– por Bernardo Sanior Animi*
Sob a influência do blues e das cantigas de lundu (que traduzem em música a dor de ser um qualquer) e do enigmático mexicano Juan Rulfo (que entende muito bem como desaparecer neste mundo), imaginei este esboço de argumento, o qual jamais escreverei por extenso, pois não posso me dar ao luxo de passar tardes inteiras me dedicando a atividades ociosas enquanto tento sobreviver no meio de uma peste. Portanto, não me perguntem sobre pormenores, retificações ou ajustes; há áreas cinzentas da história que jamais me serão reveladas; hoje, 25 de julho de 2020, imagino-a assim.
A ação precisa transcorrer em uma vila desconhecida, perdida nos confins do mundo, mas que tenha tenacidade suficiente para se comunicar com o resto do globo terrestre. Pouco importa se ocorreu no passado, no presente – ou até mesmo no futuro. O narrador não é nem antiquado, nem contemporâneo. Ele deve ser fragmentado. A história tem um caráter atemporal, apesar da nossa obsessão pela moda e pela agilidade dos fatos. Para nossa comodidade, digamos que a trama se passa em um país distante do Leste Europeu; digamos Iugoslávia. Quem começa a contar a fábula é um homem chamado Adam, mas ainda não sabemos que é ele a cumprir essa função (nem o próprio reconhece o seu papel nesse enredo, por enquanto); ele acompanha a rivalidade entre dois músicos da região, que sumiram há muito tempo, chamados Jonas e Timóteo. Ao que parece, o motivo da rixa se entende em dois fatores: a busca pela canção perfeita e o rapto sentimental de ambos pelo coração de uma dama, Anna Lívia.
Antes de serem músicos, Jonas e Timóteo eram conspiradores entre eles, desde o princípio dos tempos. Pouco importa o que faziam: um tinha no outro o reflexo simétrico das suas aspirações. Foi assim na infância deles, seria assim na adolescência – e não seria diferente na idade adulta. Começou quando os dois aprenderam a tradição de compor canções, especialmente canções de amor. Não houve nenhum ensinamento exato sobre tal habilidade. Tais aprendizados se encontravam na tradição da vila onde moravam, recortada por um rio virulento que marcava a passagem das horas daquele local. Não era à toa que o vilarejo era visto por seus moradores como “uma habitação dos deuses” – algo que foi completamente rompido quando alguém encontrou, à beira do rio, o cadáver já putrefato de Anna Lívia. Seria neste momento que o narrador – Adam – aparentemente iniciaria a sua participação no enredo. Logo pela manhã, ele recebe um telefonema, na cidade distante onde mora, muito longe da vila, avisando que uma antiga conhecida sua tinha falecido – e por isso deveria reconhecer e reclamar o corpo no necrotério do povoado. Desconhecemos, por enquanto, qual seria a sua relação com Anna Lívia, mas lentamente, conforme Adam retorna ao convívio na vila – e ele conta tudo isso em um estilo lacônico, que alterna entre flashes em primeira pessoa e grandes blocos em terceira pessoa onisciente –, descobrimos que os dois tiveram um envolvimento amoroso. Entre as brechas de uma narrativa e outra, Adam também conta uma outra história, além da sua e a de Jonas e Timóteo – a de seu pai, Arão. Tanto o filho como o seu criador biológico, assim como Jonas e Timóteo, eram competidores (ou complementavam-se, dependendo do ponto de vista) na única vocação que lhes sobrara: a de serem pesquisadores das canções de amor elaboradas pela mesma dupla que disputava o coração de Anna Lívia. Arão foi o pioneiro em uma grande descoberta científica: a de que todo conhecimento humano e artístico chegou até nós, em primeiro lugar, por meio de canções e depois por poemas escritos; ele já existia em uma unidade indissolúvel, geralmente relacionada ao mito de Orfeu, e foi partido em inúmeros pedaços ao redor do mundo, fragmentando-se cada vez mais até a nossa era. O pai de Adam revelou tudo isso ao entrevistar os músicos que viviam no mesmo vilarejo onde seu filho se encontra agora, para recolher o corpo de Anna Lívia. Contudo, quando retornou à cidade com sua família (entre eles, o pequeno Adam), Arão ficou tão obcecado pelo resultado dos seus estudos que jamais conseguiu terminá-los – algo ainda mais agravado pelo fato de que ele morreu misteriosamente, naquilo que o legista chamou de “ferimento autoinfligido”. Pouco a pouco, enquanto Adam conta a sua história, de maneira igualmente estilhaçada, em paralelo com a narrativa da rixa entre Jonas e Timóteo (que, por sua vez, cantam a história de amor maldito entre um fazendeiro chamado Bernardo Cordeiro e sua esposa Julia, aterrorizados por um grupo de capangas, intitulada “A fuga de Deus”), somos informados de que o filho de Arão retornou à vila há muito tempo para continuar a pesquisa do seu pai. É ali que sabemos do relacionamento de Adam com Anna Lívia, uma mulher misteriosa a qual, ao que parece, também conheceu intimamente Arão. Atormentado por essa descoberta, o filho também se envolve com Anna Lívia. Porém, no meio desse fascínio, algo o incomoda: como ela pode continuar a mesma, durante todos esses anos? A loucura do affair – e a descoberta de que a história de Jonas e Timóteo terminou de maneira trágica, com o primeiro morrendo por causa de uma briga em uma taverna, e o segundo afogado no mesmo rio onde depois Anna Lívia seria descoberta – faz Adam retornar à cidade. É aqui onde voltamos no início da narrativa, mas que, na verdade, era o meio da história: Adam é chamado para confirmar o corpo de Anna Lívia no necrotério do vilarejo e, com seu retorno, sem saber como, ele também se envolve com uma jovem muito parecida com a mulher enigmática do seu passado, chamada Luísa. Ela passa a lhe contar, igualmente de maneira digressiva, uma outra versão tanto da história de Jonas e Timóteo como das andanças de Arão na “habitação dos deuses”. O caráter cíclico desses sucessivos enigmas o perturba cada vez mais, já que, pela primeira vez, Luísa lhe apresenta surpreendentemente a versão final (e escrita) da canção “A fuga de Deus”. O que agora entendemos dessa obra de arte é o seguinte: Bernardo Cordeiro, com sua esposa Julia e família (dois filhos), chegam ao vilarejo para cuidar de uma propriedade herdada do seu falecido tio. Lá, logo entram em confronto com um grupo de capangas (ou bandoleiros, se quisermos ser mais precisos) que, comandados por um poderoso fazendeiro – o senhor Santiago –, o ameaçam constantemente. Contudo, o problema é que Bernardo já matou antes – foi soldado na Primeira Guerra Mundial, do lado francês – e não quer repetir o mesmo ato, pois converteu-se ao catolicismo, com ajuda da esposa. Mesmo assim, os bandoleiros são implacáveis e, em um evento trágico, no meio de uma festa da vila, enquanto Bernardo ouvia atentamente uma canção feita pelo mestre das histórias local – e que narrava a descida de Orfeu ao Hades para buscar Eurídice –, eles assassinaram brutalmente Júlia. Dilacerado entre o desejo de vingança e a exigência do perdão, Bernardo sucumbe ao primeiro. No meio de uma noite, enlouquecido pela dor, ele depara, por uma estranha coincidência (como sói acontecer nessas cantigas inescrutáveis), com o mesmo mestre de histórias que o fez se distrair na hora da morte da sua esposa. Em uma conversa enigmática, esse maestro reconta a história de Dédalo, o criador de labirintos o qual, assim como Orfeu, desceu ao inferno para recuperar a memória do seu filho, Ícaro, notoriamente falecido por causa da ousadia de voar muito perto do sol ao criar uma maneira de escapar do labirinto onde estava preso – e assim teve suas asas queimadas para depois morrer afogado no oceano. O cantor fala que todas essas histórias – inclusive a que será vivida por Bernardo – fazem parte de uma tradição imemorial, de uma unidade que se partiu no curso da história humana e, por isso, perdeu-se na memória das pessoas. O fragmento mais próximo da sua origem se encontra justamente na posse deste mestre das histórias. “Todos esses relatos têm somente um único ensinamento, Bernardo: o de que Deus fugiu para um lugar incerto e não sabido, mas talvez nós possamos encontrá-lo aqui, nesta habitação onde estamos”. Porém, para isso, é fundamental descer ao Hades – e, no caso específico de Bernardo, ele terá de enfrentar os capangas de Santiago. Enfeitiçado pela melodia da canção (e da promessa que ela traz), Bernardo ruma à fazenda do latifundiário e, armado com um rifle, uma pistola e uma faca, vinga-se da morte da esposa e mata todos os seus oponentes em uma carnificina sanguinolenta. Entretanto, a sensação de perda permanece em seu coração; ele sente que sua esposa não foi vingada. Bernardo retorna para conversar com o maestro; não o encontra mais. Sem rumo, passa a vagar de maneira anônima pelas redondezas da vila. Observa que seu corpo envelhece brutalmente, mas que sua alma se petrificou no tempo. A morte não o atinge. Passa a se esconder em uma cabana distante, perto do rio onde o cadáver de Anna Lívia seria encontrado. Pouco a pouco, ele cantarola para si mesmo as canções que ouviu do mestre das histórias. Percebe então que se tornou, naquele mundo esvaziado por Deus, o músico que o convenceu a praticar o ato hediondo.
A partir daí, tudo se esclarece para Adam: os padrões, os motivos circulares, o eterno retorno que o levou para sempre ao vilarejo. A história apresentada por Luísa é a história que apresentou a Jonas, Timóteo e Arão porque ambas as mulheres são a mesma pessoa, as quais o efeito do tempo não atinge de forma alguma – já que elas se envolveram com o espectro que morava naquela cabana próxima do rio distante. E Adam também descobre que fatos idênticos aconteceram entre Jonas e Timóteo – e que, no fim de tudo, ele é o seu próprio pai. Sim, eles morreram, mas, na “habitação dos deuses”, também são imortais porque suas vidas estão incompletas – as de Jonas e Timóteo por causa da rivalidade implacável entre eles, as de Anna Lívia e Luísa porque ambas eram devotadas ao feitiço do mestre das histórias e a de Adam porque ele não conseguiu superar o enigma que envolve a morte do seu pai. O vilarejo é, na verdade, um enorme cárcere de almas penadas.
Logo depois de contar a história a Adam, Luísa faz amor com ele e, no meio do ato, tenta assassiná-lo. A loucura ao descobrir a sua verdadeira identidade e o desejo de possuir a filha que é também a mãe a qual fascinou Arão no passado o levam à fúria passional – e ele esgana Luísa no quarto de hotel onde se encontravam com frequência. Completamente desnorteado, Adam vaga pela vila até a cabana que existe perto do rio. É ali que ele encontra o que presumivelmente seriam os restos de Bernardo Cordeiro: um amontoado sangrento de músculos, vísceras e ossos, a balbuciar por um único orifício, similar a uma boca. Adam aproxima-se do espécime indistinto e tenta escutar o que ele diz: trata-se da confissão de que foi ele, Bernardo, que enfeitiçou Anna Lívia para ela se jogar no rio, a fim que a criatura pudesse repassar seu ensinamento a Luísa – assim como fez sucessivamente com Jonas, Timóteo e Arão. O monstro pede a Adam que o liberte, cantando o que aprendeu com as histórias de todos os envolvidos, de Orfeu e Dédalo, passando pelo próprio Bernardo, e a terminar com as canções de Jonas, Timóteo, Anna Lívia, o seu próprio pai – e, claro, ele mesmo.
Adam atende à súplica – e o que vemos logo a seguir é ele a carregar o que teria sido Bernardo Cordeiro como se fosse seu próprio filho, indo em direção ao rio onde foi encontrado o corpo de Anna Lívia. Enquanto mergulha lentamente nas águas, Adam cantarola algumas palavras que uma testemunha – a mesma que narrou este conto para mim nos dias em que tentávamos sobreviver no meio de uma peste – presenciou naquele exato momento. Suspeita-se que foi algo assim: “Sim, sou o que vai ao/ inferno quando quero/ e de lá trago singelas, / claras, límpidas novidades”. É de se perguntar se todo o meu relato feito acima não faz parte da trama urdida pelo mestre das canções que governa a habitação dos deuses. A publicação destas linhas, dedicadas aos heróis e heroínas abandonados, talvez já estivesse prevista como consequência do seu feitiço.
por Bernardo Sanior Animi
Escritor, marceneiro nas horas vagas, mora em Goiânia.