– por Ted Gioia (tradução de Roberto Neves) 1Ensaio originalmente publicado na Substack de Ted Gioia, The Honest Broker [https://tedgioia.substack.com/p/advice-to-musicians-from-martin-heidegger].
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Venho estudando a obra do filósofo alemão Martin Heidegger há décadas. Cheguei a participar de uma conferência acadêmica sobre Heidegger uma vez, passando vários dias em colóquios soporíferos com existencialistas notórios — o que não é exatamente o passatempo típico de um crítico de música. Mas há enorme sabedoria nos seus textos, embora ela tenha seu preço.
Isto é porque Heidegger é uma figura difícil e frustrante. Sua biografia é tumultuada, contendo uma dose de feiura acima da média. Temos sorte, pois poucas das suas piores falhas pessoais aparecem nos trabalhos filosóficos publicados durante a sua vida. Mas mesmo estes livros podem ser vertiginosamente difíceis de decifrar.
Tive um professor uma vez que zombeteiramente resumia a filosofia de Heidegger em uma frase de três palavras (tomada de uma tradução rudimentar de um de seus livros): “O nada nadeia.”
Sei o que você está pensando. Não existe o verbo nadear. Mas se você tem esse tipo de escrúpulos, é melhor não abrir “Ser e Tempo”, ou qualquer outro dos livros de Heidegger.
Eles são escritos em um estilo de prosa diferente de qualquer outro que você já tenha visto, e à primeira vista o uso que Heidegger faz da linguagem parece muito frouxo, quase poético — e sempre beirando o impenetrável. Mas ele realmente transmite conceitos muito precisos e frequentemente inspiradores, só que compete ao leitor compreender a terminologia arcana e o caminho complexo do argumento.
Talvez o que mais frustre seja o quanto Heidegger reluta em oferecer diretrizes claras que poderiam ser aplicadas na vida cotidiana. Talvez isso fizesse parte de sua orientação existencialista, isto é, talvez ele quisesse enfatizar a incerteza e a ansiedade da condição humana, em vez de oferecer respostas fáceis. Ainda assim, depois de explorar a psique humana em sua companhia, surge o anseio por alguns conselhos práticos.
Então vocês podem imaginar minha surpresa ao recentemente encontrar uma passagem em Heidegger que parecia prometer uma solução à maior de todas as questões — como viver uma vida válida no seio de uma sociedade gananciosa, controlada pela tecnologia. Ainda mais surpreendentemente, sua solução se baseava na música.
Ele não apenas estava dando um conselho aos músicos, mas claramente considerava essa informação extremamente importante. E não é algo que se ensine em Berklee ou Juilliard.
Algumas explicações preliminares: quando você lê as previsões sombrias de Heidegger sobre tecnologia, percebe o quanto o seu pensamento é relevante para nossas dificuldades contemporâneas. Heidegger morreu em 1976, ainda em uma era analógica. Ele não podia imaginar a internet, ou o Facebook, ou headsets de realidade virtual, ou vigilância online dentro das casas. Mas ele avisou repetidamente sobre o impacto destrutivo que a tecnologia estava tendo, não apenas em nosso mundo, mas também em nossas vidas interiores.
Quando você vive imerso em ferramentas tecnológicas, começa a ver tudo de uma maneira brutal, focada em resultados. Sua mente, capaz de tantas nuances, se torna uma espécie de algoritmo dela própria. Isso é porque a tecnologia manipula as coisas. Ela impõe nossos desejos à realidade. Tudo é forçado a se adaptar aos nossos propósitos e objetivos — e estes costumam ser grosseiros e oportunistas.
De fato, o principal objetivo das novas tecnologias é lucrar. Todos vimos isto em primeira mão, com a rápida evolução da Internet, que de comunidade livre construída por nerds e excêntricos no seu ócio, tornou-se motor gerador de lucro para as maiores empresas da história do mundo. Se você não tivesse visto isso acontecer em tempo real, dificilmente conseguiria imaginar a velocidade e intensidade implacável desta transformação. Uma comunidade aberta, fundada em confiança e em ações desinteressadas rapidamente se tornou um sistema coeso e integrado de comando e controle para feudos geradores de dinheiro.
Heidegger provavelmente diria que qualquer orientação tecnológica fundamentalmente possui essa tendência de dominar. Este sempre foi o caso, mesmo quando da invenção da roda, mas piora conforme a tecnologia avança. As próprias pessoas que se dedicam à busca do progresso, desejosas de liberação e crescimento pessoal, terminam dominadas pelo monstro de Frankenstein que elas criam. Primeiro, você inventa a roda, e logo está preso atrás do volante do seu carro no infernal trânsito diário.
A maldição sequer está nas tecnologias propriamente ditas, Heidegger teria alertado — não, não está nos robôs e algoritmos e máquinas —, mas na atitude gananciosa e utilitarista que vê tudo meramente como grãos para o moinho, como conteúdo (ah, como os bambambãs da internet amam essa palavra) a ser utilizado.
Como escapar disso?
Heidegger não é claro nesta questão. Mas em um ensaio pouco conhecido sobre o poeta Rilke, foi forçado a dizer algo mais específico. Ele amava esse poeta, e precisava explicar o que Rilke queria dizer quando prometia que poderíamos nos tornar
Aventurosos, às vezes mais do que é a Vida, mais audazes por um sopro… Lá, fora de todo cuidado, isso cria para nós uma segurança — simplesmente ali.
Heidegger cita essa passagem repetidamente, perguntando-se como um indivíduo pode alcançar essa extraordinária e privilegiada situação, imune às atitudes gananciosas e manipuladoras dos nossos tempos. Isto, no final das contas, não é muito diferente da questão central que Marx tentou resolver — mas Marx pensou que seria preciso fazer toda uma revolução para chegar lá.
Heidegger nos surpreende dizendo que não precisamos de revolução nenhuma. Basta uma canção.
Sim, simplesmente uma canção.
Esta é uma das passagens mais surpreendentes em toda a obra de Heidegger:
“Os mais aventurosos são aqueles que falam em maior grau, à maneira do cantor. O seu canto é afastado de toda auto-asserção premeditada. Não é uma vontade no sentido de um desejo. Sua canção não demanda que nada seja produzido. Na canção, o espaço interno do mundo concede espaço dentro de si mesmo. A canção destes cantores não é nem solicitação, nem comércio.”
Invocando Rilke, ele chama aqueles raros cantores de “os mais aventurosos” — isto é, aqueles que conseguem superar o terrível reducionismo utilitarista que destrói tanto o nosso mundo quanto as nossas vidas interiores. Eles encontram o seu caminho através da canção.
Isso não é mera grandiloquência. Heidegger está correto — até mesmo a linguagem já foi corrompida pela mentalidade prevalente. A maior parte das coisas que dizemos objetiva efeitos práticos, convencer pessoas, obter o que queremos, mudar as coisas para que se adequem às nossas necessidades. Por essa razão, qualquer meio de nos tirar deste embaraço requer, em primeiro lugar, um meio de expressão que não se reduza a propor e argumentar.
E é exatamente aí que entra a canção.
Não é coincidência que esta ascensão final da tecnologia tenha sido acompanhada por um colapso da linguagem. Heidegger teria nos alertado sobre isso. A finalidade das palavras deixou de ser a expressão da verdade. Elas também foram degradadas, transformadas em meras ferramentas a serviço de objetivos. Às vezes, objetivos vis.
Todos nós vemos isso todos os dias. As profissões que mais usam palavras são aquelas nas quais menos se confia — políticos, jornalistas, advogados, porta-vozes de empresas etc. Em nenhum outro momento da história da sociedade democrática, o domínio da língua foi visto com tanta suspeita.
A canção é mais poderosa do que a linguagem porque opera fora das expectativas do funcionalismo brutal e da manipulação do mundo. É o uso mais puro do fôlego humano. É quase um milagre que ainda tenhamos acesso a uma forma de expressão tão imaculada.
Pensem por um momento em quão extraordinária é a afirmação de Heidegger. Outros pensadores foram obcecados por música (isso tem sido verdade há mais de 2.500 anos). Mas quem mais fez essa proclamação incrível, isto é, de que a música é nossa resposta mais poderosa aos perigos da tecnologia?
E o que isso significa para os músicos?
Uma visão tão elevada do papel da música coloca um fardo pesado sobre os músicos. Afinal, caberia a eles oferecer o modelo de um modo de vida livre da ganância e manipulação que dominam todas as outras esferas da existência humana.
É fácil caçoar desta visão elevada da música. Mas queremos mesmo fazer isso? Eu sei que músicos sentem, às vezes quase instintivamente, que estão de alguma maneira em desacordo com os tecnocratas e supervisores da internet que parecem tudo controlar (especialmente as formas como a música é consumida na sociedade atualmente). Eles sentem que precisam se adaptar a esses poderes maiores, mas também sentem que há algo de errado nisso.
Heidegger ajuda a articular as razões para tanto. E também nos obriga a considerar os perigos que surgem quando os músicos desenvolvem uma relação confortável e próxima demais com os mestres utilitaristas da tecnologia, da política e do comércio.
Quando comecei a conseguir shows como líder de uma banda de jazz, frequentemente contratava músicos mais velhos. (Sendo bem sincero: naquela tenra idade, eu considerava qualquer músico que tivesse mais de quarenta anos um idoso.) Eles eram de uma geração diferente da minha, mas tinham podido ver os mestres do swing e do bebop em carne e osso, e certamente teriam sabedoria para transmitir a mim.
E muitos deles o fizeram. Aprendi muito com aqueles velhos profissionais (ou com aqueles profissionais de meia-idade).
Mas a convivência com alguns deles era deprimente, porque estavam exaustos das lutas e das baixas recompensas de suas carreiras musicais. Isso me pegou de surpresa. Eu era jovem e cheio de fogo e de entusiasmo pelo jazz. Todo show parecia um portão para a transcendência. Eu nem sequer sabia que era possível tocar jazz sem qualquer entusiasmo, apenas pelo dinheiro.
Porque isso seria absurdo, não é?
Ninguém entra no jazz pelo dinheiro, porque não tem nenhum. Que destino terrível: tocar a música mais bonita do mundo sem nenhuma fruição intrínseca do processo. Se você seguir por esse caminho, as canções serão como geringonças produzidas na linha de montagem — mesmo o saxofone ou o trompete não serão mais do que tecnologias voltadas para o lucro. Ai!
Pensei sobre aquelas pessoas quando li a descrição que Heidegger faz dos músicos como sendo os mais aventurosos. O seu trabalho não é “solicitação nem comércio”.
Isso não quer dizer que músicos precisem estar felizes o tempo todo, nem se calar sobre os problemas práticos do mundo em geral. Na verdade, é justamente o contrário. Meramente tocar o seu instrumento com uma intenção pura é uma afirmação poderosa por si só.
Se você, como uma pessoa criativa, sente alguma fricção e alienação em relação à “utopia” tecnológica que nos cerca, isso é positivo. E talvez você esteja fazendo ainda mais com a sua música. Se você participa de maneiras cooperativas e comunais de publicar sua música, pode pensar que isso é apenas uma gota no oceano, em comparação com o poder das plataformas da internet, mas está tomando as decisões corretas, e dando um bom exemplo a outras pessoas.
E você pode causar impacto. Se eu tivesse tempo e espaço, poderia dar centenas de exemplos de músicas mudando o mundo — mas isso quase sempre ocorre indiretamente. Frequentemente descrevo canções como catalisadores, e eu gosto dessa palavra, porque o catalisador permanece inalterado enquanto lança um feitiço de transformação em volta de si próprio.
Permitam-me abordar uma última controvérsia aqui. O que estou dizendo (novamente invocando Heidegger) é que músicos são uma espécie de modelo a ser seguido. No seu esquema, o cantor puro é o maior de todos os modelos. E eu sei que muitos de nós nos arrepiamos ao ouvir qualquer sugestão no sentido de que músicos deveriam arcar com esse tipo de responsabilidade, assumir um papel ético sério na sociedade.
Vocês talvez se lembrem do famoso desabafo de Charles Barkley: “Eu não sou um modelo a ser seguido.” Ele estava falando de atletas, mas pode ser que músicos tenham ainda mais influência como exemplos na sociedade. E muitos de nós estamos tão insatisfeitos com isso quanto Barkley estava.
Mas a realidade é que músicos são exemplos, não importa o quanto o neguemos. E isso já era verdade na época de Heidegger, e muito antes disso.
Basta olhar para o Instagram, ou TikTok, ou outras redes sociais, e é possível ver a influência que os músicos exercem. São até chamados de “influenciadores” hoje em dia. É inútil argumentar contra isso, porque músicos têm desempenhado esse papel há pelo menos 250 anos, se não mais tempo.
A abordagem mais promissora não é rejeitar o papel que músicos têm como influenciadores, mas levá-lo a sério — muito a sério. Com uma seriedade quase fatal. Não porque músicos são melhores do que outras pessoas — bom Deus, não são de jeito nenhum —, mas porque sua vocação os coloca em contato direto com uma das últimas coisas puras e desinteressadas que existem na cultura.
A música poderia perder essa qualidade. Forças poderosas têm trabalhado nisso há décadas, e vêm intensificando o seu assalto nos anos recentes. Elas gostariam de transformar canções em engrenagens que fazem girar as rodas da tecnocracia e do comércio. A coisa mais valorosa que a comunidade musical poderia fazer, diante de tais pressões, seria criar um contramovimento, afirmando precisamente o contrário.
Sob esse cenário, a música celebraria o último gesto desinteressado. Ela responde à manipulação com uma espécie de altruísmo artístico. Em um mundo movido por objetivos extrínsecos, ela é a última fortaleza da empreitada intrínseca. Ela é (nas encantadoras palavras do saxofonista Rahsaan Roland Kirk), um “presente isento de impostos para o viajante.” 2 https://www.youtube.com/watch?v=b4RgOoHKw_s E não somos todos viajantes?
Ou, como eu prefiro dizer: A música é o anti-algoritmo. Isso é algo que não queremos perder. E se nos mantivermos fiéis a essa visão, com espírito e dedicação, pode ser que outros sigam os nossos passos.
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Ensaio originalmente publicado na Substack de Ted Gioia, The Honest Broker [https://tedgioia.substack.com/p/advice-to-musicians-from-martin-heidegger]
Ted Gioia é músico e escritor, tendo publicado onze livros de não ficção, incluindo sua última obra Music: A Subversive History. Já foi professor na Stanford University, e teve artigos publicados no New York Times, Los Angeles Times, Wall Street Journal, entre outros.
Roberto Neves, tradutor do artigo, é advogado por profissão, e escritor por teimosia.