A Estrada da Vida – poemas de João F. Luciano



A ESTRADA DA VIDA

Nesta avenida de alcatrão que atravesso,
noite e dia, 
num ramo do mar endiabrado,
sem princípio nem fim,
e no estrépito dos carros que caminham
decididos, sem sossego,
eu nunca vi um recomeço.

Toda e qualquer estrada é a cara
do infinito,
mas os donos dos carros decidem. 

A quem cabe a confusão de conduzir,
de agarrar em pulso firme a fusão 
entre o mistério e o asfalto, 
entre o mar e o céu, entre o caos 
e todas as regulamentações,
vigentes e vindouras, 
não cabe de igual modo
nem a míngua de um compasso 
do silêncio, 
a antecâmara em que artistas se preparam
pra o espetáculo que há de vir. 
Não são estas fileiras para serem contempladas!

Não, nenhuma avenida é dia um de janeiro,
em nenhuma placa jaz o dorso de São Pedro,
e nenhuma rotunda é a entrada da capela soturna
em que os pés entraram a morrer. 

Nesta avenida de alcatrão que atravesso, 
o tempo não pára e todo o acidente 
mata, dolorosamente.  
mas os donos dos carros decidem. 


PARTO

para da minha filha Maria Beatriz

Vai Beatriz chegando à rua dos encalços…
O país é uma lareira entupida 
O país se encheu de troncos
e não quer mais acender

Vai e vai, lamparina!
Lá fora, o mundo é um engano! 

O mar é menos fundo do que a gente  
Lá fora, o Rei conjura a maior das ilusões…

Quando a tua hora chegar, originária, 
esconde o candelabro do teu peito 
e dança com teus pés envergonhados 
e dorme sobre as nuvens que inventares!


O PASSEIO

Me contento em ver caras bonitas
Passeio na avenida devagar 
Dou até voltas maiores 
para ver caras bonitas

É assim porque o céu nem sempre é limpo;
porque o sol, que é maior que toda a gente, 
e mais belo que o sorriso 
amansado das fotogênicas mulheres, 
— tem o mais dourado diadema — 
é uma estrela só e se esconde 
atrás das nuvens.  

Ah, mas às caras bonitas, 
sempre as há entre as ruelas 
E quando a rua vai deserta 
E se o sol não aparece 
me deleito contemplando uma cara 
que lembrei 

Ah, e se é rosto de mulher 
que não é minha, 
o que importa? É bonito 
e me contento;
e contentar-me é ir a Deus 
e perfurar o tecido 
das nuvens 
atrás do qual o sol é belo. 


O GIRASSOL

Em tempos tive um dia sossegado;
morei numa falésia
bebi de um girassol que encontrei 
(por não saber que estava oco)
e fiz cara de estranheza  
ao que em seu modo adulto de ser gente
veio cantar-me umas novenas,
ver qual é minha função 
mas foi cortar-me o girassol

Passei logo por um louco
Fui onde ele me levou. 

Disse-me: “esta flor não tem licor”
mas saí e não voltei. 

Agora o vejo, diligente, com razão;
faz arranjos pra vender. 

Tudo é certo como dantes. 

Só não tenho a casa na falésia
o instante imperturbado 
e meus olhos ensinados para ver o que não há. 


A LUZ DO MUNDO

Que fizeram da candeia?
Foi-se a luz em meu quintal. 

Nossos cães estão latindo,
já não sabem onde estão. 

Vai debaixo do alqueire?
Não está no velador. 

Que fizeram da candeia?

Marcham lerdos aluados
Batem pés os meus vizinhos
A noite é escura e jovial!

Adormece!  
Ó meu menino…
adormece e ouve a luz
no cantinho do teu sono 
embriagado 

Que fizeram da candeia?
Esta lua não reluz!
Mas à vela, eu comprei-a!
Já não sei aonde a pus.


Ter os olhos de menino

Ter os olhos de menino…
A última ambição que jamais satisfarei!

Dona Ana impõe prazos pra cumprir 
Tem já pronto em uma sala 
bom modelo de lucrar.  

O relógio tão certeiro, 
o comboio que chega em tempo,
e nem um dos passageiros
é mais alto do que eu…

Ter os olhos de menino…

A roseira lá de casa 
que só brilha em meu caderno,
as pessoas que são feias,
os meus olhos tão abertos para ver 
que sou também. 

Ah! A sombra fútil de crescer…
Foi por ti que eu ceguei 
A última ambição que jamais satisfarei!