-nos geleia de framboesa com pão e biscoito de água e sal. À noite, por volta das oito e meia, a copeira trazia-nos uma pequena garrafa de chá preto, que ele não bebia em razão de perder o sono. Às dez, a enfermeira trazia-nos os remédios.

Em casa, esquecia-se de tomá-los. Listei-os numa cartolina, com letras enormes bordadas à hidrocor azul, pondo-a na porta da geladeira. Segurava-a dois pinguins de gravata-borboleta e, logo abaixo deles, um relógio suíço, vermelho, com detalhes rústicos.

O céu se transformou: das poucas nuvens de há pouco, imensos castelos pardacentos se formaram. As elevações entraram numa penumbra; do morro, víamos as casas desbotadas, a vegetação rala avançando ao longe, margeando outros bairros por meio das encostas.

Devolvi as canecas à bandeja e acomodei-o sobre o edredom. Ele tateava o colchão, procurando o fone de ouvido, o qual usava, sintonizando um radinho de pilha, para ouvir a missa.

Em seguida, vendo-o bem, sento-me e cochilo por alguns segundos. Tento não adormecer, mas, antes mesmo de encostar a cabeça no braço da poltrona, alguém me chama.

— Ele não consegue respirar e tem ânsias de vômito!

Desço correndo as escadas e entro na sala.

Deitado, ele não nos responde. E treme muito. Busco o oxímetro, coloco-o em seu dedo, mas o aparelho não me dá a taxa de oxigenação do sangue. Desligo-o, troco as pilhas, coloco-o mais uma vez em seu dedo, apoiando-o em meu braço.

Nervoso, abro a gaveta da cômoda e pego o aparelho de pressão. Fecho a válvula, ponho as olivas do estetoscópio nos ouvidos e bombeio a pera, freneticamente, até fazer o ponteiro dar uma volta completa no manômetro. Abro a válvula, e não ouço a pulsação. Mamãe pergunta-me se o aparelho está com defeito. Digo que não e me afasto.

Antes de sairmos, aproximei-me dela, e os seus olhos começaram a marejar, transformando-se em dois rubis cintilantes — as artérias oftálmicas se entrecruzavam, minúsculas, em torno da órbita avermelhada.

A enfermeira entrou com uma bandeja de alumínio com duas agulhas e três comprimidos brancos. Acordei com a voz suave:

— É para o senhor ficar bonzinho. — E sorriu, olhando-o.

As enfermeiras do Hospital Santa Martha são anjos que, após esta vida, estarão aos pés de Deus, com o jaleco transfigurado em asas, iluminadas pela luz empírica a entoar coros angélicos.

Em pouco tempo, comecei a vê-lo pelas janelas envidraçadas do CTI; as paredes azuis e os bips dos equipamentos que ouvíamos ao longe, do outro lado da porta automática, fechada à senha.

Ao lado dele, uma senhora entubada; um pouco mais à frente, divisando os leitos, uma mulher com um balão de oxigênio — o cilindro logo acima de sua cabeça. Olhei para o paramétrico: a oxigenação estava regularizada; no entanto, a pressão arterial, elevadíssima. O leito à nossa esquerda estava cerrado por uma cortina, e ao redor médicos e enfermeiras, de um lado a outro, com máscaras e luvas descartáveis. O horário de visita limitava-se de meio-dia à uma e meia, e dar-lhe almoço no CTI não era fácil: o cubículo comprimia-me, não havia espaço para encaixar a bandeja entre o colchão e o vão da grade. E não me permitiam arriá-la.

Ao limpar-lhe o canto da boca:

— Amanhã eu volto.

No dia seguinte, ele já não estava mais lá.

Foi num dia sete de janeiro. O domingo amanhecera frio, e a cerração encobria as casas. A neblina deu lugar ao céu de chumbo, e, às nove e meia, eu estava ao lado do ataúde, sentado no banco de madeira.

Aos poucos, as pessoas começaram a se organizar do lado de fora da capela; outras entravam e me cumprimentavam, oferecendo-me condolências, para em seguida cruzar os braços e mirar o chão.

— Meus pêsames, querido.

Tinham uma expressão austera e pesarosa.

O ataúde saiu numa estrutura metálica, que simulava um carrinho. Por pouco não choveu.

De volta à casa, silêncio. Vovó estava no sofá, com as pálpebras úmidas.

— Agora ele está descansando…

— Eu sei — respondi; e sentei-me ao lado dela.