Harmonia Impossível – oito poemas de Alexandre Sartório

I. Desprendimento
II. Parábola
III. Finitude
IV. Passos
V. Memória
VI. Astral
VII. Odisseia Serena
VIII. A Harmonia Impossível

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I. Desprendimento

Antes de tudo, a língua desce ao nada:
Trava o espírito perante o vazio,
Como incessante corrente de rio
De chofre, por barragem anulada.

Nua até de ser, invoca na escada
O cisne do nada, e só acha brio
Para elevar belo castelo frio:
Da poesia pura a opaca morada.

Mas no nada da noite escura, uma alma
Enamorada pode enxergar que
A mansão alva no nada já estava,

Onde tudo reflete uma luz calma:
Despida, a alma deixa que a abarque
O amor, que a inflama, alumia e lava.

II. Parábola

A que é semelhante o eterno
Na vida, e a que se compara?
É ele como um negativo
De fotografia única
Que se leva a vida toda
Criando, e tal como a arte
Figura uma forma de
Eterno, assim ele fica,
Por mais sórdidos que se
Desenhem seus traços todos,
À luz certa, à luz escura
Essa figura guardada
Se revelará enfim
Carne a arder sem cessar.

III. Finitude

Na pompa áurea de palacetes
Ou em praças douradas de Paris,
Diante do nobre pincel de David:
Tudo fulge em êxtases permanentes.

Ar e fogo, os elementos ativos
Na pele do seu torso, um eterno ouro,
Como taça de transe duradouro:
Tenho anseios imortais na alma vivos.

Na alma lassa, com do gozo a delícia,
Impressa é imagem de viço sem fim,
De que morte nunca pôs termo à lida.

Já que é furtivo o silvo da opulência,
Traiçoeiro o olor da romã, assim:
O último inimigo a vencer é a vida.

IV. Passos

Os passos no taco da casa reverberam
São os mesmos na mansão
Imensa não encontram paredes
Reverberam por bancos e
Vasos sem fim

Seguem as sombras no encalço
Dos passos, pensam prendê-los
Sobem muros, tentam decepar passos
Dos pés, pés da alma, passos da alma,

Mas os passos guardam o sopro,
Os pés mesmos ecoam sempre
Pelos quartos, como estelas.

V. Memória

Jogava milho pras galinhas
Semeava;

Fazia de tudo desde a soja
Missô, shoyu –
A palavra saia torta mas
Como que soprava a argila,
e a vida brotava.

A mãe morreu no parto,
A irmã se matou
Tomando veneno de rato.
Depois costurou por sete vezes quatro anos.

Ao fim, uma vida cumprida
regride como não vivida,
errantes a mente, o corpo,
anêmonas vagando. bate,
tateia enervada memória,
tenta, mas logo esforços se
esvaem. vaga no mar dos lençóis.
nada seria, mesmo em breve,
não se fosse escrevendo a vida
nos sulcos, irrevogavelmente.

VI. Astral

Nem sei se eu tinha morrido ou sonhava,
Cruzando estruturas de metal tortas,
Fraturadas entre tônica e oitava,
Por pontes, e no fim de estradas mortas

Queria pousar, e esperava ver-lhe
A espera, na esperança tremia de
Que me pusesse pra dormir, um detalhe,

Eu, sob a sarça silente na tarde,

E acordar em outro lugar – em tempo
De harmonia dos astros com a alma,
Serena ao observar o calafrio

Com a mudez sem fim do universo sendo
Não mais que uma ânsia trêmula sem trauma,
Por beijo de mãe, dum moço sem brio.

VII. Odisseia serena

O jarro é vazio, e no vaso não se vê Ulisses
singrar o tempo, gozar a tristeza, só
cercado por mares e ninfas, acossado e
protegido por numes, a desafiar os
rebentos dos deuses, no encalço da luz serena.

Mas há luz serena, não se sabe se sai do
do vaso liso ou se nele pousa, ela misturada
às tintas sopra leve na superfície da tela.
Pra lá da moldura, ladeada pela cadeira de
trabalho em que você se sentava de ouvidos
cerrados com cera, Morandi, há outra janela,
que, aberta para a praça de cristal transparente,
sabe do silêncio do lar.

VIII. A Harmonia impossível

A harmonia ressoa e brilha

E eu vou ouvir os passos todos de novo pelo caminho
Vou ouvir as canções, como bichos gemendo de vida
Vou ouvir as sonatas que brotam das pedras
Vou ouvir de novo as conversas, uma raspa e serão um refrão de vida
Vou ouvir as palavras subindo os muros, de safira, de sardônica
Vou ouvir o fio invisível, a harmonia impossível sobre ela, na iminência de se deitar
Vou ouvir as palavras todas, as que não se escutam, as mais bonitas, rodando em círculos
loucamente, como gato com cometa amarrado ao rabo
Vou ouvir as crianças se levantando das rochas brincando com o ritmo, elas riam entre os
arbustos
Vou ouvir os sons das rajadas que ecoarão como baladas
Vou ouvir as feridas fulgurando lindas agora
Vou ouvir venha você que o verbo transborda e já não é tarde
Vou ouvir ontem acordando de manhã refeito
Vou ouvir as manhãs todas juntas num frasco, brilhando de dia
Vou ouvir a melodia visível a correr, criando tudo sempre.