A ficção assume o controle: “Ioga”(2023) de Emmanuel Carrère

– por Lucas Petry Bender

“Quando os personagens são vivos, realmente vivos, diante de seu
autor, este não faz outra coisa senão segui-los, nas palavras, nos gestos que,
precisamente, eles lhe propõem. E é preciso que ele os queira como eles
querem ser.”

Seis personagens à procura de um autor, Luigi Pirandello [1]

É impossível calar a voz da consciência; na melhor das hipóteses, pode-se dialogar com ela – e que melhor maneira de fazer isso senão através da leitura e da escrita? Em Ioga (“Yoga”, trad. Mariana Delfini, ed. Alfaguara, 2023), Emmanuel Carrère parte do propósito de escrever um breve manual da prática da meditação e da ioga, para terminar envolvido na rede de narrativas que são tecidas à medida em que escreve, passando, no trajeto, por uma profunda crise depressiva.

Fragmentado em inúmeros e breves subcapítulos que dinamizam a leitura, o livro estrutura-se sobre três grandes relatos pessoais: um retiro prolongado no interior da França para uma imersão na meditação e na ioga (as quais o autor pratica há décadas); uma crise depressiva tão severa a ponto de levá-lo à internação por meses num hospital psiquiátrico, com direito a tratamento por eletrochoques; e uma viagem à Grécia em busca da plena recuperação do gosto pela vida. Nos interstícios, breves mas potentes passagens sobre os atentados terroristas de Paris em 2015, o poder da música e da poesia, a crise dos refugiados na Europa, a busca pela verdade no relato pessoal e no registro dos fatos. Permeando tudo isso, no coração mesmo de um livro urdido ao modo já conhecido de Carrère, encontra-se a ficção.

Se a aparente impossibilidade de um ávido e curioso ocidental encontrar a quietude do corpo e, sobretudo, da mente, faz de Ioga um pungente ensaio sobre a vulnerabilidade humana, também faz com que a palavra, a literatura e a arte em geral ganhem proeminência diante das infinitas fraturas da consciência na contemporaneidade. A um só tempo admirando e ironizando a conhecida definição do pianista Glenn Gould, repetida várias vezes ao longo da narrativa, de que a arte visa construir um “estado de serenidade e maravilhamento”, Carrère dá testemunho do quão difícil é se fazer total e completamente presente no instante atual, como requer também a meditação e a ioga, e de como a mente deambulante e divagante do escritor (e do leitor) parece sentir uma permanente falta, uma incompletude, uma lacuna, uma fresta, um intervalo entre a realidade interna e a externa. Assim como o leitor, Carrère agarra-se nas palavras para não cair no fosso dessa incompletude e para não ser dominado pela “tendência poderosa à autodestruição”.

A COISA MAIS PRÓXIMA DA VERDADE

Escrever tudo o que nos atravessa ‘sem deturpar’ é exatamente a mesma coisa que observar nossa respiração sem modificá-la. Ou seja, é impossível. E, no entanto, vale a pena tentar”, sugere Carrère (pág. 61). Toda honestidade, porém, esbarra num limite em que desejo, ilusão e imaginação se mesclam e se entrelaçam, questão abordada diversas vezes ao longo da carreira de Philip Roth, por exemplo, geralmente diante de especulações sobre o suposto caráter autobiográfico dos seus romances:

Estamos escrevendo versões inventadas de nossa vida o tempo todo, histórias contraditórias porém mutuamente entrelaçadas, histórias que, falsificadas de forma sutil ou grosseira, constituem nosso domínio sobre a realidade e são a coisa que temos mais próxima da verdade.” [2]

Para além das semelhanças e diferenças entre as práticas da escrita, da leitura, da meditação e da ioga, para além mesmo da busca pela verdade ou pela essência da realidade, o que parece mover Carrère (assim como nós, leitores) – embora nem sempre de forma muito consciente – é um desejo vago mas potente de burilar um estilo de abordagem do sujeito com as coisas, de peneirar a relação entre a linguagem e a vida, de garimpar a realidade até que surja a pedra brilhante da ficção.

Em Um romance russo (2008), Carrère reconhece que “sinceridade e verdade são duas coisas diferentes, particularmente comigo”; é também naquele livro que conta que passou a fazer reportagens com o objetivo de escapar do confinamento físico e do labirinto mental que o ofício de ficcionista lhe impunha, queria “ir para o ar livre, para os outros, para a vida”. Entretanto, Ioga nos mostra Carrère alienado fisica e mentalmente justo num contexto em que estava afastado da escrita ficcional e aferrado à vida – possivelmente sem a clareza de que “Talvez o motivo último para metáfora, ou para a escrita e leitura de uma linguagem figurativa, seja o desejo de ser diferente, estar em outra parte”, conforme conjecturou o crítico Harold Bloom [3].

Uma visada geral sobre a obra de Carrère nos mostra que a estranheza da realidade, a transfiguração provocada pela ação do tempo, o caráter onírico, poético ou horroroso do destino, a transitoriedade das impressões, a liberdade da imaginação, as personas que aderem às identidades e expressões, o incessante monólogo interior da consciência, tudo isso decerto continuou a persegui-lo, forjando uma personalidade simultaneamente zelosa da veracidade narrativa e absorvida por expectativas romanescas.

É novamente Philip Roth quem melhor define a perspectiva diante da qual Carrère parece recalcitrante:

Leio ficção para me libertar de minha perspectiva de vida sufocantemente enfadonha e estreita, para ser atraído a manter um relacionamento imaginativo com um ponto de vista narrativo totalmente desenvolvido que não seja o meu. É a mesma razão pela qual escrevo.” [4]

Correndo sempre o risco de sobrecarregar suas obras com a obsessão por sua vida emocional, sua instabilidade bipolar e seu narcisismo incoercível, em Ioga Carrère encontra a medida do equilíbrio, dinamizando o texto por meio de variações de perspectivas e até de estilo (vide, por exemplo, o ótimo trecho redigido na forma modernista do fluxo de consciência, pág. 57-67). De qualquer modo, por mais autoconsciente que Carrère se mostre ao longo do conjunto da sua obra, parece faltar uma percepção mais aguda e abrangente sobre a ficção e sua relação com a imaginação e com a realidade.

Se a literatura, como definiu George Eliot, é a coisa mais próxima da vida, e se o nosso domínio sobre a realidade é fatalmente parcial, imperfeito e subjetivo, para nós, leitores de ficção, em última análise, não é determinante saber até que ponto uma narrativa livre é autobiográfica, ou de autoficção, ou baseada em fatos reais.

É significativo o ato falho de Carrère quando diz adorar (pág. 62) “o roteiro fantasioso de um filme de Jim Jarmusch no qual Bill Murray, ao descobrir que está condenado devido a uma doença incurável, se lança numa turnê visitando as mulheres que amou para transar com elas mais uma vez, uma última vez, antes de morrer. Se bem me lembro, todas aceitam.” O título não é mencionado, mas sabemos tratar-se da pequena pérola chamada Flores Partidas (2005), no qual o protagonista interpretado por Bill Murray não tem doença alguma e não está em fase terminal, mas sim em busca de um suposto filho desconhecido, e por isso procura cada uma das ex-namoradas, e não com o propósito de relacionar-se sexualmente (embora o faça com apenas uma delas). Aqui se nota o temperamento romanesco e entusiasmado de Carrère, que ilustra o amálgama de desejos, memórias e sonhos que formam as narrativas com as quais interpretamos a realidade.

VIDA INVENTADA

A recepção da força estética”, escreve Harold Bloom [5] a respeito da poesia e da ficção, “nos possibilita aprender a falar a nós mesmos e a suportar a nós mesmos” – com tanto ou mais propriedade do que exercícios espirituais ou terapêuticos, acrescentaríamos, pois a ficção coloca a realidade mesma em perspectiva, e não apenas as narrativas pessoais, transcendendo os limites do autor e do leitor e engendrando um espaço potencialmente inesgotável de relações entre todos os aspectos da humanidade, inclusive com todos os elementos que a imaginação humana é capaz de criar.

Outra manifestação nesse sentido vem do protagonista do mais recente romance de Michel Houellebecq, que lê para suportar uma penosa rotina de tratamento de saúde:

“(…) absolutamente indispensável uma obra de ficção, que contasse outras vidas que não a dele. E, no fundo, pensou, essas outras vidas nem precisavam ser cativantes, não era necessário ter a imaginação excepcional (…); só precisavam ser outras vidas. E também tinham, por razões mais misteriosas, que ser inventadas;” (grifo do autor) [6]

Independente de finalidades terapêuticas, existenciais, culturais, recreativas, ociosas ou de qualquer outro propósito (ou da sua falta), as aludidas “razões mais misteriosas” apontam para a insondável magnitude da ficção na vida humana. Em Ioga, a expressão de uma consciência mais apurada sobre isso é expressada pelo autor na parte final, quando constata que, ironicamente, “a ficção assume o controle” (pág. 257) de partes da sua narrativa (especialmente na caracterização de duas personagens), mesmo diante da sua busca obstinada pela verdade.

Diante do conjunto da obra de Carrère, o vemos confrontado com as agudas ironias da sua vida, que em Ioga o levam da felicidade à depressão, da meditação aos eletrochoques, de um retiro espiritual a um atentado terrorista; ou da conversão tardia à descrença (O reino), das férias na praia ao trágico tsunami (Outras vidas que não a minha), da busca improfícua por histórias estrangeiras aos meandros obscuros da sua própria vida familiar (Um romance russo). Mais do que uma vítima do acaso e da fortuna, mais do que um narrador de experiências de vida, acompanhamos um autor em busca da sua própria ironia fundamental, qual seja, uma poderosa desleitura de si mesmo, significativamente expressada em Ioga quando, após enfatizar tanto o seu compromisso com a verdade, faz retornar justamente a personagem fictícia para uma última cena, “e essa certeza de ter um acesso sem limites aos pensamentos dela, às fantasias dela, e ela às minhas, torna a situação extraordinariamente erótica.” (p. 262)

MARTHA ARGERICH C’EST MOI

Em entrevista, Carrère parece justificar-se ao dizer que quase tudo em Ioga é verídico, como se assim validasse o livro, pelo menos diante de uma ampla parcela do público, que espera consumir livros e filmes “baseados em fatos reais”, demonstrando, assim, a avassaladora pobreza de imaginação de parte significativa da cultura contemporânea, e gerando, em contrapartida, o equívoco de que a imaginação seja refém da fantasia de vampiros e bruxos mirins, hordas monstruosas medievais, super-heróis e congêneres.

Distantes de compreender Dom Quixote, refratários ao que há de imaginativo no verídico, e vice-versa, não hão de compreender Flaubert afirmando que “Emma Bovary c’est moi”, ou Anna Kariênina conquistando a simpatia de Tolstói à sua revelia, ou o poeta como fingidor de Pessoa, ou os personagens de Pirandello em busca de um autor, ou Philip Roth libertado através da ficção. 

Magnificamente quixotesco, nesse sentido, é um dos melhores momentos de Ioga, quando Carrère descreve o sorriso que surge na face da pianista Martha Argerich tocando Chopin – “durante esses cinco segundos nós vislumbramos o paraíso. Ela esteve lá, só ela, por cinco segundos, mas cinco segundos bastam, e ao vê-la nós temos acesso a esse lugar” (pág. 230). E, no entanto, era apenas um sorriso…

Consumando o ideal artístico de Gould (também pianista, curiosamente), naquele instante registrado em vídeo Argerich parece conquistar um estado de serenidade e maravilhamento – estado do qual Carrère se ressente, queixando-se do seu permanente desassossego e da sua incessante elaboração mental com palavras e frases. Mas como Argerich e Gould chegaram lá, senão através da criação e manipulação consciente de expectativas, da libertação criativa da imaginação, da constante e apurada elaboração da linguagem musical (também ficcional, a seu modo)? É no coração mesmo dessa atenção que reside a contemplação, dificilmente superior a cinco segundos de graça pura. Cabe ao ficcionista fazer perdurar algum brilho dessa epifania por páginas, capítulos, livros inteiros, e recuperar o permanente tempo perdido do instante presente, missão proustiana que está no cerne da música, da poesia, das artes plásticas, da contemplação estética.

É impossível calar a voz da consciência; na melhor das hipóteses, pode-se dialogar com ela – e que melhor maneira de fazer isso senão através da leitura e da escrita, senão através da suprema ironia da ficção, essa irrealidade tão misteriosamente autêntica quanto a consciência humana, esse universo enigmático em que nos desfazemos de nós próprios, e, no entanto, sentimos que somos mais nós mesmos do que nunca?

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[1] Trad. Brutus Pedreira, ed. Abril Cultural, 1977, pág. 127.

[2] Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013), trad. Jorio Dauster, ed. Companhia das Letras, 2022, pág. 237.

[3] O Cânone Ocidental, trad. Marcos Santarrita, ed. Objetiva, 2010, pág. 675.

[4] Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013), trad. Jorio Dauster, ed. Companhia das Letras, 2022, pág. 171-172.

[5] O Cânone Ocidental, trad. Marcos Santarrita, ed. Objetiva, 2010, pág. 45.

[6] Aniquilar, trad. Ari Roitman, ed. Alfaguara, 2022, pág. 431-432.