O sol é o soberano da ordem cósmica, símbolo máximo do masculino, espírito moldador e definidor de todas as coisas. Representado por um círculo e um ponto central ☉, contém em si mesmo a intuição do movimento divino: princípio e manifestação, alpha e ômega, o centro da criação e a emanação e expansão do mesmo princípio no mundo. Pode-se entender tudo que há para se entender no fiat lux,o ato divino que contém em si próprio o verbo em princípio — in principio erat Verbum — em manifestação.
O sol é o símbolo máximo da luz. Todas as metamorfoses buscam o sol, nutrido no seio materno e parido no útero telúrico na forma do ouro. O ciclo de transformação dos metais da alquimia narra o processo de ascensão da matéria ao seu corpo glorioso, mortificado, despedaçado e reconstruído, processo esse descrito pela transformação sucessiva dos metais, da escuridão insidiosa do chumbo ao brilho régio e ígneo do ouro.
É a insígnia inequívoca de nossa mácula: o chumbo contém em si todas as potências daquilo que virá a se tornar ouro — qualquer minério, essencialmente — que opta, por vezes, pela coagulação em estágios intermediários que possibilitem a realização de certas vontades. A busca pela atualização completa do potencial do homem é a jornada, como diria Confúcio, do aperfeiçoamento das vontades. Só então seria permitido ao homem o cumprimento de seus papéis solares, como cabeça da família e do estado, em pleno exercício de suas capacidades por desígnio divino. Essa vontade aperfeiçoada é aquela que, nas palavras de Silesius, é a transformação do homem por meio de Deus e em Deus.
Valendo-se da distinção entre o microcosmo e o macrocosmo, entre as coisas da terra e as coisas do céu, é possível melhor identificar as características principais que orientam heróis solares nas mais diversas castas, vocações e cenários narrativos, levando em conta primordialmente a função exercida pelo herói no contrafactual. É inegável que o personagem do Padre Brown, dos contos investigativos de G. K. Chesterton, exerce uma função devastadoramente solar em seu papel de guiar a razão até as estrelas.
Munido dos princípios da ortodoxia e de uma razão barbárica, exerce influência majoritária sobre a forma das histórias e de seus personagens, não apenas enquanto sacerdote (embora o faça, com a empunhadura dos sacramentos em muitos contos), mas enquanto investigador, teólogo, crítico de arte e interlocutor racional. Um de seus papéis notáveis é, por exemplo, a influência que exerce sobre a figura mercurial, lunar-to-become encarnada por Flambeau, o engenhoso ladrão francês que atua como uma verdadeira lenda na arte da trapaça.
O antídoto ministrado por Brown sobre o gatuno não consiste exatamente no exercício dos sacramentos — muito embora o faça em determinada ocasião, marcada pelo furto de Flambeau a uma série de talheres de prata, recebendo então a confissão do homem — mas no desvelamento da natureza profunda de suas atividades criminosas, que no fundo são muito pouco guiadas por uma má índole, e sim por um espírito decadentista de flâneur que toma a experiência erótica da arte como uma aproximação telúrica do transcendente.
Ao mostrar-lhe uma saída por meio do eterno prazer da razão, Brown não apenas atua enquanto evangelizador, mas como um crítico racional que desvela o sentido por trás da aparente ininteligibilidade do mundo moderno em seu terror cotidiano, o que simultaneamente encerra seus dias enquanto gatuno e marca o início de sua jornada de redenção pessoal. O Padre Brown é um inequívoco exemplo da força solar da razão enquanto definidora e transformadora das formas e dos homens, “But don’t fancy that all that frantic astronomy would ‘ make the smallest difference to the reason and justice of conduct. On plains of opal, under cliffs cut out of pearl, you would still find a notice-board, ‘Thou shalt not steal.’ “
Em contraste gritante com o papel macrocósmico da razão solar de Brown — a despeito de sua raquítica estatura — temos uma miríade de heróis que exercem papel solar de maneira radicalmente oposta, até mesmo profana: Agamemnon e Aquiles, ambos heróis solares, são figuras centrais de um povo que representa a solaridade como um todo na disputa por Helena na Ilíada, sendo a esposa de Menelau um símbolo da beleza inteligível, daquilo que afirmaria a superioridade da razão, representada pelos aqueus, o povo solar, sobre a pura materialidade, representada pelos telúricos troianos.
Mas a guerra de tróia representa esse conflito do enxofre alquímico sobre o mercúrio em cores trágicas, através do pathos da húbris desses heróis solares. Tanto Agamemnon quanto Aquiles expressam diferentes aspectos da solaridade, o primeiro expressando a soberania daquele que detém o poder temporal e o segundo, a força. Ao ultrapassar o métron, a medida de cada um, Agamemnon exerce a função de tirano que leva a razão ao vale da morte, desrespeitando seu mais forte guerreiro e assegurando que as funções solares, uma vez profanadas por trazerem à tona o aspecto mais nefasto do orgulho, pecado capital solar por excelência, entrassem em pleno declínio marcial e férreo, não apenas por se tratar de um contexto de guerra, mas pelo que a guerra de Tróia como um todo representa: o fim de um ciclo cósmico de 10 anos, que antecipa o que viria a ser o fim da era dos heróis e os prelúdios da Idade do Ferro. A tragédia da autoafirmação solar no mundo material é anátema à perfeição da alma imortal, algo que fica claro pelo destino desses heróis.
Nos épicos modernos o herói solar costuma aparecer mais frequentemente como a panacéia que resolva os conflitos e máculas daquele mundo, ou seja, como a enteléquia daquelas potências. É o caso de heróis como Luffy, que se tornou um deus solar ao absorver os “metais” do trajeto, assumindo então as cores do ouro na cosmologia chinesa e manifestando as qualidades expansivas e moldadoras daquilo que é solar. Naruto divide sua graça com todos e cumpre seu destino como sintetizador daquela dialética hegeliana, manifestando sua qualidade solar-messiânica exotericamente.
Edward Elric, um herói sulfúrico e solar, carrega os germes de todo o povo ariano e soluciona os problemas da corrupção da alquimia no estado moderno ao transmutar a própria alma, simbolicamente representada por seu irmão, o mercúrio anímico que é a contraparte de sua individuação, forçando o ímpeto solar à mortificação do corpo para o aprimoramento das potências, ato ritualizado e concluído no sacrifício pessoal. Os saiyajins de Akira Toriyama, na mesma clave, evoluem de primatas telúricos-lunares para heróis dourados-solares. A solução oculta daquele universo seria a superação da húbris na ética dos saiyajins durante a Saga Cell, húbris essa que culmina na quase-tragédia da raça humana, tanto por parte de Goku quanto de Vegeta, que devem ser superados pela próxima geração de verdadeiros heróis, muito semelhante à obsolescência de Agamemnon em favor de Orestes na trilogia de Ésquilo.
Para concluir essa breve reflexão a respeito do sol e de suas qualidades, devemos contemplar a expressão máxima da solaridade e do fim de todas as estradas, que é o Deus vivo que é também a encarnação do logos na história: Iesus Christus, já que sua paixão é a mais perfeita representação da chegada ao corpo glorioso, e seu sacrifício é o único que faz jorrar, através de seu sangue, o elixir da vida eterna. A imolação de um deus é o sentimento primordial daquilo que é o garantidor da renovação de ciclos e do desabrochar de uma nova vida, e nenhum outro símbolo rivaliza a síntese de toda a busca alquímica e do ciclo de metamorfoses: faz-se presente nas rosas, no cálice do santo graal, na lança de longinus e em incontáveis simbolismos do centro do mundo, sendo o mais quintessencial de todos o eixo da realidade simbolizado pela cruz.
Cristo é o centro da eclíptica, o trajeto anual do sol: dele são emanados todos os arquétipo divinos, ou seja, todo o zodíaco, que é a simbolização numérica das qualidades eternas, da combinação multiplicada entre o 4 e o 3, entre a terra e o céu, entre o microcosmo e o macrocosmo, quantitativamente manifestada no número de qualidades planetárias da ordem caldaica: 7. O símbolo do sol se afigura, portanto, em todas as narrativas, nos épicos alquímicos e nas tragédias dissolutivas, como a representação da enteléquia, da atualização ou da queda das potências de um cosmos, a extensão visível e inteligível daquilo que é o começo e o fim, o meridiano da vida e da morte e de tudo que diz respeito ao nosso fim último enquanto espécie.