– por Gabriel Coelho Teixeira
Joris-Karl Huysmans, romancista francês do fim do século XIX, narrou numa série de quatro romances seu relato de conversão para o Cristianismo, usando como representação o personagem Durtal, cuja trajetória se inicia no Satanismo.Nas Profundezas (𝘓𝘢̀-𝘣𝘢𝘴, na edição original), conta essa etapa inicial da vida espiritual do personagem.
Durtal, assim como Huysmans, é um escritor francês do final dos anos 1800. Desiludido com os círculos literários de sua época, se recolhe num isolamento ao mesmo tempo purificador e angustiante. Querendo fugir da miséria do seu século, volta sua atenção para a Idade Média, onde toma conhecimento da figura de Gilles de Rais, grande guerreiro, companheiro de batalha de Joana d’Arc, que apesar da imponência conquistada nos campos de batalha, tão logo se deu a morte da santa, enveredou cada vez mais fundo por um caminho degradante e maligno. Decidido a escrever-lhe a biografia, Durtal então, ao passo em que percorre a vida de Gilles de Rais, passa pelos episódios de seqüestros, estupros, assassinatos, sacrilégios, até por fim chegar às práticas satânicas realizadas por este que outrora foi o companheiro de batalha de uma santa.
Escapando-lhe porém o tema, Durtal recorre a Des Hermies, seu único amigo, o homem mais inteligente de que tem conhecimento. E nesse momento, por meio de um diálogo entre os dois, 𝘓𝘢̀-𝘣𝘢𝘴 registra todo um panorama histórico acerca do Satanismo, desde seus indícios mais remotos nos maniqueístas, passando pelas sucessivas etapas e avanços ao longo da história, mostrando que nem sempre foi a mesma coisa, que o que se realizava como práticas satânicas num momento histórico não coincidia com o feito em outros períodos, e que mesmo alguns rituais tidos como triviais hoje em dia nem sempre foram realizados, sendo na verdade bem recentes, como as Missas Negras.
Aqui porém se esgotam os conhecimentos de Des Hermies. Mas vendo o interesse de Durtal sobre o tema, que queria saber o tanto quanto possível para melhor escrever a biografia de Gilles de Rais, Des Hermies promete apresentá-lo a um astrólogo que conhece não apenas o rito satânico em si, mas também alguns sacerdotes sacrílegos que o praticam. Neste meio-tempo, porém, Durtal é apresentado a um piedoso e gentil católico leigo que tem como profissão e vocação a atividade de sineiro. Carhaix vive exclusivamente para tocar os sinos de sua igreja. Diante da estranheza de Durtal, Carheix explica que a atividade de sineiro, apesar de ter se tornado banal nos tempos que correm, foi na Idade Média uma verdadeira prática de devoção. E por um breve momento, pela boca e pela pessoa de Carhaix, Huysmans faz um paralelo histórico e espiritual entre a atividade vocacionada de sineiro no período medieval e a prática banal de badalar sinos atual. Ao menos no que se refere à atividade de sineiro, Carhaix é o último espécime que guarda o verdadeiro espírito de adoração nesse século que Durtal – e portanto Huysmans – despreza. A Idade Média é afinal o centro espiritual vivo de 𝘓𝘢̀-𝘣𝘢𝘴.
Quando enfim Des Hermies apresenta seu amigo astrólogo Gévingey, Durtal toma parte da condição atual e vivente do Satanismo em geral e das cerimônias de Missa Negra em particular. Passa a saber que Missas Negras em si nem sempre existiram, e as primeiras cerimônias satânicas sequer tinham a presença de clérigos. É na verdade bem recente a presença de sacerdotes sacrílegos ministrando o inverso exato da Santa Missa, e quanto a esses, Gévingey conhecia um que habitava nas proximidades.
Neste momento o interesse bibliográfico passa a ser insatisfatório. Conhecer os registros documentais e os relatos orais já não bastam. Para culminar suas investigações acerca do Satanismo, Durtal quer ver pessoalmente o estágio atual das práticas satânicas assistindo a uma Missa Negra.
O clímax de 𝘓𝘢̀-𝘣𝘢𝘴 é essa etapa em que Huysmans narra desde a chegada de Durtal nas proximidades da casa onde está para ser realizada a Missa Negra, passando pelo fedor que emana dos incensos, das mulheres que estão no salão para assistir, das crianças que estão no altar para acolitar, do altar mesmo e da forma como o padre está vestido para a cerimônia: completamente nu por sob a batina. Seguem-se os atos abomináveis do sacerdote com os meninos no altar, os das mulheres no salão com as hóstias consagradas jogadas ao chão e as orações profanas da cerimônia.
Durtal deixa o recinto transtornado. Mas o testemunho dessa prática satânica lhe possibilitou, junto à aversão aos sacrilégios, a perspectiva do mundo sobrenatural. Não ainda cristão, é certo, mas algo além do tédio e desilusão em que ele vivia.
Terminada a primeira experiência espiritual de Durtal, que se dá com o Satanismo, a etapa seguinte é sua conversão ao catolicismo, narrada no segundo volume da série, A Caminho. As investigações sobre a Idade Média são retomadas em A Catedral, dessa vez em torno dos monumentos católicos. A trajetória espiritual de Durtal é concluída no romance que narra o envolvimento do personagem com os monges oblatos, L’Oblat, ainda sem tradução em português.