Grande Desejo: Mímesis – René Girard e João Guimarães Rosa

– por Christiano Galvão

No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade…[1] É assim que, nas páginas finais de seu longo relato, o jagunço Riobaldo, já idoso, encoraja um incógnito interlocutor – ou seja, quem o estiver lendo – a desvendar a natureza do estranho desejo que por muito tempo o manteve obcecado pelo amigo, e também jagunço, Reinaldo Diadorim. Para grande parte dos leitores trata-se, obviamente, de um sublimado desejo homossexual. Mesmo no fim do romance, quando sobrevém a revelação de que Diadorim era uma moça (que se travestia por força das circunstâncias), as confissões e atitudes expressas por Riobaldo, antes desse desfecho, parecem comprometê-lo de modo irreparável. Nem mesmo os beijos aflitos que ele desfere sobre a recém descoberta defunta atenuam o consenso: Riobaldo é um gay enrustido que, naquela hora final, tenta em vão salvar as aparências!… E não são poucos os leitores que procuram entendê-lo; o literato italiano Claudio Magri, por exemplo, declarou que Grande Sertão: Veredas é a “maior história de amor homossexual já escrita no mundo”, uma narrativa que nos faz “perceber que a gente não se apaixona por um sexo, e sim por uma pessoa[2]. Ora, conquanto pareça profunda, perspicaz, essa apreciação é um paradoxo, pois se o amor é de natureza pessoal e não sexual, logo a qualificação de “maior história de amor homossexual” torna-se descabida.       

      

Sem precipitações nem polêmicas, através de uma releitura atenta do que Riobaldo narra, talvez achemos mais do que essas obviedades que parecem reduzir Grande Sertão: Veredas a uma mera pegadinha ou “mentira romântica”; talvez achemos a “verdade romanesca” que, segundo o pensador francês René Girard, caracteriza a genialidade de escritores do porte de João Guimarães Rosa.

Comecemos então a reler o primeiro encontro dos protagonistas, que é também o momento da gênese de seus desejos.                   

Os dois se conheceram na juventude, numa aldeia portuária de um afluente do Rio São Francisco. Riobaldo mendigava para pagar uma promessa, não conhecia o pai e sua mãe logo morreria. Ao passo que Reinaldo Diadorim era o filho único de Joca Ramiro (o mais poderoso e temido chefe da jagunçagem dos Gerais), um menino tão belo quanto autoconfiante. Ao vê-lo, Riobaldo entrega-se a contemplação fascinada de alguém que, embora fosse mais ou menos do seu tipo, era absolutamente dessemelhante:

Ai pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos que eu, ou devia regular minha idade […] E se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. […][3]

            Após trocarem algumas palavras, Riobaldo continua a se deslumbrar porque Diadorim se expressa com uma desenvoltura que acentua sua dessemelhança:

[…] fazia de conversar uma conversa adulta e antiga. Fui recebendo um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido.[4]

O desejo aqui expresso provém antes de uma carência ontológica do que de uma carência afetiva ou erótica. Riobaldo depare-se como algo que não enxerga em si mesmo: beleza, autoconfiança, coragem. E quanto mais se reconhece diferente, mais deseja a proximidade e a estima de Diadorim: era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma… calado e sabido, tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim[5]. Riobaldo escancara de tal modo sua carência e acerca-se tão entusiasticamente daquele menino que, de imediato, irrompe entre eles uma inusitada emulação:

Os olhos, eu sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro. Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para sua coragem…[6]

Ao perceber que sua admiração estava acendendo a vaidade de Diadorim, aumentando-lhe a coragem, Riobaldo esfria, muda de atitude, apressando-se em imitar seu olhar altivo:

Mas eu aguentei o ataque do olhar dele. Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a mão na minha… – “Você também é animoso…” – me disse. Amanheci minha aurora.[7]       

            Declarando-o “animoso”, Reinaldo Diadorim tornar-se para Riobaldo o modelo-mediador de uma vocação que até então ele não tinha. As palavras do pequeno príncipe dos jagunços desperta aquele pequeno esmoler de feira para a nulidade de sua existência, fazendo-o então amanhecer sua aurora. E Diadorim estava tão consciente de seu carisma que, antes de se afastar de Riobaldo, cuidou em ressaltar sua já notória singularidade: Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente…” Esta asserção, porém, em vez de intimidar e manter as distâncias, surtiu o efeito contrário levando Riobaldo, agora animoso, a cobiçar essa ressaltada diferença que, doravante, marcaria sua estória:

E não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, escute mais do que eu estou dizendo; escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei – : eu não sentia nada. Só uma transformação pesável. Muita coisa importante falta nome.[8]

Sem saber nomear o desejo fascinante que tanto o motivaria, Riobaldo nos desafia novamente a escutar mais do que ele diz, desarmando-se do óbvio para sondar essa transformação pesável.

Muitos anos transcorreriam até que eles se reencontrassem. Entrementes, a indelével lembrança de Diadorim determinaria todas as escolhas de Riobaldo que tentaria se diferenciar imitando-o em tudo. Com efeito, depois de uma curta e inopinada atuação como professor primário, ele torna-se jagunço, alcança a reputação de exímio atirador, adere ao bando de Medeiro Vaz, e leva uma vida aventurosa pelos sertões de Minas, Bahia e Goiás. Tudo isso, porém, parece não mitigar seu desejo de diferenciação e, o que é pior, as recordações daquele jovem modelo desbota a importância de todas as suas conquistas.

Como compensação, Riobaldo tenta se autoafirmar imitando qualquer figurão sertanejo, a começar por seu primeiro chefe que é descrito assim:

Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor não mais vê; eu ainda vi… Por isso todos nós o obedecíamos. Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos gerais – ele era. A gente era os medeiro-vazes.[9]

Reparem que o ele era, separado pelo travessão não funciona unicamente como um complemento. Neste período avulso há um rumor ontológico que, na sequência, vai provocar em Riobaldo uma réplica mimética: …A gente era os medeiro-vazes[10]. Aqui podemos inteligir um tipo de mímesis grupal, vaga e genérica que, conseguintemente, confere uma diferenciação precária. Isso talvez explique porque Riobaldo vive em constante desencanto com a jagunçagem: Jagunço é homem já meio desistido de si[11], O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser[12].

Começamos a compreender o porquê da “transformação pesável”. Riobaldo carece de um modelo mais eficaz, daquela valentia elegante e serena que só vislumbrara em Diadorim, e cuja ausência inviabilizava qualquer tentativa de imitação: Eh, de primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje, eu desconheço o arruído rumor das pancadas dele[13]. Essa aptidão para copiar só seria restaurada no momento do reencontro com Diadorim, quando Riobaldo era já um homem feito. Até lá, porém, ele perseverava nas tentativas de diferenciação que iam fazendo de sua vida uma mixórdia de arremedos frustrados ou frustrantes: A vida inventa! A gente principia no não saber porque, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada[14].

Mas eis que sobrevém o reencontro. Depois de tantas imitações improfícuas, o modelo ideal reaparece, melhorado, crescido, porém ainda reconhecível. A admiração se reaviva, e com ela dinâmica mimética dos olhares: …me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nós dois.[15] E a carência imprecisa converte-se num desejo implacável: E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele; podia?[16] Não podia, porque ali firmava-se a mímesis de apropriação, aquilo que René Girard define como o desejo de assimilar o “ser”, a personalidade de um outro. Tal como Dom Quixote em relação a Amadis de Gaula, Riobaldo abdica de sua liberdade de escolha para submetê-la ao amigo reencontrado: As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim[17]. Esta atitude é definida como uma amizade que é um prazer de estar próximo. Só isso, quase; e os todos sacrifícios[18].

Daí para adiante a crescente mímesis apropriativa dará a tudo uma conotação de similitude: Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava.[19] Ou uma busca obsessiva por identificação: Riobaldo… Reinaldo – dão par o nome de nós dois[20].  E quando lhe escapava algum detalhe na semelhança, ele logo cuidava em emendar: Diadorim fumava em excesso, Riobaldo então começa a fumar alegando que isso afastava os mosquitos[21]. Além dessa partilha de afinidades espontâneas ou forjadas, havia ainda a busca de lisonjas que deixavam Riobaldo povoado, enchido[22]. As palavras do amigo conferiam-lhe plenitude, de sorte que qualquer coisa que Reinaldo Diadorim dissesse para Riobaldo virava sete vezes[23]. Constata-se, portanto, a função de modelo-mediador desempenhada por Diadorim, cujas palavras ou mesmo a simples presença emprestavam significância à sua realidade existencial:

Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria.[24]

            Essa recusa de Riobaldo em entender resultava de um ciúme constrangedor que ora sentia pelo amigo. Ele não entendia que o desejo de apropriar-se do ser do outro implica necessariamente em direitos de exclusividade.

E veja: eu vinha tanto me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um ciúme amargoso.[25]  

O ciúme se agrava e se converte em ressentimento quando Riobaldo descobre que Diadorim tivera, há muito tempo, outro amigo íntimo, mas já falecido, que fora tão somente um tio chamado Leopoldo.

Tomava por ofensa a mim, que Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo companheiro. Até que, vai, cresci naquela ideia: que o que estava me fazendo falta era uma mulher.[26]

Riobaldo, como a maioria dos leitores, começa a suspeitar da conveniência de seus sentimentos. E, desesperado, sai em busca de mulheres que possam resolver aquele transtorno. Sua vida erótica então será dividida entre duas paixões: Nhorinhá, mulher de hábitos livres, puta e bela[27], e a casta Otacília, toda exata, criatura de belezas[28], a quem ele desposará.

Mas nenhuma das duas lograria aniquilar o estranho desejo por Diadorim, pois os distintos graus de amor e erotismo prefigurado em ambas não correspondiam ao desejo que verdadeiramente afligia o jagunço. Tanto que, ao pensar em seus grandes amores, Riobaldo distingue o sentimento pelo amigo como algo vago ou inapreensível: Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim era minha neblina.[29]

Neblina alude a uma confusão, uma incapacidade de ver ou medo de perder-se, calhando como uma metáfora sugestiva para o instante confuso em que a mímesis de apropriação converte-se em mímesis de antagonismo – ou seja, aquele revés do comportamento em que o sujeito e seu modelo já não se imitam para firmar uma mesma identidade, mas antes para resguardar o que lhes resta de alteridade. Nas idas e vindas da narrativa, o antagonismo se evidencia quando o chefe Medeiro Vaz morre e sinala pelo olhar que Riobaldo, o melhor atirador do bando, deveria substituí-lo. Mas como Riobaldo se mostrasse hesitante, Diadorim, por senso prático, reivindica para si o comando, e logo é aclamado pelos jagunços: – “Reinaldo! O Reinaldo” – foi o aprôvo deles[30]. Então, de súbito, Riobaldo se opõe, impelido pela seguinte ponderação:

Não. Diadorim, não. Nunca que eu podia consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo, e concebia por ele aquela vexável afeição que me estragava, feito um mau amor oculto – por mesmo isso, nimpes nada, era que eu não podia aceitar aquela transformação: negócio de para sempre receber mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe, nhem, hem? Nulo que eu ia estruchar. Não, hem, clamei – que como um sino desbadala: – “Discordo”.[31]

Neste parágrafo percebemos o momento em que o modelo-mediador é transformado em modelo-obstáculo. Na sequência, lemos como a oportunidade de comandar, aberta aos dois amigos, transfere-os do plano da mediação externa (da imitação unilateral, agregadora e pacífica) para a mediação interna (de imitação recíproca, conflituosa e desagregadora), e assim vislumbramos a figura de Diadorim converter-se em rival. Com efeito, a inesperada oposição de Riobaldo desencadeia uma hostilidade tão brusca, tão irreprimível que quase os precipita num duelo:

Todos me olhassem? Não vi, não tremi. Visivo só vi Diadorim – resumo de aspecto e esboço dele para movimentos: as mãos e os olhos, de resguarda. Como em relance corri cálculo, de quantos tiros eu tinha para à queima-bucha dar… De devagar, os companheiros, os outros, não se buliram, tanto esperavam; … Quem sabe, será se praziam no poder ver nós dois, Diadorim comigo – que antes como irmãos, até ali – a gente se estraçalhar nas facas? Torci vontade de matar alguém, para pacificar minha aflição; alguém, algum – Diadorim não – digo.[32]

O conflito é encerrado por Zé Bebelo que se propõe a assumir provisoriamente a chefia do bando. Mas essa aflição que Riobaldo tenta aplacar com sangue alheio – desde que não fosse o de Diadorim, que é então o seu causador – tem para René Girard um nome técnico: double bind, precisamente a mediação recíproca e duplamente vinculante, onde o modelo e o imitador já não se reconhecem como tais, e entram numa incontida emulação, tornando-se duplos.

A esquiva rivalidade com que se entreolharam no primeiro encontro da juventude ressurgirá agora em razão da significância que reciprocamente querem se impor. Riobaldo parece estar ciente disso, ou quase: Diadorim, que era o Menino, que era ao Reinaldo. E eu. Eu?…[33] Adiante, noutra comparação com Diadorim, ele próprio responde: “Eu ainda não era ainda[34]. A necessidade cada vez mais urgente de se diferenciar, de se afirmar em detrimento um do outro resulta em condutas sempre mais idênticas. Por isso Diadorim, apesar da força de seu caráter, também não conseguia escapar dos liames da mímesis, e se deixava afetar pelos anseios de Riobaldo: enciumava-se quando ele se entretinha com as façanhas de outro jagunço; e, não raro, quando se sentia diminuído, tratava-o com desdém ou indiferença. Riobaldo notava, mas, em razão da dupla mediação, condescendia: Ser dono definitivo de mim, era o que eu queira, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava[35].

Ao dizer “parece que não deixava”, Riobaldo talvez esteja reconhecendo que a culpa não era só de Diadorim, que aquele jogo de atração e retração, de admiração e de raiva era motivado por ambos. O chefe Zé Bebelo, que era um jagunço sutil e “palavroso”, já lhe havia explicado a dinâmica dessa dupla mediação:        

(…) a gente carece de fingir as vezes que raiva tem, mas rai va mesma nunca se deve tolerar de ter. Porque quando se curte raiva de alguém é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania…[36] 

Mas o simples conhecimento dessa dinâmica não é bastante para dela nos libertar. Em certos casos, tal consciência incide como um agravante, podendo conduzir ao desespero. Riobaldo quer reaver sua autonomia, ser dono de si, mas não quer se libertar do fascínio por Diadorim, haja visto que isso só será possível quando a ele puder se igualar, ou superá-lo. Mas como?

Aflito por esse impasse mimético, ele cogita em toda sorte de resoluções violentas. Primeiro pensa em suicídio, recolhe-se a um morro para dar um tiro na cabeça; porém desiste e atira contra o mato e os micos que o observavam[37]. Mas a necessidade de colmatar com sangue aquele desejo, fonte de toda frustração e ódio, persistia. E já que não podia ser o sangue do próprio Diadorim, haveria de ser o de uma vítima substitutiva, um bode expiatório!… Eis a ideia redentora que ele tanto buscava.

E quem melhor se prestaria a este fim senão os dois maiores inimigos de Diadorim: Hermógenes e Ricardão. Esses homens tinham atuado como acusadores de Zé Bebelo num improvisado tribunal da jagunçagem, no qual este fora julgado por sua colaboração com as forças do governo. Na ocasião, Joca Ramiro, atuando como juiz, acatou o veredicto de um júri composto por outros chefes, que em vez de consentir numa execução cruenta, como desejavam os acusadores, anistiaram Zé Bebelo, consentindo em seu exílio no sertão de Goiás. Hermógenes e Ricardão revoltaram-se com tamanha complacência e, posteriormente, mataram o grande chefe Joca Ramiro.

Desde então o único propósito da vida de Diadorim era vingar o sangue do pai, e por isso vagava pelo sertão com o bando de Medeiro Vaz. Ao tomar para si essa vingança, Riobaldo não só assinalava suas vítimas expiatórias, mas, sobremaneira, apropriava-se do maior desejo de Diadorim, obtendo assim o meio mais eficaz para emulá-lo.

Contudo, a empreitada não seria fácil. Os inimigos de Diadorim escondiam-se nos confins do Liso do Sussuarão, um areal vasto, ermo e inóspito que eles conheciam como ninguém, mantendo-se intocáveis. Acresce que Hermógenes tinha fama de pactário, aliado do Demo, que os protegia. Esses empecilhos, porém, em vez de tolher, excitavam os intentos de Riobaldo, que, em tais circunstâncias, figuravam-lhe mais meritórios. Com efeito, quanto mais ruminava aquele plano, ponderando sobre as vantagens sobrenaturais de seu adversário, mais ele ia se entregando ao desejo, nitidamente mimético, de também compactuar com o Diabo. E assim, de um jeito desigual do comum ele diz que sua vida granjearia outros fortes significados[38].

Mas que significado haveria num pacto com o Diabo? Esta indagação suscitaria reflexões profundas, que iam desde a possibilidade e eficácia deste tipo de consórcio até à realidade ou natureza do Mal. Desde quando concebeu essa ideia, Riobaldo abismou-se em sutilezas que o fizeram desconfiar de que o Diabo fosse tão somente a personificação de uma falsa transcendência: E o demo existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem ente próprio – feito remanchas na água.[39] Essa intuição cresceu, fazendo-o entrever na figura do Diabo a exteriorização de algo que nos é muito íntimo: 

O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, avulso, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo.[40]

Convém aqui destacar que esta afirmação de Riobaldo encontra eco nas reflexões de Girard acerca do mesmo tema: Os demônios existem à imagem do grupo humano, eles são a ‘imago’ desse grupo porque são sua ‘imitatio’[41]. E em ambos ressoam ainda uma concepção profunda da teologia cristã: o caráter parasitário e antipessoal do diabo – algo que os teólogos escolásticos definiam como um “ente de razão”, ou mais especificamente uma intelligibilia intelligentia. René Girard, com efeito, sugere que reconhecer “em Satanás a atividade do mimetismo conflitual permite que, pela primeira vez, não se minimize o príncipe deste mundo sem o dotar de um ser pessoal que a teologia tradicional, com razão, lhe recusa”[42]. Então afirmar, como Riobaldo, que o diabo vige dentro do homem é, em consonância com Girard:

(…) reconhecer uma força operacional entre os homens de desejo e de ódio, de inveja e de ciúme, muito mais insidiosa e retorcida em seus efeitos, mais paradoxal e repentina em suas mutações e metamorfoses, mais complexa em suas consequências e mais simples em seu princípio…[43]

Riobaldo parece ainda completar esse raciocínio ao dizer que o que não se existe de si ver, tem força completa demais, em certas ocasiões[44]. Afirmação que se aplica tanto ao diabo quanto ao desejo, visto que a força de ambos emana, precisamente, da possibilidade de prover uma aparência daquilo que nos falta em essência.                    

Riobaldo também parece estar consciente disso, pois desde o momento em que decide fechar o trato, fazer o pacto[45], até o momento do ritual – cujo local é um matagal agreste, denominado de Veredas Mortas – ele afunda cada vez mais na angústia de quem sabe que o efeito daquele sortilégio será apenas a aquisição de uma aparência, de uma imagem saltada de seus anseios – ou seja, de um duplo. Isso pode esclarecer porque, lá chegando, ele novamente pensa em suicídio:

Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua escondida… Minha opinião não era de ferro? Eu podia cortar um cipó e me enforcar pelo pescoço, morrendo pendurado daqueles galhos.[46]

Pode esclarecer ainda o confuso solilóquio que, antes da invocação ao Diabo, ele entabula, dizendo:

Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia… E o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo![47]  

O motivo manifesto do pacto não é outro senão o motivo de toda a sua vida, de todos os seus (re)sentimentos, de todo o enredo: – ficar sendo! Portanto, mesmo hesitante, ele prossegue e, aos brados, invoca três vezes o Diabo. Mas nada acontece, ou quase. Na primeira invocação malograda, Riobaldo desune a palavra nonada que pontilha o romance desde o início, dizendo para si: Não. Nada[48]. Na segunda invocação, igualmente improfícua, ele fica a ouvir o silêncio ao redor. Por fim, na última tentativa, o jagunço decide apelar à força maléfica do desejo que intimamente o infernizava, e grita: Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus infernos[49]. Apesar dessa invocação contundente, não ocorre nenhuma aparição ou resposta, e Riobaldo certifica-se que o diabo não existe… é um falso imaginado[50]. Mas exatamente por isso, e não apesar disso, ele sente que foi ouvido, conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeiam[51]… aquela falsa transcendência adquiriu suas palavras todas e fechou o arrocho do assunto[52], firmando o pacto como a verbalização dessa malignidade íntima que se atualiza no som das palavras que a exprimem. De imediato, o calor sufocante daquela vereda sertaneja arrefece drasticamente; Riobaldo assombra-se com o friume repentino que o assalta, e é quando lhe sobrevém uma catarse: recebe de volta um adêjo, um gozo de agarro… umas tranquilidades – de pancada[53]. Lembra-se de um rio que viesse adentro a casa de seu pai (só que ele nunca conhecera o pai – Diadorim sim!); por fim, ele sucumbe àquela aragem do sagrado e confessa-se rendido de avesso, de seus íntimos esvaziado[54] – duas sentenças que exprimem muito bem a exteriorização de um duplo.

Assumir-se como um duplo foi o resultado do pacto. Dali para adiante, Riobaldo se entregaria ao desejo de querer só tudo, e assim ficar sendo uma aparência de tudo, que inflaria seu ser: Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrado naquele momento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava[55]. No decorrer da narrativa, constataremos que ele já não tinha um modelo específico, podia ser Diadorim, Hermógenes, a turba dos jagunços, Satã e até mesmo o Sertão. Isso, aliás, fica expresso na aliteração que ele percebia nessas palavras: e, então, eu ia denunciar o nome, dar a cita: …Satanão! Sujo!… e dele disse somente – S… – Ser-tão… Sertão[56].

A personalidade de Riobaldo cresce bizarramente, torna-se falante, cruel, capaz de arregimentar e comandar bandos. Em sua presença até os cavalos relinchavam inquietos, e eles os calava gritando: – Barzabú! Aquieta, cambada!…[57] Daí a pouco, ele destituiria Zé Bebelo, fazendo-se aclamar como o grande chefe. E a alcunha de Tatarana (o de mira mestra) seria substituída pela de Urutú-branco, a cobra mais traiçoeira e peçonhenta dos sertões.

No entanto, havia quem não se impressionasse com aquela personalidade nova e temível, podendo vislumbrar o fenômeno mimético que a animava. Tal é o caso de seo Ornelas, jagunço aposentado, dono da fazenda Januária, onde Riobaldo e seu bando se hospedaram logo depois do pacto. Ali, o Urutu-branco iria se vexar na companhia de um velho de sentido finíssimo, capaz de auscultar aparências e desvendá-las. Com efeito, o pouso que a todos parecera acolhedor, fora um desassossego para Riobaldo que, malgrado os gestos corteses e deferências de seo Ornelas, a todo tempo sentiu-se atingido pelos causos que ele narrava e cujo mote recorrente era o aviltante desejo de arremedar o feitio de outra pessoa. Era como se seo Ornelas quisesse lhe exprobar a condição de reles imitador, de um êmulo: Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém…[58]. Esta sentença velada, mas certeira, ressoaria na consciência de Riobaldo como uma denúncia do duplo que ele havia se tornado. Por isso, a despeito das gentilezas que lhe foram dispensadas, Riobaldo deixou aquele sítio contrariado, murmurando consigo: … a conversa com aquele seo Ornelas tinha me rebaixado.[59]

E tal como seo Ornelas, Diadorim também havia percebido o aparecimento de seu duplo e, enredando-se outra vez no double bind mimético, decidiu assumir-se como rival-obstáculo. Riobaldo, por sua vez, pressentindo a rivalidade, deixou que o sentimento que até ali lhes estreitara a amizade esmorecesse: Diadorim, eu gostava dele? Tem muitas épocas de amor. Amor em perto, às vezes sossega, em muitos adiamentos[60]. Para si, o despeito do antigo modelo era evidente: Desde que eu era o chefe, assim eu via Diadorim de mim apartado[61]. Depressa a assimetria das reciprocidades se acirraria: …naquela hora as ideias nossas estavam descompassadas surdas, um do outro a gente se desregulava[62]. E a desconfiança mútua chegaria ao ápice com a descoberta de que Diadorim mantinha uma correspondência secreta. Riobaldo encurralou o rival, exigindo saber quem era o destinatário de suas cartas, Diadorim então revela que escrevera à Otacília, pedindo que rezasse por ele. Riobaldo fica tão surpreso quanto melindrado: …naquela hora Diadorim e eu desapartávamos um do outro – feito numa água só, um torrãozinho de sal e um torrãozinho de açúcar[63]. O antagonismo visível nestas afirmações instigaria a emulação, precipitando-os juntos – embora mantendo as distâncias – para o confronto decisivo com os inimigos.

Por duas vezes eles cruzam o Liso do Sussuarão chegando à fronteira com a Bahia; na primeira incursão, não encontram Hermógenes, mas invadem sua fazenda, sequestram-lhe a mulher e, no caminho de volta, matam Ricardão com parte de seu bando. Na segunda incursão, Diadorim parte na frente, aproveitando que Riobaldo teve de se ater com a visita imprevista de sua noiva Otacília (que na verdade tinha sido atraída pelo tom sombrio das cartas de Diadorim). Hermógenes é então encurralado num sítio conhecido como Paredão – lugar onde o sertão acaba. Riobaldo os alcança quando o confronto já estava acontecendo e, para não perder a oportunidade de cumprir a vingança e firmar-se como herói da jagunçagem, cuida em reassumir o comando do grupo. Diadorim, porém, valendo-se daquela cobiça e atuando novamente como mediador, persuade-o a tomar posição estratégica no alto de um sobrado:

– Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, que é o lugar de chefe. Com teu dever, pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança… Constante que, aqui, o negócio está garantido… – ele disse, mansinho, de me persuadir[64].

Assim Diadorim desvia-o da meta, que volta a ser exclusivamente sua. Riobaldo só iria perceber este ardil tarde demais, quando do alto de sua posição, longe e isolado, assistiria o duelo de facas travado por suas duas obsessões, Hermógenes e Diadorim… o diabo na rua, no meio do redemunho[65] e que resultaria na morte de ambos. Mas antes desse desfecho, a visão daquele duelo, e mais ainda a impossibilidade de qualquer participação ou intervenção, era por si só uma frustração insuportável para Riobaldo: ele tenta gritar e não consegue, tem ânsias e tonteia dizendo: desmim de mim mesmo[66]. Essa expressão talvez aludisse ao processo de desagregação do duplo satânico, que se iniciava com o fim iminente daqueles que o suscitavam. Ele então repete: o diabo na rua, no meio do redemunho. Dali em diante, Riobaldo narraria as consequências daquele duelo num tom ambíguo, como uma perda que liberta, um sofrimento que conforta ou uma aflição que induz ao sossego. Não à toa, quando descobre que Diadorim era uma mulher, ele diz que a dor não pode mais do que a surpresa[67].

Após beijar os olhos, a face, a boca de Diadorim, exclamando: – “Meu amor!…”, ele apressa-se em providenciar o sepultamento, como se fosse o seu próprio, ou melhor, o de seu duplo. Com efeito, depois de enterrá-la e sair do cemitério, ele diz: Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba…, e mais adiante: Aí ultimei o jagunço Riobaldo[68]. E para que não se perpetuasse o ciclo de vinganças desencadeado pelas reciprocidades miméticas, Riobaldo perdoa e liberta a mulher de Hermógenes, declarando enfim: Desapoderei.

Mas o fim daquela estória, como o próprio Riobaldo diz, não seria o termo real de sua vida[69]. Ele ainda sentia-se na obrigação de retornar ao lugar do pacto para, de algum modo, anular a possessão. Porém, ele jamais encontraria o caminho de volta para as Veredas Mortas; indo então cair doente, quase morto, num sítio conhecido por Veredas Altas, onde seria tratado, purgado, até recuperar a saúde e ser “espertado” pela alegria num pressentimento de amor: Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília. Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo[70].

Depois da travessia pelo inferno enlouquecedor do desejo mimético, que é identificado com o próprio sertão, ou Ser-tão, Riobaldo pressente na singela Otacília a única cura possível: qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura[71]. E essa cura é o que René Girard denomina de coversão romanesca – uma árdua, mas vitoriosa renúncia às possessões do desejo[72].

Assim, antes de casar, Riobaldo decide novamente encarar, sem as miragens do desejo, a verdadeira pessoa de Diadorim. Então viaja à sua terra natal, Itacambira, em cuja igreja matriz encontra um batistério, datado de 1800 e tantos, onde se lê: De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor[73]  Esse complemento, que não estava escrito no documento, mas no coração quase desapoderado de Riobaldo, atesta que o processo de conversão não seria imediato, mas, certamente, irreversível. Por conseguinte, ele nos pede: reze o senhor por essa minha alma… o existir da alma é a reza. Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura[74].           

Claudio Magri, em parte, tinha razão quando disse que a paixão não se radica num sexo, mas numa pessoa. Riobaldo também o diz: Reinaldo era o Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu[75]. Contudo, esse sentimento passional quase nunca é amor, mas sim o desejo, irreprimível e alienante, que inspira mentiras românticas, falseando a dinâmica das relações humanas. Neste sentido, ao expor tal sentimento como uma possessão do desejo, causa de insidiosas rivalidades – que jamais se explicariam em termos de afetividade ou erotismo – Riobaldo nos permite achar a verdade humana que, segundo Girard, compõe todas as obras-primas romanescas. 

REFERÊNCIAS

GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio. Tradução: Vasco Farinha. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

_____________. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. Tradução: Ivo Storniolo. São Paulo: É-Realizações, 2009.

_____________. O Bode Expiatório. Tradução: Lilia Ledon da Silva. São Paulo: Paulus, 2004.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008.


[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008. p.600.

[2] MAGRIS, Claudio. O homem de lugar nenhum. São Paulo: Folha de S. Paulo, 7 de abril de 2002. Entrevista concedida a Betty Milan.

[3] ROSA, João Guimarães. Opus cit. p. 102

[4] Ibid. p. 103.

[5] Ibid. p. 104.

[6] Ibid. p. 107.

[7] Ibid. p. 107.

[8]  Ibid. p. 109.

[9]  Ibid. p. 44-45.

[10] Ibid. p 45.

[11] Ibid. p 51.

[12] Ibid. p. 216.

[13] Ibid. p. 84.

[14] Ibid. p. 461.

[15] Ibid. p. 138.

[16] Ibid. p. 139.

[17] Ibid. p. 37.

[18] Ibid. p. 180.

[19] Ibid. p. 248.

[20] Ibid. p. 144.

[21] Ibid. p. 144.

[22] Ibid. p. 144.

[23] Ibid. p. 144.

[24] Ibid. p. 146.

[25] Ibid. p. 36.

[26] Ibid. p 176.

[27] Ibid. p. 33.

[28] Ibid. p. 140.

[29] Ibid. p. 24.

[30] Ibid. p. 82.

[31] Ibid. p. 82.

[32] Ibid. p. 82.

[33] Ibid. p. 451.

[34] Ibid. p. 391.

[35] Ibid. p. 38.

[36] Ibid. p. 237.

[37] Ibid. p. 292.

[38] Ibid. p. 488.

[39] Ibid. p. 483.

[40] Ibid. p. 10.

[41] GIRARD, René. O Bode Expiatório. Tradução: .São Paulo: Paulus, 2004. p. 236.

[42] ____________. Eu via Satanás cair do céu como um raio. Tradução Vasco Farinha. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 67.

[43] ____________.O Bode Expiatório. Tradução: Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 254.

[44] ROSA, João Guimarães. Opus cit. p. 490.

[45] Ibid. p. 410.

[46] Ibid. p. 419.

[47] Ibid. p. 420.

[48] Ibid. p. 422.

[49] Ibid. p. 422.

[50] Ibid. p. 422.

[51] Ibid. p. 422.

[52] Ibid. p. 422.

[53] Ibid. p. 422.

[54] Ibid. p. 423.

[55] Ibid. p. 591.

[56] Ibid. p. 591.

[57] Ibid. p. 429.

[58] Ibid. p. 460.

[59] Ibid. p. 462.

[60] Ibid. p. 466.

[61] Ibid. p. 464.

[62] Ibid. p. 533.

[63] Ibid. p. 566.

[64] Ibid. p. 583.

[65] Ibid. pp. 594-595.

[66] Ibid. p. 594.

[67] Ibid. p. 599.

[68] Ibid. p. 600.

[69] Ibid. p. 599.

[70] Ibid. p. 603.

[71] Ibid. p. 411.

[72] GIRARD, René. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. Tradução: Lilia L. da Silva. São Paulo: É-Realizações, 2009. p. 334.

[73] ROSA, João Guimarães. Opus cit. pp. 604-605.

[74] Ibid. p. 605.

[75] Ibid. p. 411.