– por Raphael Mees
Era uma vez, num tempo muito distante, um mundo onde todos olhavam para o Sol o tempo todo. Reza a lenda que, nesse tempo longínquo, nada era mais prazeroso ao homem do que olhar o Sol. Algo parece ter mudado: nossos olhos são frágeis demais para sustentar alguns poucos segundos mirando o sol de frente e, caso ousemos ir além desse limite, seremos punidos com cegueira e escuridão. Quem voa muito perto do Sol derrete as asas e cai do céu e morre. Tudo o que nos resta são pequenos relances do Sol. Não podendo olhá-lo “nos olhos”, e só conhecemos o Sol observando as coisas que ele ilumina.
Há algo em nós, contudo, que não se satisfaz com essa condição. As coisas em nossa volta são por demais imperfeitas; e todo ser-humano já experimentou na alma certo desânimo perante as injustiças, maldades, mentiras e nojeiras de que o mundo, debaixo da luz solar, está repleto. Queremos olhar algo mais limpo, algo imune a condição terrena. Para quem busca o Sol, não parece certo que metade do tempo seja passado no escuro. E, para o espírito puro que só deseja paz e amor, parece uma piada pedir-lhe que chame a um mundo destes, povoado por ódio e medo, casa.
Então nasce, desta dissonância que tentamos ignorar, o mais profundo sonho da nossa espécie: escapar. Um dia, de alguma forma, havemos de recuperar o nosso lugar ao Sol. Assim pensa John Lennon, e assim pensou Platão, mais de dois milénios antes. A ideia de que vivemos numa caverna, na escuridão, a assistir à dança das sombras projetadas por uma fogueira atrás de nós para as paredes da caverna, é outra forma de conceptualizar a intuição da ilegitimidade deste mundo. Para Platão, a solução era, primeiro, perceber que aquilo que vemos são sombras. Depois, virar as costas às sombras e sair da caverna — sendo iluminados pela luz do Sol uma vez mais.
Por encontrar-se num mundo de ruínas, o homem sonha um dia alcançar a perfeição. Vê injustiças e sonha com um mundo justo. Perante a deformidade, suspira ao pensar num mundo belo. Quando se depara com os seus erros, promete a si mesmo que um dia, e não há de demorar, a verdade será sua. Desde que o mundo é mundo, são estes três, o Bom, o Belo e a Verdade, que exprimem a perfeição à qual o homem aspira, à qual deseja retornar.
Assim como tudo na vida humana (exceto as facas de um só gume) este sonho é uma faca de dois gumes. Por um lado, pode ser usado para guiar uma vida conduzida sempre em direção ao mais alto. Por outro, pode se transformar numa fachada que nos permite ignorar o nosso lugar — o homem deixa de viver aqui e passa a habitar as suas fantasias do melo e do boral.
O ímpeto de negar o mundo é, contudo, absolutamente natural. Eu próprio já me senti o personagem principal de uma tragédia várias vezes. E, em momentos um tanto mais humildes, já senti o mesmo por outros.
Que tudo isto exista e seja como é, que as coisas se desenrolem de uma certa maneira, que o nosso pensamento tenha as características que tem: tudo parece um grande Mistério. É, em última análise, incompreensível. Já dizia Coélet, o autor do Livro do Eclesiastes: “Ó suprema fugacidade! Tudo é fugaz! Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do Sol?” É tudo correr atrás do vento…
Quero aqui falar de três estratégias que usamos hoje em dia, nos tempos modernos e contemporâneos, para tentar explicar, resolver, terminar o mistério do mundo. Uma para explicar como alcançamos o Bem, outra para o Belo, e a última para a Verdade. Todas as três têm semelhanças entre si, pois funcionam como espelhos umas das outras, e apesar de pertencerem a campos diferentes.
O Bom e o Justo
Não há nada como testemunhar uma injustiça para despedaçar nossas ilusões a respeito do mundo. É algo verdadeiramente difícil para nós de entender em termos racionais. Se todos agissem conforme a razão, pensamos, é claro que injustiças nunca aconteceriam. Então para explicar o fato de que injustiças acontecem, recorremos às partes do nosso comportamento que são irracionais: as emoções. Muitas vezes, as pessoas não controlam as emoções, agem sem pensar, e alguns recebem mais mal do que mereciam, ou mais bem do que mereciam.
De acordo com esta explicação, que encontramos, por exemplo, em Kant, poderemos alcançar o Bem quando conseguirmos controlar as nossas emoções e agir apenas em função dos critérios racionais que impomos a nós próprios. Conseguimos, na teoria, separar perfeitamente o elemento mau do elemento bom dentro de nós. Basta separar as emoções da razão na prática.
O outro lado da moeda é pensar que as injustiças acontecem, não porque tenhamos agido de forma irracional, mas porque o próprio mundo é irracional. Não faria sentido, afinal, que nós tivéssemos em nós algo que não devíamos ter. Nossas emoções são parte de nós e ouvi-las não devia ser equívoco. Todavia, não raro minhas emoções me colocam contra outra pessoa . A culpa não é minha nem dela: foi o mundo que cruzou nossos caminhos. A culpa (a irracionalidade) é do mundo.
Conflitos são sempre injustos porque implicam um vencedor e um perdedor. Um fica com a luz, o outro fica no escuro. Esta diferença entre as pessoas, que é um facto do mundo, é notoriamente difícil de explicar. Seria certamente mais fácil explicar a justiça de recebermos todos o mesmo: somos todos iguais, cada um de nós tem o mesmo valor que todos os outros. Mas não é assim nas nossas vidas emocionais. Isto é simplesmente um facto. A nossa justiça, ao que parece, é irresolutamente parcial.
A ideia da justiça como regras racionais, de que falei inicialmente, é o inverso disso: se seguimos todos as mesmas regras, somos todos igualmente bons. Somos maus apenas na medida em que não cumprimos as regras — e todos igualmente maus, também. A Justiça, portanto, é entendida como igualdade, imparcialidade — é justa precisamente porque todos seguem as mesmas regras. Estas regras fornecem um algoritmo perfeitamente racional que podemos aplicar a cada um para dividir os bons dos maus: 0 e 1. Mas parece que, seguindo estas regras, realmente nos tornaríamos em algo como computadores — determinados mecanicamente por um procedimento.
Ficamos presos entre o absolutamente parcial e o absolutamente imparcial. Ou somos bestas, que seguem as suas emocoes cegamente, ou somos máquinas, que seguem as regras cegamente. Nenhuma destas estratégias consegue, portanto, alcançar o seu objetivo inicial: o Bem, o nosso lugar ao Sol. Ou temos o nosso benzinho que é só nosso, que não nos transcende, ou temos um bem tão austero que parece ainda menos a nossa casa do que o mundo injusto em que vivemos — transcende-nos completamente. Este é o primeiro dilema.
O Belo e o Prazer
Quando olhamos para algo feio ou nojento, a nossa única vontade é parar e, se possível, esquecê-lo de vez, retirando o espaço que lhe foi dado na nossa mente. O feio está associado a um tipo muito particular de desprazer, uma irritação do espírito, um desassossego interno — exatamente o oposto da sensação de conformidade que experimentamos quando observamos algo belo. Mas de onde vem a feiura? Se não a conseguirmos compreender, nunca a poderemos eliminar, nunca poderemos alcançar o Belo — o estado de êxtase contemplativa sem qualquer perturbação ou desarmonia, a pura luz, sem escuridão.
Uma explicação é que o feio é desagradável por provocar emoções, isto é, por causar perturbações e ondulações no nosso estado de espírito. Para conseguirmos produzir beleza, a arte pura, devemos retirar o conteúdo emocional e manter apenas a proporção na forma. O prazer estético é sempre desinteressado: observamos uma bela flor sem pensar em emoções… somos contidos por qualquer coisa que a flor simplesmente possui, em virtude do modo como as suas partes se unem num todo. A flor não expressa qualquer emoção: simplesmente é. E a apreciamos por isso. Ela representa um escape ao instável e perturbador mundo das emoções caóticas. É uma perfeição racional.
O outro lado do espelho é defender que o essencial da feiura não é causar uma emoção. Emoções também podem ser de prazer intenso. O que a feiura tem de especial é causar emoções más. Quando olhamos para uma obra de arte, por exemplo, procuramos nela algo que nos diga mais sobre nós mesmos. Quando sentimos que há uma conexão entre as nossas emoções e as emoções que a arte (ou qualquer outra coisa) nos transmite, estamos perante algo belo. Quando não há esta harmonia entre observador e observado, quando o objeto nos é repulsivo, não combina conosco, então estamos perante algo feio. As coisas não são belas ou feias em si, portanto. São-no apenas dependendo do que transmitem àquele que julga sobre a sua beleza. Como diz o velho ditado: a beleza está nos olhos de quem vê.
Outra vez, temos um dilema. Uma posição identifica em nós o problema: se conseguirmos perder a nossa parte irracional e emocional, contemplando apenas a forma (e não o conteúdo) do mundo, alcançaremos o Belo. A outra identifica no mundo o problema: o feio existe quando o mundo não combina com o indivíduo — algo que acontece com frequência, como evidenciado pelas nossas frequentes sensações de desprazer estético.
Numa delas, outra vez, é-nos pedido que abandonemos a nossa pessoa, as nossas emoções, todo o nosso conteúdo, sacrificando estas partes menos dignas para viver apenas num mundo de perfeição formal. Enquanto a nossa contemplação estética envolver emoções, será perturbada — é este o critério… 0 e 1 outra vez.
Noutra, o que se pede é apenas autenticidade a si próprio: cada um tem as suas emoções, cada um vê a sua beleza. Temos de nos manter fiéis a isso. Se isto significa que muitas coisas à nossa volta têm de ser rejeitadas como feias, que seja.
Novamente, seguindo o padrão do que se passou com o Bem, ou somos racionalidade “pura”, livre deste mundo impuro, ou somos emoção pura, presos neste mundo impuro. Outra vez, ou temos o belo absolutamente imparcial, ou temos o nosso belo, que não é de mais ninguém. Ou o mundo tem uma beleza que não nos pertence, ou a beleza pertence apenas a nós, e não ao mundo. Falhamos também em atingir o Belo — uma ideia de beleza na qual nos encaixamos com o mundo, o nosso lugar ao Sol. Este é o segundo dilema.
A Verdade e a Certeza
Ninguém gosta de se sentir estúpido. Apesar disso, falhamos constantemente até mesmo nas tarefas intelectuais mais básicas. A todo o momento, a qualquer conclusão a que possamos chegar, sabemos, mesmo querendo fingir que não, que podemos estar errados — estatisticamente, o mais provável é que de fato o estejamos. Somos abençoados com a capacidade de superar a nossa própria ilusão, mas esta benção parece antes uma maldição disfarçada: ao superarmos a ilusão, estabelecemos um precedente. Se eu estava enganado antes, também posso estar enganado agora. Poder superar a ilusão é exatamente o que me faz desconfiar que esteja iludido agora.
Mais uma vez, a estratégia é identificar de onde vem o erro e a ilusão, para depois podermos exterminá-los sistematicamente. Assim, poderemos atingir a certeza, a ausência de dúvidas de que encontramos a Verdade.
A primeira explicação seria que a ilusão vem da nossa experiência particular no mundo. Ora, sempre que estivemos em ilusão, foi por causa de uma falta de perspectiva no nosso ponto de vista. Víamos algumas coisas, mas não conseguíamos ver justamente aquilo que mais tarde revelaria o nosso engano. Os nossos cinco sentidos, a nossa história no mundo, a nossa linguagem, tudo aquilo que nos coloca num ponto de vista particular (em vez de em outro), limita a nossa capacidade de ver para além dele. É desta limitação que vem a ilusão.
Para escaparmos ao erro, então, basta eliminarmos de nós tudo aquilo que seja particular. Fica apenas aquilo em nós de absolutamente universal, imparcial, válido para tudo e todos, em qualquer circunstância ou de qualquer ponto de vista: a Razão Pura. Verdades matemáticas, por exemplo, não dependem de sentidos, de linguagens, de histórias pessoais, nem mesmo da nossa existência no mundo, para serem verdadeiras. Só esta racionalidade pura pode atingir o nível de certeza e ausência de dúvida a que procuramos.
Basta, então, perguntarmos, sobre qualquer afirmação: a sua verdade depende de mim, ou é dedutível através de um processo racional independente? Aqui temos o critério que separa a Verdade da ilusão. Outra vez, 0 e 1. Se quisermos atingir a certeza, temos de abandonar tudo de impuro e ilusório que existe em nós, ficando apenas com aquilo que seria verdade para qualquer um (ou até mesmo para ninguém).
O outro lado da Lua, desta vez, é identificar o erro, não na nossa perspectiva enquanto tal, mas na desarmonia entre a nossa perspectiva e o mundo. Muitas vezes temos conclusões que partem da nossa perspectiva e que julgamos corretas — nem todas são ilusórias. O que faz das conclusões ilusórias é o mundo não corresponder com aquilo que experienciamos.
Se eu posso ter certeza de qualquer coisa, não é do que há independentemente de mim, mas sim do que eu sinto, vejo, penso. Para chegar à Verdade, não tenho escolha senão partir daquilo que acontece comigo, verificando o melhor que puder se o meu ponto de vista corresponde com o que se passa no mundo. Nesta visão, porém, a dúvida nunca poderá ser eliminada. Estou sempre preso ao meu ponto de vista, a verdade que vejo é a que eu vejo, e nada me garante que será a mesma que os outros, dos seus pontos de vista distintos, vêem. A verdade é relativa.
Pela terceira vez, ficamos presos entre a Verdade absolutamente imparcial e independente de nós e a verdade absolutamente parcial e relativa a cada um. Ou perdemos a nossa humanidade para atingir a Verdade, que afinal de contas não nos pertence, ou estamos condenados a nunca a poder atingir, presos num mundo de ilusão e falsidade que não combina connosco. Falhamos, como é claro, em atingir o nosso lugar ao Sol no que toca à Verdade também. Este é o terceiro dilema.
O Uno e o Múltiplo
Os dilemas são todos iguais. Perante os mistérios que existem entre o Céu e a Terra, as respostas da nossa vã filosofia são simples: ou não pertencemos ao mundo, ou o mundo não nos pertence. Podemos ser ascéticos ou hedonistas, trágicos ou cómicos, céticos ou dogmáticos. Oito ou oitenta, tudo ou nada, 0 ou 1.
Ou são todos iguais perante a mesma regra/critério, ou são todos iguais na medida em que são todos absolutamente diferentes. Ou noite, ou dia. Ou luz, ou escuridão. Ou sujeito, ou objeto (note-se que a regra é pública e acessível a qualquer um, talvez até independente de nós; enquanto a posição que se opõe à regra é sempre baseada em algo privado e particular, ao qual apenas o indivíduo tem acesso: emoções em ética, emoções em estética, pontos de vista em epistemologia).
Espero que o problema a este ponto tenha-se tornado óbvio: nós vivemos num mundo que, justamente, contém tanto noite como dia. O problema de, ou reduzir tudo a uma regra, ou afirmar tudo como irredutivelmente diferente, é nada mais que a incapacidade de lidar com a diferença. É o problama do Uno e do Múltiplo de Parménides, que afirmou que a mudança é impossível.
Uma coisa, dizia ele, só pode ser o que é se for idêntica a si mesma. Para que algo pudesse mudar, teria de ser algo diferente e o mesmo, simultaneamente — mas isto é absurdo. O nosso problema é que, cá no mundo, infelizmente para alguns, as coisas mudam. Eu não sou o mesmo de antes, mas ainda sou o mesmo. Tudo no nosso mundo é assim.
Acontece que este problema teve muitas respostas, no seu tempo. Sem dúvida que estudar mais a fundo sobre os nossos antepassados faria muito bem a todos — a mim inclusive. Apesar de conhecimento admitidamente superficial sobre o tema, quero explorar a resposta que Aristóteles deu a este problema. (Nota: sinceramente, não sei até que ponto o que vou dizer é mesmo Aristóteles ou invenção minha com base em Aristóteles. Vale o que vale).
Aristóteles respondeu: a mudança é possível porque a distinção entre o que É e o que NÃO É não funciona como Parménides achava. Ser a mesma coisa não significa ser (logica ou numericamente) idêntico a si mesmo. Ser a mesma coisa é ter a mesma essência. Em tudo o que existe, há partes essenciais, sem as quais aquilo não seria o que é, e partes acidentais, que estão lá “por acaso”, por acidente — que poderiam não estar lá sem que a coisa deixasse de ser o que é.
Quando a mudança ocorre, não temos algo a surgir dos confins da “não-existência” para o mundo do que “é”. Antes, algo que já existia, mas apenas em potência, passa a existir em ato. Da mesma forma que eu podia sofrer um acidente de carro e perder uma perna sem deixar de ser eu mesmo, o Porto (cidade onde eu vivo) podia perder um prédio ou outro sem deixar de ser a mesma cidade. A minha perna é um acidente em mim (existe a potência de que ela deixe de existir), os prédios do Porto também lhe são acidentais (existe a potência de o Porto se tornar uma cidade apenas de casas).
Eu não podia perder a vida sem deixar de ser eu, mas o Porto podia perder a minha vida sem deixar de ser o Porto. E Portugal podia perder o Porto. E o planeta Terra podia perder Portugal. E a galáxia podia perder o planeta Terra. É difícil imaginar até que ponto isto vai. A resposta é: vai até chegarmos ao ponto em que encontramos algo que não podia ser perdido — até ao ponto em que chegamos àquilo que não é acidental. A essência que permite a existência de tudo o resto enquanto seus acidentes. É a isto que Aristóteles chama o Motor Imóvel. Aquilo que atualiza todas as potências sem ser ele próprio atualizado (já que já é puro Ato).
Mas o que é que me garante que algo assim existe? O que me obriga a pensar que a cadeia não pode continuar infinitamente? A resposta é: se a cadeia de coisas que poderiam não existir continuar infinitamente, então o mundo é uma série infinita de coisas que podiam não existir. Assim, há a possibilidade que nenhuma delas existisse (já que todas elas podiam não existir). Se este é o caso, então, há a possibilidade que o próprio mundo podia não existir. Mas se o mundo podia não existir, por que razão existe?
Se o mundo podia não existir, então ele é acidental. Mas todos os acidentes são acidentes de uma essência. Se não for assim, o problema da mudança não se resolve. Precisamos de algo que seja a essência do mundo. Algo que exista já antes do mundo e que possibilite a sua existência.
Isto pode parecer extremamente distante do assunto inicial: o que esta versão do argumento cosmológico tem a ver com o nosso lugar ao Sol?
É que ela nos permite entender o nosso lugar no cosmos sem nos colocar fora dele ou colocá-lo fora de nós. Como se viu, o problema originário é o de entender como será possível um mundo de mudança e diferença, como será possível um mundo Múltiplo. Parece que só podemos entender as coisas se o mundo for, em última instância, Uno. Ou a Verdade, o Bem e o Belo são Múltiplos, relativos e irracionais; ou são um só, fruto da mesma racionalidade. Mas só podemos entender o nosso lugar, enquanto seres que mudam, num Uno assim, se o Uno e o Múltiplo forem conciliáveis.
Mas o Uno não é, como se pensava, a ausência de diferença. Isto seria confundir igualdade com simetria e continuidade. O mundo é contínuo e simétrico, não igualitário. É simétrico na medida em que existe uma proporção equilibrada entre os seus dois lados — o Uno e o Múltiplo. Não são o mesmo, mas completam-se. Os múltiplos pontos de vista são contínuos um ao outro porque convergem em uma coisa só. A noite e o dia não precisam ser iguais.
O Grande Mistério do Ser
Apesar de tudo o que foi dito, a questão pode parecer um tanto mal explicada, pelo menos até agora. Fomos de problemas concretos com o mundo, do fato da nossa incongruência com ele, a coisas muito abstratas sobre o Uno e o Múltiplo. Falta fazer o caminho de volta.
Talvez a conclusão já estivesse connosco desde o início, talvez até tenha sido uma das primeiras coisas que eu disse. Mesmo assim: o nosso conhecimento do mundo nunca poderá ser absoluto, mas também não é absolutamente relativo. Nós não somos o Uno, mas o Uno existe. O mundo não é um conjunto aleatório de Múltiplos. Não podemos olhar diretamente para o Sol, nem iluminar as coisas como ele. Mas vemos aquilo que o Sol ilumina.
Se o leitor pensa que isto não prova nada, tem razão. De uma forma ou de outra, a nossa postura perante o Sol continuará sempre a ser uma de profundo mistério. Sabemos que não o podemos conhecer, mas que ele está lá. Isto se reflete em cada uma das suas três manifestações para nós: o Bom, o Belo e a Verdade.
No que toca ao Bom, talvez uma estratégia mais acertada seja focar a nossa atenção na justiça, em vez de na injustiça. Ora, agora que vemos que a justiça não pode exigir igualdade, podemos aceitar mais facilmente a ideia clássica. A justiça acontece quando se dá, a cada um, a sua justa parte. Não necessariamente o mesmo critério para todos, não necessariamente um critério para cada um. Identificar a justa parte depende de uma generosidade interpretativa da nossa parte, bem como alguma imparcialidade. Tentamos entender o mundo pelos olhos do outro, mas não só: também vemos o mundo de pontos mais altos. Tentamos encontrar um concílio.
Cada coisa no mundo tem a sua parte devida, o seu papel. Se entendemos o Bem desta forma, já podemos entender a noção de propósito. Não é inventado por mim nem me é imposto: antes, o propósito de cada coisa depende do seu papel numa certa história. Esta história não se reduz a uma autobiografia, no entanto. A maior parte do propósito de Nietzsche, por exemplo, só desabrochou depois da sua morte. O seu propósito era póstumo — e estranhamente, ele próprio parecia ter noção disso.
Assim, o Bem não é algo que podemos possuir por completo, já que nos transcende. Mas não é algo que nos é de todo inacessível. A nossa relação correta para com o Bem é de Amor: interpretar as coisas buscando sempre o maior bem possível de dentro delas. Por vezes este bem pode exigir ações ríspidas, por vezes podemos nos enganar. Mas a atitude de boa fé daquele que ama é a de nunca desistir do seu amado. Não importa o quê, amamos o Bem, amamos o Amor, e agimos como tal — mesmo sem compreendê-lo perfeitamente. Com efeito, se o compreendêssemos, o caráter fundamental do nosso tipo de amor, que é o de buscar o Bem nas coisas (o amor no olhar), seria perdido. Não haveria busca, nem mistério, nem Amor humano.
De forma semelhante, acho interessante focar no prazer do Belo, em vez de no desprazer do feio. Elaine Scarry, no seu ótimo On Beauty and Being Just, fala sobre como a essência do Belo é a vontade que ele provoca em nós de perpetuá-lo. Quando ouvimos uma bela música, cantamos junto. Quando vemos algo lindo, queremos desenhar ou descrever, contar para mais pessoas, para que aquela beleza permaneça no mundo, de algum modo. Mesmo sem replicar ativamente, queremos perpetuar o belo em nós: não conseguimos parar de olhar, queremos que a sua presença diante de nós passe de cinco segundos a dez, trinta, algumas horas, uma vida. Até esperamos que o Belo permaneça pela eternidade.
Mas qual seria a razão desse interesse e prazer profundo? O que é que dá ao Belo esta propriedade tão interessante de funcionar como um chamado, que nos aparece de forma gratuita e nos incita a persegui-lo? Pensemos no que nos faz querer dar atenção a qualquer coisa, no geral. É apenas quando encontramos coisas interessantes que decidimos investir a nossa atenção. O que torna algo interessante é a capacidade daquele objeto de me proporcionar, ao longo do tempo de observação, mais e mais e mais estímulos.
O Belo tem uma certa fertilidade inextinguível. Não nos cansamos de olhar porque há algo ali que não parece ser explicável. Justamente: se fosse explicável, estava explicado e arrumado, e passávamos para a próxima coisa. Não há interesse em ver algo que já compreendemos por completo. Já não tiramos nada dali: é uma casca de fruta sem sumo nenhum. Mas o Belo tem sempre mais sumo, não se sabe bem como. É precisamente o seu mistério que o torna aquilo que é. É precisamente por transcender as nossas capacidades, que queremos estar sempre na sua presença. Buscamos algo que nos complete, não algo igual a nós.
A relação com a Verdade é análoga. Como já foi dito, a verdade só se manifesta em nós depois de percebermos o nosso erro. Mas para reconhecermos o erro, a Verdade tem de iluminar algo que já existia em nós (algo que já tínhamos em potência), mas não tinha vindo ao cabo. Como Platão imaginou, parece que descobrir a Verdade é sempre um processo de lembrança. De alguma forma, para podermos saber, é necessário que já o soubéssemos antes, mas de forma esquecida, oculta.
A busca pela claridade, a busca pela luz, a reverência e maravilha perante ela quando a encontramos, é a atitude do filósofo — da Verdade, ele é amigo e amante, não possuidor nem mestre. A verdade em nós só se manifesta através do reconhecimento e transcendência da ilusão e do erro. Eliminar esta possibilidade seria eliminar aquilo que torna a Verdade em nós possível.
O nosso lugar, afinal de contas, não é só ao Sol. Durante metade da vida, estamos à luz do Luar, ainda que não façamos senão dormir e sonhar.
Raphael Mees nasceu no Brasil, mas vive em Portugal desde a infância. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto.