Com um olho espremido – lendo Flannery O’Connor (por Pedro de Almendra)

“Eu posso, com um olho espremido, ver tudo como bênção.” – Flannery O’Connor

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Li certa vez uma nota de rodapé na qual era dito que Franz Kafka, enquanto relia em voz alta o primeiro capítulo de O Processo, não conseguia manter a compostura e sempre se deixava levar pelo riso, soltando então extravagantes gargalhadas que deixavam seus amigos constrangidos e atônitos. Para nós, instruídos leitores deste século de luzes, é dificílimo imaginar que um livro revestido com toda a glória de clássico literário tenha sido escrito por seu autor de maneira tão despretensiosa e com intuito mais cômico do que sério. Kafka foi publicado postumamente, contra sua vontade expressa, e, de reimpressão em reimpressão, de tradução em tradução, densas camadas de querelas literárias, políticas e sociais encobriram suas obras, abafando aquela escandalosa gargalhada emitida na primeva leitura de seu mais célebre romance. Recordo-me das turmas de literatura do colégio: um professor puxa A Metamorfose para ler e um aluno ao fundo começa a rir por achar engraçado o fato de que um homem tenha, de repente, acordado como uma barata. O professor o corrige prontamente. Aponta toda uma série de obscuras camadas, sentidos ocultos e esotéricas referências aos clássicos da literatura, dizendo ao aluno que em verdade a barata é uma referência à situação do operariado. Quem sabe se, de alguma maneira kafkiana de reescrever, a realidade esse aluno não pudesse ser o próprio Kafka a rir da absurdidade inerente à vida? Penso que ao professor faltava senso de humor.

Este não é um ensaio sobre Kafka, mas o causo reflete um fato conhecido da biografia de Mary Flannery O’Connor: também ela, assim como o grande autor alemão, dizia-se incapaz de ler qualquer uma de suas histórias – à exceção de A Good Man is Hard to Find – sem sucumbir a uma exagerada crise de risos.1 Ante a amostra de contos presente neste volume, é natural que o leitor, ao saber disso, presuma que a autora risse por sadismo ou pura crueldade. De fato as histórias são carregadas de humor e ironia, mas é a tragédia, a morte horrorosa ao fim do conto, o que à primeira leitura prende nossa atenção – de tal forma que sufoca nosso riso incipiente com a amargura do luto. Somos pegos de surpresa logo no primeiro conto, e ficamos em estado de alerta pelo restante da leitura, já com a terrível impressão de que alguma coisa vai acontecer àquele personagem do qual aprendemos a debochar. “Na minha própria experiência”, conta Flannery O’Connor, 2 “tudo o que escrevi é mais terrível do que engraçado, ou apenas engraçado porque terrível, ou terrível porque engraçado.”

Na sua extensa obra, que vai desde romances consagrados, como Sangue Sábio(“Wise Blood”, 1952)e Os Violentos o Arrebatam(“The Violent Bear it Away”, 1960), até cartas e ensaios críticos, há essa desconcertante ambiguidade entre o cômico e o trágico. Contudo, na presente coletânea de contos, Tudo o Que Sobe Deve Convergir (“Everything That Rises Must Converge”), o contraste é levado às últimas consequências, para ambos os lados. Flannery O’Connor faleceu em 3 de agosto de 1964, e o livro que o leitor tem em mãos foi publicado postumamente, em 1965. No início de 1964, Flannery precisou remover, na região do abdome, um tumor benigno que reativou o lupus de que sofria desde a infância e prejudicou seus rins de modo irreparável. Enquanto concluía as histórias da coletânea, estava à cabeceira da morte e sabia que lhe restava pouco tempo para terminar a obra. Os nove contos de Tudo o Que Sobe Deve Convergir, conquanto nem todos tenham sido escritos no mesmo período, possuem em comum a presença da morte e consistem, a um só tempo, no trabalho mais trágico e hilário da escritora, para quem as duas coisas não são lá tão diferentes assim.

O título da coletânea é uma citação de Teilhard de Chardin, um polêmico teólogo francês do século XX cujas obras Flannery O’Connor lera assiduamente nos últimos anos de sua vida. Chardin ficou famoso por tentar sistematizar a teologia e a ciência evolutiva numa teoria comum, que concebe a existência de um “ponto ômega” no fim dos tempos, em cujo entorno toda a criação alcançaria um estado de convergência. No fim das contas, o autor acabou detestado tanto por cientistas como pela igreja católica (que o proibiu de lecionar e publicar suas obras). Flannery tomou a frase para si, concedendo a ela um significado particular e, como é de se esperar, irônico. Num primeiro momento, o título parece não possuir relação com o ritmo das narrativas, uma vez que nas histórias reunidas no volume não parece haver nenhum tipo de subida, muito menos alguma convergência, mas, antes, apenas pura e simples tragédia concebida por uma moralista sádica. Para o realismo cru quase niilista de Flannery O’Connor, o custo de toda ascensão é a cruz – e não há subida que primeiro não desça para o fundo dos infernos.

A violência para Flannery O’Connor não é nem uma punição às atitudes condenáveis dos personagens, nem um “fim em si mesmo”, que teria como intuito provocar um choque no leitor. De acordo com a sua forma bastante particular de compreender o Cristianismo, a alma humana só pode subir ao alto após ser violentamente empurrada para baixo. Segundo a autora, num ensaio intitulado On Her Work:

Para o escritor sério, a violência jamais se justifica por si mesma e sempre aponta a uma outra coisa: é a situação extrema o que melhor revela a essência dos seres humanos. Mais do que a mera cotidianidade, importa saber o que somos essencialmente. Essa mencionada violência se trata de uma força que pode ser usada para o bem ou para o mal, e entre os destinos a que ela pode conduzir, está o reino dos céus. (Flannery O’Connor, On Her Work) 3

Usar da violência para guiar os personagens ao reino dos céus é uma boa maneira de sintetizar a maior parte das narrativas presentes nesta coletânea. E o intuito deste breve ensaio é elucidar, e não desvendar, o ritmo das narrativas aqui contidas, à luz da frase sob a qual todas as histórias, em sua caleidoscópica diversidade, se aglutinam: Tudo o Que Sobe Deve Convergir. Para tanto, é importante que partamos do conto homônimo, e vejamos como ele e as outras narrativas alcançam um ponto de convergência.

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O primeiro conto narra a história de Julian, um intelectual frustrado que a contragosto leva a mãe para aulas de ginástica no centro da cidade. Os dois personagens centrais são comuns às histórias de Flannery O’Connor, e, de certa forma, reaparecem nos contos seguintes, com outros nomes e outras fisionomias: Julian é um intelectual melindroso como o Wesley de Greenleaf, o Asbury, de Calafrio Incessante, e o Thomas, de Os Confortos do Lar; a mãe, por outro lado, é uma típica velha racista do Sul, a quem a recente modernização dos Estados Unidos custara uma brusca mudança na condição social. Assemelha-se, por exemplo, à Sra. May, de Greenleaf, à Sra. Fox, de Calafrio Incessante, à Sra. Turpin de Revelação, e ao velho de O Dia do Juízo Final; personagens que representam uma antiga face dos Estados Unidos, um Sul cada vez mais ofuscado pela ascensão do Norte modernizado – seus filhos.

Julian é quase que repetido no Asbury de Calafrio Incessante. Ambos são intelectuais que não escrevem e que, por toda a vida, conseguiram convencer apenas as próprias mães acerca de seu incompreendido talento. São personagens cujos dons não se materializam em obras, cujos discursos jamais escapam às fronteiras da própria mente – o castelo dentro do qual se escondem do mundo e da própria frustração. Não escrevem porque não querem escrever, e não querem escrever para não precisar aceitar que não têm, afinal, sobre o que falar, muito menos quem os queira escutar. A mãe de Asbury acreditava que o filho estivesse trabalhando na escrita de um longo romance destinado a ser um best-seller como E o Vento Levou. Mas a verdade é que Asbury queimara toda a sua vasta obra de ideias e rascunhos para dedicar-se a uma carta ressentida e romântica na qual explicava à mãe por que a considerava a principal razão de seu fracasso. Julian, por sua vez, enquanto não começa a escrever, vende máquinas de escrever. E sua mãe está certa de que a experiência acumulada com o comércio de máquinas de escrever ajudará na sua promissora carreira de escritor.

Tudo na narrativa, exceto o título, nos convida a um movimento de decadência. A vizinhança deixa de ser nobre, a mansão do seu falecido avô cai aos pedaços junto com a condição social de sua família (o sobrenome da avó era “Godhigh”, uma clara ironia ao título do conto, indicando a queda por que passou a família da Sra. Chestny), e o ressentimento de Julian por toda a narrativa não faz senão intensificar-se até o ponto de ele desejar ver a mãe adoentada numa cama (apenas para “dar-lhe uma lição”).Tudo na história cai por água abaixo, vai de mal a pior. O ônibus, talvez o elemento narrativo que melhor espelhe o título do conto, desce para o centro, para downtown, onde uma “maré de trevas” carregará Julian para o “mundo da mágoa e do remorso”.

A narrativa, assim, parece-nos uma tragédia perfeita, escrita por uma típica autora moralista, com o intuito de ensinar-nos o que pode acontecer a meninos malcriados que não tratam bem os seus pais. Todavia, enquanto essa tragédia perfeita nos é transmitida pela sucessão de acontecimentos e pela descrição dos cenários em decadência, há outra história tomando curso verticalmente, no interior de Julian. E essa segunda história, discreta e quase invisível, é uma comédia, uma história de final feliz. O título do conto não se trata de ironia, mas de uma sinalização, um alerta ao leitor, para que preste atenção no caminho paradoxal que toma a graça. Em Flannery O’Connor, a violência nunca é usada simplesmente para punir:

Suponho que as razões para o uso de tanta violência na ficção moderna sejam diferentes para cada escritor, mas nas minhas próprias histórias descobri que a violência é estranhamente capaz de devolver as minhas personagens à realidade e prepará-las para aceitar o seu momento de graça. As suas cabeças são tão duras que, acredito, nenhum outro recurso seria suficiente. Esta ideia, de que a realidade é algo a que devemos regressar por um custo considerável, é uma ideia que raramente é compreendida pelo leitor casual, mas que está implícita cosmovisão cristã.4

Conforme descreve a tragédia pessoal de Julian, Flannery mostra o violento movimento que a graça precisou fazer para perfurar seu coração empedernido e abri-lo para um nova e discreta possibilidade de redenção. É preciso, para compreender o sentido em que Julian caminhava, atentar-se não tanto ao seu destino, o “mundo da mágoa e do remorso”, mas ao seu ponto de partida. Ou por outra: interessa menos o mundo no qual ele entrou, do que o mundo do qual ele saiu. E esse mundo era o da indiferença e do ressentimento, a sala de teto alto que carregava consigo para onde ia e a partir da qual podia julgar a mãe sem ter nenhuma obrigação para com ela, sem lhe voltar o cego amor que dela recebia. Julian não cai no mundo da mágoa e do remorso, mas sobe a ele, como a um novo degrau do purgatório. É uma subida tímida, decerto, tão tímida que quase não a percebemos, mas uma subida — e tudo o que sobe… bem.

Em quase todos os contos desta coletânea testemunhamos a implacável ação da graça para mudar as ideias de algum personagem cabeça-dura. Na sucessão de contos, sabemos de antemão que personagem será o alvo desse golpe preciso, pois Flannery nos permite espiar pelos diálogos interiores de apenas um dos personagens de cada história – assim revelando, pelo hábil uso do recurso, a fronteira que existe entre a sua mente e o entorno. Só quando a graça consegue abrir alguma rachadura nessa barreira o personagem se torna receptivo a uma revelação, a um convite que poderá aceitar ou não (porque às vezes não aceita).

Julian, segundo ele mesmo, era a tal ponto desconectado do entorno, que erguera uma “sala de teto alto” dentro da própria mente, um cômodo portátil dentro do qual se isolava para manter-se mais distante de sua mãe e da “idiotice alheia”. Já Asbury diz que é como uma concha oca e inútil, e anseia pela própria morte, por não ter sido capaz de criar nada de significativo na vida. O Espírito Santo, entretanto, “revestido de gelo e não de fogo”, desce ao seu resgate, concedendo-lhe, em vez da morte súbita, um calafrio duradouro. Mas nem sempre o alvo de Flannery O’Connor será o intelectual arrogante: em contos como Greenleaf e Revelação, por exemplo, a graça avança contra presunçosas senhoras donas de fazenda, bastante semelhantes à mãe de Julian.

Em Greenleaf, por exemplo, temos a história de um touro fugitivo que invade a fazenda de Sra. May e ameaça sua produção de leite. No decorrer da narrativa, o touro nos é apresentado como uma espécie de Cristo. Ele porta-se com “a serenidade de um deus que desceu para seduzi-la”, e, num dado momento, sacode as folhas de uma grinalda que tinha presa aos chifres e a transforma numa “macabra coroa de espinhos”. Sra. May, assim como Julian, havia se fechado dentro do “céu indiferente” sustentado pelo cercado de sua fazenda, e a história conta os avanços da graça para perfurar essa fronteira e resgatá-la — o touro primeiro invade a cerca da sua propriedade, depois a cerca em torno do seu coração, suas costelas, atendendo, por fim, à prece de Sra. Greenleaf: “Ó Jesus, fere o meu coração”. Enquanto terminava o conto, Flannery escreveu em cartas dizendo que não sabia se “simpatizava com a Sra. May ou com o touro”.5

A história de Revelação é bem parecida: Sra. Turpin é uma presunçosa senhora de fazenda que, num dado momento do conto, será agredida pelas unhas afiadas de uma jovem feia e espinhenta. Enquanto a Sra. Turpin faz mordazes comentários, todos em silêncio, acerca dos caipiras à sua volta, a garota Mary Grace a encara com um olhar sentencioso, como se possuísse uma “lista contendo todos os seus segredos e suas ações passadas”, e, de repente, atira-lhe um livro na testa e avança contra seu pescoço com as unhas afiadas. O nome da garota não é coincidência, claro está, e a violência que inflige sobre a velha, acobertada por um moralismo fajuto e hipócrita, é o custo exato de abrir-lhe a mente para a realidade secreta acerca de si mesma. Depois do tumulto, Mary Grace chama Sra. Turpin de “porca velha vinda do inferno”.

A coletânea começa em Tudo o Que Sobe Deve Convergir e termina em O Dia do Juízo Final, confirmando o movimento de subida que nos fora prometido. A força violenta da graça, porém, embora triunfe ao final da coletânea, não percorre um caminho livre de percalços. A graça não é a única força em atividade nas histórias aqui presentes, e Flannery faz questão de nos mostrar exemplos claros de situações em que uma força demoníaca leva a melhor; uma força que, em vez de reunir para uma eventual convergência, não faz senão dissipar e isolar, ou por outra: Solve et Coagulare. Podemos citar histórias como Uma Vista da Mata, Os Confortos do Lar e Os Aleijados Entrarão Primeiro como exemplos de narrativas em que o demônio falou mais alto do que a Graça.

Em todos esses contos vemos personagens que, ao contrário do touro ou da Mary Grace, não fazem nada além de isolar ainda mais os protagonistas, fechando-lhes ainda mais fundo dentro do orgulho. O misterioso empresário Tilman, em Uma Vista da Mata, isola o velho Fortune da sua filha e da sua amada netinha.. Em Os Confortos do Lar, Thomas vai pouco a pouco sendo afastado de sua mãe pela presença maligna do fantasma de seu pai – que se tranca junto dele em sua mente, enquanto lhe sopra conselhos perversos. Mas nenhum é tão desconcertante quanto o macabro jovem Rufus Johnson, de cabelo penteado “à moda Hitler”, que se interpõe entre Sheppard e seu filho para, sorrateiramente, sem que sequer suspeitemos, faturar a alma da criança carente bem debaixo do empinado nariz do pai.

Sheppard é o mais detestável da coletânea de personagens vaidosos e presunçosos de Flannery O’Connor. A própria autora confessa, em outra carta, que o conto não lhe soa convincente porque ela não tem nenhum apreço por Sheppard (e talvez por isso a sua incerta redenção no final tenha custado o preço mais alto):

A história não funciona porque eu não conheço, não simpatizo, não gosto do Sheppard da forma como conheço e gosto da maioria das minhas outras personagens (Carta para “A”, 6 de setembro de 1962).

No começo do conto, Sheppard compara o seu trabalho como assistente social ao de um sacerdote confessor, abrindo a ressalva de que se considera mais capacitado, “pois se formou e estudou muito para fazer aquilo”. Sua vaidade é achar que pode salvar a todo mundo – ou, como diz Rufus Johnson, achar que é Jesus Cristo. O confronto com o jovem Rufus, que logo de cara confessa estar a serviço de Satanás, é algo que seu instrumental de livretos de psicologia infantojuvenil não estava à altura de solucionar.

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Apesar das semelhanças entre os contos, tanto nos personagens como nos cenários, Flannery O’Connor nunca deixa de pegar o leitor de surpresa, por mais que ele se mantenha de sobreaviso. São nove contos em torno dos mesmos temas, das mesmas preocupações, porque escritos na iminência da morte; mas são nove histórias únicas, com finais de difícil digestão e personagens que, apesar do pouco tempo de convívio, permanecem na mente do leitor com a intimidade de um protagonista de romance. A própria Flannery, aliás, teve receios com relação ao livro, por achar as histórias parecidas demais:

Tenho sete histórias, mas não creio que haja variedade suficiente nelas para fazer uma boa coletânea. Vale esperar e ver o que me ocorre em um ou dois anos. Não tenho qualquer pressa. Ainda quero chamar ao livro Tudo o Que Sobe Deve Convergir (Carta para Robert Giroux, 5 de Novembro de 1962)

Penso que o fato de as histórias serem tão parecidas é justamente o que faz o leitor sempre se surpreender com os desfechos pretendidos pela autora. Na primeira sequência de capítulos, a semelhança de Sra. May com a mãe de Julian, e de Julian com Wesley, leva-nos a presumir que a história se repetirá, que o jovem intelectual presunçoso terá um merecido final trágico — mas ocorre o inverso. No momento em que julgamos ter desvendado a narrativa e saber para onde se encaminha, deparamo-nos com um touro que perfura as costelas de uma velha.

As histórias de Flannery O’Connor são, a um só tempo, uma escada e uma rampa. Uma tragédia apavorante, que faria inveja a qualquer escritor de terror, e uma comédia cujo desfecho último, embora por vezes fique apenas subentendido, é a convergência. E o ápice da tragédia, o momento de maior sofrimento dos personagens, é também, por um paradoxo que só é possível a um escritor que tenha compreendido a lição do evangelho, o seu momento de subida, o seu final feliz.

Não escrevo este ensaio com o intuito de decodificar os segredos de Flannery O’Connor. E estou certo de que, embora o conhecimento simbólico e a familiaridade com as referências ajudem a compreendê-la, não há uma resposta certa para como lidar com os seus contos. Compreender Flannery O’Connor é surpreender-se com o que ela escreve. Há, em todos os contos, tanto uma tragédia como uma comédia em curso, e separá-las não é uma atividade fácil, porque entre a comédia e a tragédia subjaz a presença implícita do mistério. Como não lhe foi dada a voz para expressar os mistérios celestes, dom reservado aos místicos e profetas, Flannery contenta-se em confundir-nos suficientemente com os fatos do mundo para que, desconcertados ou assustados, mantenhamo-nos cientes da sua presença. Se Deus escreve certo por linhas tortas, Flannery O’Connor escreve certo por linhas tortas e torto por linhas certas. Cabe ao leitor espremer os olhos, e ler tudo outra vez.

1Flannery O’Connor diz que sempre lê A Good Man Is Hard to Find quando faz visitas em escolas porque é a única de suas histórias que consegue ler sem ter uma crise de risos. In: a conversation with Robert Drake Agosto de 1968.

2Carta para “A”, 24 de setembro de 1955. In: The Habit of Being: Letters of Flannery O’Connor. Org: Sally Fitzgerald. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 1979.

3 “On Her Work”. In: Mistery and Manners. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 1957. p. 112

4Ibid.

5Ver: The Habit of Being: Letters of Flannery O’Connor. Org: Sally Fitzgerald. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 1979.\

O’CONNOR, Flannery. “Tudo o que sobe deve convergir” , Tradução e introdução por Pedro de Almendra. Campinas: Sétimo Selo, 2023.

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