Everybody Hates Itamar (Última parte) – Povos em exposição no museu Torto arado

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Por Jessé de Almeida Primo

Terminada a leitura de Torto arado, de Itamar Vieira Junior, comecemos logo recordando o motor da narrativa: Bibiana perde a língua quando ela e Belonísia estavam brincando com uma faca e, daí em diante, tornam-se mais unidas.

Ainda que seja doloroso perder a língua daquela maneira, além de inverossímil, posto que tenha acontecido na infância, não parece convincente dar a tal acontecimento ares de tragédia, de trauma irremediável. Isso talvez se justificasse se ocorresse por meio de uma agressão feita por terceiros, por alguém que chegasse até ela e, por perversidade, lhe arrancasse a língua. Longe disso. O que se lê não é nada comparável, por exemplo, ao que se encontra na dilacerante e desconcertante passagem do conto “Negrinha”, de Monteiro Lobato, em que Dona Inácia, pretextando impor um castigo, obriga uma criança de sete anos, a personagem título, a abrir a boca para nela introduzir um ovo cozido, ainda quente, em seguida forçando-a a fechá-la, a fim de abafar os urros de dor que poderiam ser ouvidos pela vizinhança. Isso, sim, que é traumático e humilhante, e denuncia o pouco caso que algumas pessoas tinham pelo próximo, a ponto de coisificá-lo ou animalizá-lo, estando muito além de um mero acidente ocasionado por uma brincadeira entre duas crianças. Ironia das ironias, esse efeito dramático foi conseguido por um escritor cuja obra está sendo revisada por expressar ideologias racistas; acusações essas que partem, sim, não há negar, de algo real, que, aliás, é muito evidente num dos capítulos de Reinações de Narizinho, que trata da organização social das abelhas, uma justificativa espúria para uma política francamente eugênica. Não precisamos, porém, que ONGS ou órgãos estatais nos defendam dessas passagens, que guiem nossos olhos, como se se tratasse de algo contagioso e como se não soubéssemos ler e discernir a qualidade moral do que estamos lendo. Ainda que o não soubéssemos, essa intervenção continuaria injustificável e seria mera exibição de virtudes.

Como nem o próprio autor parece convencido de que isso é um trauma, resolve apelar ao recurso do leitmovit. Se o leitor em meio a tantos acontecimentos na narrativa esquecera do acidente, o narrador a este refere vez ou outra no decorrer da história, relacionando-o com alguma coisa que acontece com a personagem ao longo dos anos, ou, qual uma notificação num IPhone, faz brotar à memória, como se piscasse para o leitor, sempre insistindo que ela perdera a língua e que isso é importante, que dói. Itamar sempre chama atenção ao fato de que isso foi determinante para que ambas se unissem em outra ordem de união; uma sendo a voz da outra, a que quase perdeu a língua falaria pela que perdeu a língua, numa demonstração de ventríloqua sororidade:

Aquele era o nosso pacto de vida, desde o fatídico dia em que a faca de Donana havia fendido nossa história, decepado uma língua, impedido a produção de sons, ferindo a vaidade de uma Mãe D’Água, mas unindo duas irmãs nascidas do mesmo ventre, em tempos diferentes, pela vida até aquele instante.

Esse trecho está no primeiro parágrafo do nono capítulo de “Fio de corte”, tão carregado nas tintas da tragédia. Entretanto, evidencia a pouca importância do episódio em si, ao menos da importância do fatídico acontecimento para o funcionamento da trama, cheio de retórica de telenovela: “a faca de Donana havia fendido nossa história”. Como se achasse pouco, “decepado uma língua, impedido a produção de sons” é um acréscimo dispensável, que começa, num drama pífio, a evocar uma eloquência de samba-enredo (“fendido nossa história”), e termina numa explicação de algum problema fonológico. Isso, aliás, poderia ser recitado, entre lágrimas e um riso nervoso, por Letícia Sabatela, revezando com o olhar arregaladamente empoderado e desafiador de Taís Araújo, que encara seu opressor pelas câmeras, numa alternância sonora, quais górgonas cidadãs. Isso se torna mais evidente nos capítulos finais, quando Belonísia profere um discurso pelo qual desafia os fazendeiros e autoridades locais, numa mistura grandiloquente de realismo socialista, com as cenas, tão presentes em filmes norte-americanos, em que um discurso edificante proferido por um nerd, cansado das humilhações a que foi submetido durante um semestre inteiro na escola, toca os corações e mentes de seus agressores contumazes. Quando tento imaginar como seria a representação material dessas duas personagens, só me vêm à cabeça essas duas atrizes globais soteriófilas. Como não bastasse, ao relatar um acidente que feriu o pé da personagem, é dito: “um sangue grosso e substancioso deixava meu corpo pintando a terra com seu vermelho cor de pássaro.” Essa passagem, que nos estapeia e segura nossos rostos para fazer-nos encarar a realidade, parece sugerir uma Bibiana, tornada aqui num verdadeiro pincel humano, vitimada por uma cruenta batalha homérica, quando apenas cortou o pé num acidente corriqueiro, o que é uma pena, uma vez que o símile “vermelho cor de pássaro” é poderoso, aliás poderoso demais para algo tão insignificante.

Claro que o autor tem de nos lembrar que as personagens são negras, “desaparecendo num rodamoinho de água escura como a cor de minha pele”, o que poderia ter sido escrito, num arroubo lírico-racial, por um burocrata branco que não perde uma única oportunidade de quitar alguma dívida histórica, como se o simples fato de alguém ser preto o tornasse obcecado por dizer em qualquer oportunidade que tem pele negra, como se fosse uma novidade até mesmo a quem o diz e como se fosse uma doença que pegou de algum lugar e que, por isso, não deixa de o impressionar.

Se na tentativa de atribuir ares dramáticos a qualquer acidente o autor sangra a pena, por outro lado não se sente à vontade nas descrições sexuais. O realismo descritivo ou a mera sugestão se substituem por um lirismo açucarado, cheio de contornos envergonhados, tergiversações constrangedoras, como se a voz narrativa pertencesse àquelas beatas de novelas televisivas quando são obrigadas a “falar daquilo”:

O silêncio da ausência dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida.

O último período, com o trecho “nos impelia para conceber a vida” é o verdadeiro “falar daquilo” da literatura, além de ser antecedido por uma compulsória denúncia da realidade, “depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas”, mero jogo retórico ocioso, mais para autossatisfação cidadã de quem o concebe do que para usufruto do leitor, que é obrigado a extrair ao prazer sexual, pasmem, uma meditação sobre crianças mortas.

Itamar Vieira mostra-se mais em casa, desta vez, quando descreve a manifestação de desejo erótico:

Desviei muitas vezes meu olhar para evitar os olhos dele. Mas quando percebia sua distração em outras moças e pessoas, ou sua dedicação no serviço, o corpo se descontrolava como um potro, suava, exalava odores, tremia, fazia movimentos que levavam o coração à boca. Me lembrava da chegada de Severo ainda menino à Água Negra. Mas não havia toda essa potência no seu desejo, era algo bom como asas frágeis se movendo no meu corpo. Agora eu era uma fruta amadurecida convidando os pássaros a me bicarem, como os chupins que espantávamos dos arrozais até pouco tempo atrás.

Há diversas outras passagens de qualidade semelhante a respeito do mesmo assunto, em que se descrevem os momentos que antecedem a partida de Bibiana para a casa de Tobias, a resultar, como podemos notar no trecho que destaquei, na descrição franca do desejo em ação sem o recurso de nenhuma expressão lúbrica, valendo-se mais de símiles telúricos. De resto, essas passagens se encontram num capítulo interessante do livro, em que vida e expressão de humanidade realmente respiram (“algo bom como asas frágeis se movendo no meu corpo” é, façamos justiça, uma bela forma de descrever a manifestação física do desejo), que é a relação confusa entre Bibiana e o já referido Tobias; aqui, nem tudo se resume a uma relação entre macho tóxico patriarcal e uma mulher que é necessariamente uma vítima.

A expressão envergonhada nas descrições de cenas eróticas de algum modo se articula com o que o escritor Zózimo Tavares diz ser, no artigo “A linguagem torta de Torto arado”, “um pecado original da linguagem”:

No romance, as narradoras, nascidas e criadas no ambiente rural, contam suas histórias através de um vocabulário rebuscado, acadêmico, totalmente incompatível com a sua condição sociocultural. 1

De fato, o português que Itamar Vieira usa para escrever o romance ou para dar voz às irmãs siamesas a posteriori é um português escorreito, geralmente evitado por alguns romancistas, como se o procedimento contrário conferisse mais autenticidade e assim se aproximasse melhor do universo íntimo de suas personagens. O recurso da linguagem imitativa, ou daquela em que o narrador se encontra no mesmo nível linguístico das suas personagens, é presente na obra de alguns escritores como Jorge Amado e José Lins do Rego, com aquele usando-a em mais larga escala do que este. A respeito de Jorge Amado, dizer que usa uma linguagem imitativa nos seus romances a fim de identificar melhor o narrador com as personagens não é a melhor forma de descrever seus recursos linguísticos. Digamos que a linguagem dos seus narradores é facilmente identificável com a forma como o próprio Amado conversa, numa linguagem, como se diz, familiar, a um só tempo pessoal mas não por isso intransitiva, pelo contrário, muito clara, sem demagogia, a de um cronista do povo. Outros há que ou preferem evitar ou não veem necessidade desse recurso, como Machado de Assis e Graciliano Ramos, fazendo com que a linguagem imitativa se substitua pela descrição do universo interior de suas personagens. De alguma maneira, nos limites da correção de linguagem, Itamar Vieira se aproxima destes últimos.

Isso posto, a falha na concepção das personagens não está exatamente no uso da linguagem escorreita, como censura Zózimo Tavares. Da acadêmica, sim, embora tenha a virtude, justiça seja feita, de não ser academês. A falha na escolha da linguagem escorreita, fazer com que Bibiana ou Belonísia falem o português que o escritor domina, não é um erro em si nem deveria ser um erro. Só o é por conta de um elemento anterior: a narrativa em geral é escrita ou numa linguagem de relatório, uma ata bem redigida, ou empreende-se o esforço de denunciar, por meio de panfletos, algum problema social, no caso, o chamado trabalho análogo ao trabalho escravo, ou alguma manifestação patriarcal que raramente resulta na linguagem romanesca, antes como esquemas para um romance à espera de algum escritor que lhes dê vida. É justamente quando o autor resolve particularizar a dicção a fim de identificar por esta uma entidade sobrenatural da cosmologia negra ou africana que a fragilidade da obra mais se evidencia, porque, no final das contas, sentimos menos a presença de uma entidade fantástica que a de um primitivo que fala português com sotaque:

Meu povo seguiu rumando de um canto para outro procurando trabalho. Procurando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar fingindo que nada mudou porque os homens da lei poderiam criar caso.

Nada mais reflete uma mentalidade colonialista do que fazer uma entidade sobrenatural africana ou afro-brasileira ou cabocla, tão experimentada no tempo e em diversos tipos humanos, usar termos que só se conformam à boca de um estrangeiro que visita uma terra desconhecida ou um alienígena que visita o nosso planeta, apelando a termos genéricos ou analíticos como “donos” (donos de quê, afinal? Seria o mesmo que senhores?) em vez de “senhores de engenho”, “fazendeiros”, “proprietários de terra”; “homens da lei” em vez de “policiais”, “polícia” ou “juízes” ou “legisladores”, ou o nome de algum cargo político (e sem contar a expressão típica de sonsos: “por causa da lei”, em vez de dizer de uma vez Lei Áurea), incorrendo na mesma dificuldade de síntese que identifica os tipos populares que dizem “o homem do mercadinho”, “o homem do violão” etc., quando se poderia, sem nenhum prejuízo à verossimilhança, fazer com que essa entidade falasse de forma desassombrada, referindo as coisas pelos seus próprios nomes, como o fazem os deuses da mitologia greco-romana, as entidades nos Lusíadas ou Javé, na Bíblia, mas por meio de um discurso abastecido de uma matéria místico-mítico-telúrica, para o que não faltariam modelos, entre os quais se poderiam destacar Gilberto Freyre ou Câmara Cascudo, ou ainda Euclides da Cunha, nas ciências sociais, ou Ariano Suassuna, com destaque ao Romance da Pedra do Reino. Não encontramos, afinal, num concílio dos deuses, seja na Ilíada ou Odisseia, seja na Eneida, essa linguagem botocuda, por mais primitivos fossem os costumes; pelo contrário estes se valem sempre de um vocabulário comum às civilizações desenvolvidas, usam termos precisos para questões relativas às organizações sócio-políticas, à arte da guerra, a legislações etc., afinal, se são esses mesmos deuses que criam as civilizações, por que justamente eles se refeririam às coisas que lhes dizem respeito por termos que expressam desconhecimento delas? É até de se duvidar que as narrativas africanas, que precisam ser pesquisadas para que se empreendam traduções delas, sigam por esse mesmo caminho. Outro modelo de monta é “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias, na apóstrofe de um chefe de tribo ao seu filho, sem em nenhum momento perder a essência dos costumes primitivos e da língua na sua melhor construção, que serviu para ilustrar esses mesmos costumes, e que diz muito bem o espírito guerreiro não por um ritmo local e sim pelo metro eneassilábico, muito ao gosto romântico, com marcações uniformes que lembram o ritmo – numa expressão de Érico Nogueira – hexatônico da poesia homérica:

“Possas tu, isolado na terra,

Sem arrimo e sem pátria vagando,

Rejeitado da morte na guerra,

Rejeitado dos homens na paz,

Ser das gentes o espectro execrado;

Não encontres amor nas mulheres,

Teus amigos, se amigos tiveres,

Tenham alma inconstante e falaz!

E é de se notar, contudo, que o trecho de Torto arado em destaque é antecedido e também sucedido por outros em que, a despeito da platitude do discurso, o uso da linguagem não passa por esse tipo de problema: “O diamante trouxe a ilusão porque, quando instalaram as dragas, os rios foram se enchendo da areia que jorrava das grutas.” É como se o autor, tendo percebido o uso da linguagem culta, da desenvoltura vocabular, resolvesse fazer uma concessão – um recurso de gente sonsa, repito – afetando escassez vocabular para mostrar intimidade entre a entidade e as pessoas de cujo corpo tomam posse, a que chamam, como na expressão corrente do candomblé, de cavalos.

Se, por um lado, podemos louvar a ambição de dar voz a essa entidade que discorre sobre as mudanças de costumes ao longo dos tempos, que deplora os males do progresso e de como anda a vagar pela terra sem nenhum corpo em que possa “montar”, por outro o resultado está aquém das expectativas que uma empresa desse porte poderia gerar, uma vez que fala não como os deuses das diversas mitologias, incluindo as africanas, mas como um político demagogo, como um líder de algum movimento popular ou, na melhor das hipóteses, como uma Marina Silva falando de ecologia, e, dessa maneira, em vez de uma entidade em seu esplendor – mesmo em sua dor de ver-se esquecida, abandonada, substituída por outros valores –, vemo-la reduzida ou a um objeto antropológico ou etnológico, àquilo que é muito bem traduzido pela famosa expressão de Oswald de Andrade, uma verdadeira “macumba para turistas.”

1 https://zozimotavares.com/site/2021/06/08/a-linguagem-torta-de-torto-arado/