Hulk – por João Henrique

Eram outros tempos. Nossa casa ainda recebia visitas e, antes da sucessão interminável de gatos que apareceram depois, tínhamos um cachorro.

Hulk era o pitbull que criávamos no quintal. Preso por uma corrente, nunca deixava o seu minúsculo espaço de liberdade. A exceção eram as noites, quando meu pai o soltava para que vigiasse por nós enquanto dormíamos. 

Para exibi-lo, meu pai colocava um coco no topo do muro da casa e atiçava Hulk para que o agarrasse lá em cima, mostrando a todos o salto poderoso do cachorro, que alcançava o alvo prendendo-o com força entre as mandíbulas. Também eu me orgulhava de ter um pitbull em casa: as crianças têm o seu próprio código de hierarquias, e Hulk me dava alguma importância entre meus amigos. Eu nunca perdia a chance de contar de novo a façanha do coco.

O que não contava era que tinha medo dele, procurando sempre me manter afastado de seu espaço no quintal. Às vezes sentia vontade de vencer a distância, de fazer-lhe um carinho, mas me continha o medo de que, num rompante, o cachorro me mordesse.

Eu gostava dele; esse desejo de aproximação, no entanto, marcava o limite do meu gostar.  Era tão pouco. Já naquela idade eu treinava a economia dos adultos.

Houve essa vez em que, ao receber um amigo — andavam amigos aqui em casa! —, eu não percebera que Hulk se soltara da corrente. Quando abri a porta para que Daniel entrasse, o cachorro fugiu, sorrateiro, rápido, preciso, como se há muito esperasse por um momento assim.

Num instante já o tínhamos perdido de vista.

No desespero, não consegui agir. Pensava somente na tempestade que viria quando meu pai descobrisse — mas acho que, mesmo antes dos erros, sempre esperei a punição. 

Há porém aqueles que se movem com segurança: meu amigo Daniel estava de bicicleta e se dispôs a procurá-lo. Em nenhum momento perdeu a cabeça, em nenhum momento se deixou tomar pelo meu nervosismo — o cachorro não era sua responsabilidade, mas ele tinha a disposição e a confiança dos que sabem agir. Os vizinhos lhe apontaram uma direção e ele saiu. Fiquei em casa, estúpido, sem nem ao menos a ação de acompanhá-lo — sempre fui trágico, sempre coloquei um peso definitivo sobre a realidade. Oscilava entre o medo da reclamação que ia levar (possivelmente uma surra) e o ódio por mim mesmo, pelo meu descuido óbvio. Quantas vezes não repeti isso mais tarde?

O sol estava perto de se pôr. As casas da rua eram baixinhas, então tínhamos o horizonte quase inteiro ao alcance dos olhos. O céu estava laranja quando meu amigo apareceu ao virar a esquina: com uma mão guiava a bicicleta e, com a outra, estalando os dedos, chamava o cachorro que o acompanhava. 

Eu não conseguia entender: Hulk jamais fora íntimo de Daniel. Por ser ele uma visita frequente — eu já tive muito —, o cachorro talvez se acostumara à sua voz. Sozinho, preso, ele devia prestar uma atenção perfeita a tudo. Não sei — mas Hulk o acompanhou. Os dois vieram e entraram em casa.

Aquilo que desejamos — e no momento eu desejava com aflição — mas sabemos que jamais teremos: jamais, seria tão bom, mas é impossível — e de repente isso nos é posto nas mãos. Eu deveria ter aprendido então: as coisas são possíveis. No meu susto de alívio, não sei se me sobrou espaço para a alegria.

Não me lembro de como agradeci ao Daniel, se é que lhe agradeci. Penso em procurá-lo hoje, relembrá-lo da sua capacidade de inspirar confiança até mesmo num pitbull. Mas há a distância dos anos. Ele ainda é o amigo que trouxe de volta o meu cachorro? Ainda existe em mim o que naquele dia o fez vir até a minha casa?

Lembrar de como Hulk acompanhou Daniel me faz pensar no quanto foi inútil o meu medo: ele, mais do que eu, soube confiar.

*

Em casa não nos lembramos dele. Dos gatos que tivemos, falamos sempre de suas personalidades, de suas manias. Mas jamais dizemos uns aos outros “e o Hulk, hein?”. Não sentimos saudades. E, no entanto, as marcas que esse bicho nos deixou — hoje invisíveis. Porque assim o quisemos. Nas raras vezes em que ele vence essa obscuridade — e conhecer esses caminhos talvez me esclarecesse algo a respeito de mim mesmo —, penso no quanto foi dura e desperdiçada a sua vida.

Como ele nos via? Será que gostava de nós? Gostava de mim? Penso nos seus olhos — eram verdes os seus olhos. E me pergunto se, ao me fitarem, aprovavam o que viam. O desejo profundo de que alguém nos olhe e diga “sim”. Não tenho mais como medir a ternura escondida daquele cachorro.  

Ou a daqueles que, em segredo, talvez também tenham me dito “sim”; aqueles que me temeram como eu a eles. Os frutos que poderíamos ter colhido. O único jeito é não ter medo, é amar com a confiança de um cego que caminha. Mas nós nos conhecemos: e então desconfiamos de nossa vaidade; amar alguém nunca é uma linha reta; não sabemos o tamanho de nosso egoísmo, e tememos que a maior parte do que chamamos de amor, talvez mesmo a sua inteireza, seja só uma forma de nos adorar ou de nos detestar, de nos perseguir; é difícil saber.

Quanto não deixamos de ter — quanto o outro não deixa de ter — por nossos mesquinhos receios, por nossa esperta cautela. Por não querermos ser mordidos.

Eu queria perder todo o medo. 

Quando Hulk adoeceu e os remédios que demos não o curaram, meu pai procurou um veterinário. O custo do tratamento, na época, era muito mais do que podíamos pagar — ou foi o que me disseram. Eram outros tempos; acho que ainda não tínhamos clínicas veterinárias na cidade. Ficou decidido que ele seria sacrificado. E minha tristeza foi também o meu modo de gostar dele. 

Meu pai, acompanhado de um primo meu, levou Hulk para fora da cidade. Seria um tiro na cabeça, sem sofrimento. Quando chegou a hora, ele passou a arma para o sobrinho — meu pai, aquele homem forte, não teve coragem de dar o disparo. Eu me pergunto se ele desviou o olhar.