As Flores do Mal de Gotham City

-por Lucas Petry Bender

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Pareceu-me prazeroso, e tanto mais agradável quanto mais difícil era a tarefa, extrair do Mal a beleza” (grifo do poeta), rascunhou Baudelaire num projeto de prefácio às Flores do Mal1Todas as citações são de As flores do mal (Charles Baudelaire), trad. Júlio Castañon Guimarães, ed. Penguin Classics Companhia das Letras, 2019.. “Alguns me disseram que estas poesias podiam fazer mal. Não fiquei satisfeito com isso. Outros, boas almas, que elas podiam fazer bem; e isso não me afligiu. O temor de uns e a esperança de outros espantaram-me igualmente e só serviram para me provar uma vez mais que este século desaprendeu todas as noções clássicas relativas à literatura.”  2Pág. 553.

Na ironia mordaz do poeta contra as tentativas de justificar – para o bem ou para o mal – o prazer gratuito do senso estético, assim como na demonstração de que também na aparente feiura pode ocultar-se e revelar-se a beleza, o espírito moderno reconheceu a expressão de certas inclinações subterrâneas que, embora constituíssem desde sempre parte do coração humano, ainda não haviam recebido tão ampla e apropriada verve poética.

É nessa perspectiva que mais nos impressionam filmes como Coringa (“Joker”, 2019, dirigido por Todd Phillips) e Batman (“The Batman”, 2022, direção de Matt Reeves), o primeiro com seu lirismo sanguinário, o segundo com seu fascínio pelas trevas, ambos protagonizados por anjos decaídos e vingativos, como flores que desabrocham na escuridão e na sujeira, nutridos pelas enfermidades de Gotham City. É sobretudo por mérito da direção de arte, da cenografia e da trilha sonora que a obscura beleza do submundo de Gotham nos conquista,

Quando, como uma tampa, o céu pesado baixa
Sobre o espírito, presa de tédios, gemente,
E cingindo o horizonte em sua linha baixa,
Dá-nos um dia que é noite, sombriamente; 3 Poema LXXVIII, pág. 239.

CORINGA

A iluminação intermitente no metrô, o estampido terrível e inesperado dos tiros, o refúgio no banheiro público, palco sórdido e solitário de uma dança suavemente eufórica, de quem pela primeira vez sente-se adaptado ao mundo como ele é – toda a sequência das primeiras vítimas de Coringa, da descoberta da sua vocação, da libertação do seu eu-lírico, é de uma beleza atrozmente fascinante, inesquecível sobretudo quando vivenciada na sala de cinema. 

Ao longo de toda a trilha sonora composta para o filme, as cordas parecem mais friccionadas do que tangidas, como se estivessem sendo levadas à exaustão, à beira de um colapso surdo. Para a grande cena lírica no banheiro, a música de Hildur Guðnadóttir se desenvolve a partir de um ruído do violoncelo, do qual emerge uma melodia ínfima, tímida, insuspeitada, a par com a espécie de balé fluido e hesitante do desabrochar do vilão, como um tai chi chuan que libera apenas a parcela necessária de uma enorme força interior concentrada (plasmada pelo talento impressionante de Joaquin Phoenix).

Se a infelicidade de Arthur Fleck provinha essencialmente da sua inadaptação ao mundo, a cena no banheiro representa a alegria do artista que finalmente encontra vazão para a expressão dos sentidos e da imaginação, ainda que, nesse caso, o perturbado artista os confunda, delirante e alucinado. O misto de empatia e repugnância que sentimos por Travis Bickle (Taxi Driver) diante do seu reflexo, a dialogar com sua própria alienação enquanto prepara-se para sua obra sanguinária, ressoa com intensidade nas diversas cenas de Coringa em frente ao espelho, inclusive nessa dança – sem falar no jogo de duplos e de espelhamentos também com o personagem de Robert de Niro de O Rei da Comédia.

Performático e operístico (e quixotesco, como demonstra o ensaio de Pedro de Almendra), Coringa é um filme sobre um artista em busca do seu palco e do seu público, à procura do eu-lírico que se oculta sob a persona pública e cotidiana – e do assombroso poder ambivalente da força criadora e destrutiva que jaz na imaginação humana.

BATMAN

Quando a terra transmuda-se em masmorra fria,
Onde a Esperança, tal morcego, se arremessa,
Batendo nas paredes com a asa fugidia
E dando contra os tetos podres com a cabeça; 4Poema LXXVIII, pág. 239.

Dilemas semelhantes ao de Coringa perturbam Batman, o mais ambíguo e sombrio dos super-heróis – e novamente é a qualidade dos recursos visuais e sonoros que mais se destaca. Numa ambientação que mistura aspectos futurísticos – como neons e dispositivos tecnológicos – a elementos arquitetônicos góticos, surge um Bruce Wayne (Robert Pattinson) ouvinte de Nirvana (Something in the way é usada de modo diegético em uma cena), que, longe de ser o playboy a que nos acostumamos, é ainda mais atormentado e solitário do que a sua persona secreta e vingativa. Bruce é que se mostra a aberração, com seu spleen arredio e melancólico, ao passo que Batman sai das sombras para circular entre os policiais e a população, conquista seu espaço e desperta a paixão de Selina, a Mulher-Gato (Zoë Kravitz).

Seja pela ambientação noir imersiva, seja pela caracterização da solidão do protagonista na sua busca por decifrar as pistas do mistério, o Batman de Matt Reeves bebe na fonte do detetive hard-boiled; nos seus melhores momentos, lembra Blade Runner, por exemplo, embora se afaste do cult dos anos 1980 pelo triunfalismo heroico e pelos excessos nas cenas de ação, que ainda o limitam ao gênero de “filme de super-herói”. Pois parte substancial da grandeza de Blade Runner consiste no genuíno spleen de que cada sucesso de Deckard (Harrison Ford) é seguido por uma aguda consciência da inutilidade de toda ação e de todo esforço, já que o que realmente importa não tem solução: somos estrangeiros nesse mundo em que a finitude e a eternidade disputam nossos sonhos e pesadelos, em que nossa consciência olha para si própria com o vago e inexplicável senso de que não vivemos, mas de que somos vividos, de que estamos de algum modo apartados de nós mesmos e da assim chamada realidade.

Batman fica a um passo de se deparar com esses enigmas – muito mais ricos do que quaisquer provocações propostas pelo Charada (Paul Dano) -, a um passo de tornar um mascarado de capa e armadura em algo verdadeiramente íntimo e comovente, como aqueles androides do filme de Ridley Scott. E assim como Deckard e Rachael (Sean Young) buscavam um no outro alguma saída para esse labirinto existencial, o que mais nos interessa saber em Batman é se o romance entre o herói e a Mulher-Gato vai se concretizar, e se vai evoluir para a relação entre Bruce e Selina, esses exilados de si mesmos.

Por mais bem sucedido visualmente que seja o filme, é na excelente trilha sonora original de Michael Giacchino que tudo se mostra mais fascinante. O tema sonoro principal é duro e seco, feito de quatro notas cuja sucessão é ostensivamente reiterada, como um funesto augúrio da presença do homem-morcego. Uma alternativa esperançosa é introduzida pelo tema sonhador de Bruce Wayne. Subtemas, respostas e variações aparecem a cada aproximação ou tensão com Selina; as quatro notas vão ganhando diferentes instrumentações, timbres e velocidades, desbloqueando novas perspectivas sonoras à medida que evolui a vida sentimental e emocional do protagonista, até surgir por inteiro o tema insinuante, agudo e sugestivo que tão bem caracteriza a Mulher-Gato.

Uma escuta ativa da trilha original – disponível em streamings – se mostra tão ou mais interessante quanto acompanhar o filme. São duas horas de música em que, descontadas as várias faixas meramente ilustrativas das imagens, além das que dialogam com a melodia da Ave Maria para caracterizar o vilão Charada, destacam-se especialmente as faixas “The Batman”, “Catwoman” e “Sonata in Darkness”; nesta última, inteiramente executada ao piano, a estruturação entre os temas se mostra mais evidente, explorando toda a extensão do teclado ao longo dos seus doze minutos: iniciando com o tema sonhador, passando pela agourenta sequência das quatro notas, que por sua vez engendra o esguio tema da Mulher-Gato, ora se aproximando, ora se afastando, atraindo-se reciprocamente ora em direção aos graves da mão esquerda, ora aos agudos da mão direita.

Na tela, esse jogo ganha sua melhor correspondência visual na sublime sequência final, sem diálogos, com o balé das motos que se atraem e se distanciam como os temas musicais, até separarem-se em definitivo em direções opostas. Um último olhar pelo espelho retrovisor – quem sabe se de arrependimento ou de uma derradeira esperança? – sugere que a música de Batman vai continuar, com novos e desconhecidos temas – inspiração que ilumina mesmo as trevas mais profundas do coração humano.

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Se a solidão dos protagonistas desses filmes provoca tamanho assombro, se o lado obscuro das suas forças nos causa certo fascínio perverso (não soa um tanto ridículo o Batman redimido atuando como um voluntário da Defesa Civil numa enchente?), se o triunfo estético das flores do mal provoca tanto desconcerto, é porque se faz verdadeira a voz do poeta que segue maldizendo a bênção (e bendizendo a maldição) de um mundo tão feio quanto glorioso, tão hostil quanto magnífico. 

Como reis de um país chuvoso chamado Gotham, Coringa e Batman dançam conforme a música, seja no refúgio lírico do isolamento, seja no dueto romântico de atração/separação. Entre heróis e vilões, o temor de uns e a esperança de outros só nos servem para provar uma vez mais que é dentro de cada um de nós que habita a ambiguidade,

Tu conheces, leitor, esse monstro incruento, /
Leitor irmão – hipócrita – meu semelhante!  5 Ao Leitor, pág. 29.

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“Batman and Joker” – por Bill Sienkiewicz