Incidentes Domésticos e outros poemas – por Miguel de Unamuno (traduzidos por Gabriel Campos Medeiros)

Traduzidos e Comentados por Gabriel Campos Medeiros

Não faz muito tempo Gabriel Coelho Teixeira publicou, pela editora Eléia e em minha tradução, o Diário Íntimo do patrono desta revista, esse distinto e complicado D. Miguel, de quem, num inesperado instante de inspiração, outro Miguel dissera:

E falava com Deus em Castelhano.
Contava-lhe a patética agonia
Dum espírito católico, romano,
Dentro dum corpo quente de heresia.

E alheio a essa coincidente confluência de literatos que, de aquém- e de além-mar, de hoje e de ontem, muito trabalho têm dado a seus onomásticos angélicos, porém com certeza postado ante o vulto andante do primeiro grande Miguel de Alcalá, um membro da Real Academia Española, sr. Manuel Alvar, apontara já, não só porque datados de períodos aproximados mas sobretudo porque segundo ele um é a experiência imediata e quotidiana que o outro transmite com maior objetividade e amplitude, apontara já o parentesco entre o Diário e as Poesías donde extraio estes Incidentes Domésticos que junto com outros três poemas da mesma coleção traduzo.

E parentesco que se nos revela recendente ao folhearmos aquelas páginas íntimas na companhia destes versos brancos para aí identificarmos que segredo é esse que um pai não quer contar a um filho, ou que marcantes crises são essas que se entranham com igual furor tanto sob a luz a óleo do escritório, em passo leopardiano com guiamento de Padre Faber, como sob o arrulho das aves no ar livre e escuro que sufoca a terra úmida, em preparação ao vácuo abismal da morte, ou ainda que solidão, que sono, que fado são esses que povoam toda uma vida, toda uma arte que se recusa a ser comédia, que quer ser trágica, pouco afeita à cidade dos homens e ao teatro do mundo, rival de penduricalhos quer condicionados por rimas casuais quer impetrados por meras razões estetistas, amiga só do ritmo da própria alma devotada às paisagens interiores e exteriores.

E parentesco que se estende também às novelas, ou melhor, aos navilos, devo dizer, aos nebulos, isto é, às nivolas Niebla e Abel Sánchez, quando nesta se estudam os pecados inveja e soberba, e a atração invencível pela figura feminina enquanto musa, e a incurável angina na garganta, e quando naquela se desenham os amores materno e conjugal como consolação à aflição congênita do homem religioso e de gênio “em singular batalha contra a acédia”, como escrevi no poema que saiu como prólogo à tradução do mesmo Diário, e também quando naquela a criatura se inspira no Criador para criar o incriado pela imaginação, esse sujeito a que o menino dá vida, como a Augusto dá vida e lha propõe arrancar o autor, e também quando naquela quanto “mais se unem” os corações de dois amantes “mais se separam as cabeças”, tornando-se um só coração “escravizado”, tudo isto porque “essas penas e essas alegrias vêm encobertas por uma imensa névoa de pequenos incidentes, e a vida é isto, a névoa.”

Antes que “o sol se faça cinza”, sejam névoa agradável as versões que ofereço destes poemas incidentais.

INCIDENTES DOMÉSTICOS

I.

Quando cheguei, era noite;
em casa, tudo dormia:
tudo em paz, tudo em silêncio
repousado e confiante.
Só se escutava o respiro,
respiro de grave calma,
dos meus filhos que dormiam
largo sono, de uma vida.
E era oração seu respiro,
respirando em sonho oravam,
com a consciência nos braços
do Pai que lhes vela o sono.
És a antevisão, ó sonho,
da vida que não acaba,
vida pura que respira
sob esta outra, que passa

II.

Estendido na cama,
como no túmulo,
espero vir o sono;
do meu lado, em seu berço,
o menino jazia,
e além, ao fundo
— no meio um aposento —,
sob uma lâmpada
de verde, manso lume liquefeito,
três formas entrevi,
e, prostradas as três, balbuciavam
ave-marias.
Eram-me a mãe, a irmã e a mulher,
como distantes
deste mundo e do outro, o que esperamos,
no limiar.
Através desses quartos silenciosos
onde — a alma perdida
dos corpos frágeis —, em repouso, ao fundo,
os meus filhos, imersos,
jaziam, os sussurros
passavam, permeando o seu alento,
eu sem sonhar sonhava:
estarei morto?
Da eternidade uma visão me davam,
um quadro de pintura,
um símbolo de vida.
Senti, além da escuridão, do berço,
algo como um suspiro:
e o que ali se movia
buscando um novo sonho era o menino.
E estendi minha destra
para tocar-lhe o corpo
e assegurar-me assim de que, em seu seio,
as trevas abrigavam
do meu menino o vulto,
do meu menino o peso.
E ao sentir-lhe o calor
do alento em minha mão
pensei, quase sonhando:
não estou morto!
E no entanto as três formas
permaneciam imóveis e curvadas
como uma coisa só,
e a luz vinda da lâmpada
também imóvel,
e imóvel o silêncio,
e do âmbito todo
— dir-se-ia algum incenso,
invisível, sonoro —
lentas surgiam,
como o orvalho da terra sobe ao céu,
ave-marias.
Senti a eternidade… e, então, o nada.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ao despertar, de dia,
para lá das distâncias liquefeitas
onde as recordações enfim se fundem,
imóvel, verde, uma visão tranqüila
perdendo-se cantava
ave-marias.

III.

É noite em meu escritório.
Em solidão profunda, ouço o rugido
do meu peito agitado
— é que se sente só,
é que se sente alvo da própria mente —,
ouço correr o sangue
cujo leve sussurro
enche o silêncio.
Alguém dirá que cai no fundo o fio
líquido da clepsidra.
É noite em meu escritório, aqui estou só;
calam-se os livros,
minha lâmpada a óleo
banha de luz pacífica estas páginas,
luz de sacrário;
calam-se os livros;
pensadores e doutos e poetas,
seus espíritos dormem;
nisso, sinto como se, cautelosa,
a morte me rondasse:
de vez em quando, vejo se me espreita;
perscruto a escuridão,
cuido de descobrir, entre outras sombras,
sua vaga sombra,
penso na angina;
penso na madureza: dos quarenta
passei dois anos faz.
É uma dominadora tentação
a de que, em solidão, seja o silêncio
o algoz que me golpeia
(o silêncio e as sombras).
“Daqui a pouco”, digo
de mim para comigo, “quando vierem
anunciar-me o jantar,
talvez, pálido e frio,
encontrem este corpo
— essa coisa que fui, essa que espera —,
como estes livros, silencioso e imóvel,
já interrompido o sangue:
na veia, a endurecer-se;
e o peito, silencioso,
exposto à doce luz do brando óleo —
lâmpada funerária.”
Temo que, terminadas, estas linhas
como as de um testamento
alheio soem,
mas são pressentimento misterioso
vindo do além sombrio,
ditadas pela ânsia
de vida eterna.
Termino-as, e estou vivo.


Véspera de ano-novo, 1906

IV.

Menino, cria não ter testemunhas:
desenhava na toalha
que cobre a mesa;
traçou nela um sujeito primitivo,
como nas toscas
gravuras em que os homens das cavernas
lutavam por um osso.
E enquanto dava vida
às feições do desenho pré-histórico
cantava, assim baixinho:
“Sou de carne, sou de carne, não pintura,
sou de carne, sou de carne verdadeira…”
Maravilhas da arte!
Fez falar o sujeito
proclamando-o real, um ser vivente!
Ao recriar-se, em sua obra,
como menino eterno,
faz acaso outra coisa o Sumo Artista?

V.

“Quero viver sozinho”,
Pepe dizia,
“assim não me penteiam, nem me lavam”,
e Marita ao ouvi-lo:
“Sozinho? Então te perdes
e logo choras”.
Diziam as crianças,
e eu, seu pai, pensei:
quem vive só
se perde e chora só: ninguém o ouve;
mas, quem não vive só?
Sós vivemos nós todos,
cada um consigo mesmo,
solidão — nada mais — é nossa vida;
andamos todos perdidos, chorando;
ninguém nos ouve.

VI.

Não me olhes, meu filho, assim nos olhos,
não quero que desvendes meu segredo:
e seja a minha ausência
veneno da tua vida miserável.
Jamais, jamais a sombra do teu pai
te legue o sol de uma alegria doce.
Eu te disse alegria?
Não: não te quero alegre,
pois nesta terra
para viver alegre
é preciso ser santo, ou imbecil.
De imbecil, Deus te livre,
e de santo… nem sei que te dizer!

VII.

Anda abrir o braseiro,
que o frio aperta:
nestes dias o sol dura tão pouco!
E pensar, ó meu filho,
que o sol se fará cinza
e que, no céu, de Deus a face imensa
será um memento!

VIII.

Meu filho lia Quentin
Durward, perto do fogo;
assim também, outrora, o lera eu,
e assim meus netos
o haverão de ler, talvez, um dia.
E assim vive Quentin, como vivemos
nós outros, seus leitores.

OUTROS POEMAS

TUA MÃO É MEU DESTINO


Faltam-me forças para andar, coloca
tua mão sobre meu ombro, assim recobro
forças, com tal contato;
levar-te-ei pelos caminhos largos
e marcharei seguro
guiando-me em teu passo.
Tua mão é meu destino;
sinto-a sobre meu ombro, acabrunhado
já não sou, mas tão leve
que asas lhe nascem como por encanto.
Quando sobre meu ombro
rendido pões com paz tua branda mão,
parece que me elevas
acima do meu fado,
esse implacável.
Sinto teu pulso em mim quando tua mão
sobre meu ombro dorme,
sinto teu coração e sem querer
sinto meu coração, o meu, o teu,
o dos dois, nosso escravo!
Tua mão é meu destino;
o sentir seu aperto é como um raio,
renasce em mim a vida,
renasço em ti.
Forças me dás, e luz, e luz às forças
quando te apoias em meu ombro, o espaço
se me abre, sem caminhos
e por todos os lados.
A luz carrego dentro,
carrego dentro o faro
que se acende ao sentir sobre os meus ombros
de tua vida o contato.
Tua mão é meu destino;
e quando a sinto em mim, transborda o vaso
do coração, seu sangue
é o que me acende, e queima meu cansaço,
à sua luz se me abre
por todo lado a senda.
Tua mão é meu destino.

MÚSICA


Música? Não! Não nesse mar balsâmico
me adormeças a alma;
não, não a quero;
não me feches as chagas — meus sentidos —
ao infinito abertas,
sangrando anseios.
Eu quero a crua luz, que faz tremer
os filhos do crepúsculo,
sonhos mortais;
dá-me os robustos, com que à luz radiante
de um meio-dia pleno
sonhe acordado.
Música? Não! Não quero esses fantasmas
flutuantes e indecisos,
sem esqueletos;
os que projetam sombra e cujos ossos
minha mão faz ranger
são os que quero.
Esse mar sonoroso me adormece
com sua cadência de ondas
o pensamento,
quero-o batendo os cascos neste estábulo
com suas asas nervosas,
cativo pégaso.
Sim! A música canta, sim!, sussurra-me,
e nesse sim perdido
perco meu rumo;
dá-me o que me dizendo não! adoce-me
a vontade reavendo
todo meu esforço.
A música é repouso e esquecimento,
tudo nela se funde
fora do tempo;
é nela que desaba todo fim,
e a vontade adormece,
já sem seu peso.


CANTA A NOITE


Enquanto vão subindo ao céu da selva
as estrelas escutam, em silêncio,
cantar o rouxinol, a voz alada
entre as entranhas do que é noite augusta.
Soam cantos de amor, ao céu aberto
que o sol encerra: à aurora, com suas chaves
de ouro escaldante; aí, cantam as trevas.
Canta a noite; e arrulha o doce sono
dos filhos desta vida, já rendidos,
sono que em seu regaço acolhe-os todos
sob um manto suave, um manto negro.
Não fazem sombra um ao outro os seres,
nem lutam pela luz; todos se abraçam
no regaço daquela boa mãe.
Canta a noite; e arrulha o doce sono
dos filhos desta vida, já rendidos;
canta a noite; e derrama, com seu canto,
nos doentes corações, o esquecimento;
canta a noite; e então lava, com seu canto,
as visões que, ante o sol que o céu encerra,
o silêncio mortal do meio dia
submetera a esta alma angustiada.