Il Castrato – um poema de Gabriel Campos Medeiros (com comentários do autor)

IL CASTRATO*

Faz tempo aplaudem sua voz estéril,
não entrevêem quão morto está por dentro
Tristeza enorme o acomete às vezes,
canta. Detrás do pano,
como criança chora.
A gente espera dele um espetáculo,
busca se distrair.

Sobe no palco, o palco é seu patíbulo
e seu carrasco, o público:
“Dêem-me logo a corda”,
quer dizer, e então diz:
“Senhoras e senhores, boa noite;
sejam muito bem-vindos: esta noite
lhes vou apresentar meu novo número.”

E começa, e sorriem, e o consideram
um genuíno artista;
ser humano dotado de talento
raro, tipo comum antigamente.
Mas não entende o que isso quer dizer,
se é só mais um tenor
às portas do amanhã.

Que poderá fazer com tal talento
(pergunto). Não é prêmio
que possa aliviar as mãos nem prato
de comida que nutra o corpo. Ora,
por que é que lhe dizem essas coisas
não sabe. E sua alma
celebra sem motivo.

Canta. Primeiro filho
da casa de seu pai,
ponto final da estirpe
não obstante orgulho da família
(eis o atroz retrato que lhe pintam).
“Eu antes fosse sábio sacerdote
ou humilde aprendiz de carpinteiro.”

Meu maior medo é que um ofício inútil
seja seu fardo em vida:
“Eu antes fosse escravo de um senhor
bondoso, aceito o cárcere
provisório.” Está preso às fantasias
e folias do século,
desconhece seu real papel no mundo.

Quando o velho empregado da mansão
varrer da terra esse seu canto impúbere,
cantará pelas ruas
a troco de sustento.
“Agora, aplaudem minha voz estéril
e sinto que sou parte
de uma efêmera farsa de mim mesmo.”

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* Este poema é relato de um espectador — único entre os demais — que, menos atraído pela performance de um artista do que pelo eu subjacente à sua persona, propusesse um estudo do seu estado interior, estudo cujo material colhesse no esgar, nos meneios, no olhar de quem se dedica ao entretenimento alheio enquanto faz transparecer os próprios dramas, relato suposto que logo se erige como a fábula de um tenor literal e metaforicamente impotente diante das demandas da vida, que se lhe apresenta (assim a desenha o espectador) como uma desventura infrutífera e irrefletida, relato que para compor recorri tanto àquele senso de identificação que no conto de Joseph Conrad há entre um capitão e um duplo resgatado em alto mar como àquela paciente pertinácia do advogado Gabriel Utterson ao desvendar a máscara sob a qual Dr. Jekyll esconde Mr. Hyde, daí que o meu espectador se compadeça de um artista — mesmo ao sondar-lhe a consciência, mesmo ao julgá-lo transviado, mesmo ao prenunciar-lhe a decadência —, se compadeça de um possível castrato destes tempos.