– Por Jessé de Almeida Primo
De um lado, um soberano, sabendo-se prestes a morrer, incumbe seu braço direito a providenciar-lhe um casamento, do qual espera resultar num herdeiro a quem deverá legar seu trono, e uma então esposa que, invejando ao filho o poder que a ele está reservado, dá início a um plano de assassinato, seguido de uma intriga palaciana que toma grandes proporções que ameaça a estabilidade dos reinos; de outro, uma aranha que, cumprindo acidentalmente o que a rainha esperava, ou seja, matar seu próprio filho recém-nascido, passa a ser implacavelmente perseguida e, como castigo, torna-se um grande guerreiro, não exatamente uma figura graciosamente vistosa, mas um híbrido repulsivo de inseto e gente, mais ou menos como se viu no filme A mosca, de David Cronenberg.
Desde a morte do futuro herdeiro à condenação imposta por uma deusa ao dito inseto de assumir o corpo da vítima e dar-lhe movimento, uma longa guerra explodiu, da qual ele mesmo, Hesperio, é chamado a tomar parte, uma guerra que envolve seres humanos, criaturas exuberantes, fantásticas, e entre estas algumas híbridas a um só tempo maravilhosas e repugnantes, metamorfoses, algumas das quais tão grandiosas quanto verdadeiras materializações de um pesadelo, guerras cruentas, exército formado por diversos elementos da natureza, por criaturas extraídas a outras mitologias e a mitologias mais contemporâneas como zumbis, intrigas, traições, golpes de Estado, loucuras que se fazem por amor ou pelas paixões mais lúbricas, coragem e covardia, redenção, amigos improváveis, casais improváveis, enfim uma série de coisas que não dá para listar aqui.
É também um road novel, mas cujo percurso faz-se ou a cavalo ou a pé, quiçá, voando. Poderia também ser um best-seller, mais ou menos na linha de Senhor dos anéis, com uma cosmologia particular e mitologia própria, com todos os atrativos do gênero. Best-seller, sim, mas escrito com linguagem de gente, com uma linguagem sofisticada, e sem medo da segunda pessoa do singular e do plural, que o autor, bom maranhense que é, usa com muita naturalidade. A esse respeito vai aqui uma ressalva: uma vez que há a presença constante do “tu” e do “vós”, fazer uso do pronome de tratamento “você” como indicativo de intimidade, familiaridade no trato com o outro – que aliás cabe à segunda pessoa do singular – não apenas é dispensável como só traz confusão, confusão essa constante na tradução que Rubens Figueiredo faz de Anna Karenina.
Claro que entendo que esse pronome de tratamento hoje em dia afeta a intimidade de que já falei. Quantas vezes não ouvimos das senhoras às quais assim referimos, sentindo-se meio que ofendidas, o costumeiro “Senhora está no Céu, me chame de você”? Num romance, porém, cuja narrativa é bastante recuada no tempo e na qual percebem-se ecos dos clássicos, principalmente no nível de linguagem escolhida, podemos, sim, entender da mesma maneira, mas é um entendimento que é menos um entendimento que uma concessão, que é o resultado do “já ouvi falar”, “minha vizinha fala assim”, e que num romance dessa natureza causa interrupções reflexivas quando se deveria seguir a história sem se pensar no assunto. Agora uma ressalva de outra ordem: a passagem em que o mago Arelius, que é o braço direito do soberano, pune os salteadores assassinos inoculando no espírito deles a consciência demasiadamente apurada dos crimes que cometeram não funcionou. É muito bem escrita, sim, mas peca pela intrusão didática, extra-literária.
(Faço essas ressalvas a partir da leitura da primeira edição que saiu em versão kindle, até então disponível apenas no site da Amazon, de modo que ignoro se o autor fez alguma alteração na edição mais nova publicada pela editora Sete Selos.)
Se os jovens sentem falta de uma literatura nacional em que se apresente um universo exuberante de magia e, na falta desta, isolam-se no universo do RPG para se sentir profundo e inteligente, agora tem a oportunidade de lidar com este universo enriquecido por uma sensibilidade imaginativo literária, diria, rara nas nossas letras.
Atraente ao público mais jovem, mas sem fazer concessão a uma sintaxe preguiçosa, medrosa, opaca, que se passa por uma forma de expressão descolada, relax, de gente como a gente… Enfim, um romance dirigido ao público infanto-juvenil, mas escrito por homem, como, aliás, deveria ser regra para quem se entrega a essa tarefa.