A piedade das Musas: Escutando Nina Simone

— por Lucas Petry Bender


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Das muitas formas que a alegria assume, a de cantar os seus próprios infortúnios, desgraças, desilusões e derrotas talvez seja a mais inusitada. Qualquer que seja a tristeza da canção — ou de outra forma artística —, ela é superada pela alegria da criação, pelo júbilo de saber dar voz a uma falta, que nesse momento mesmo se faz sentir como uma completude.

Não há nenhuma situação tão terrível que não possa ser aliviada por uma pausa momentânea do espírito para contemplá-la esteticamente” — escreve o filósofo George Santayana em O Sentimento da Beleza  — “Assim, o próprio sofrimento deixa de ser apenas dor; algo doce lhe é acrescentado mediante a nossa reflexão. As cenas mais tristes podem perder a sua amargura por causa da sua beleza. Essa função constitui, por assim dizer, a piedade das Musas, que socorrem a sua mãe, a Vida, e recompensam-na com o conforto de sua presença contínua por tê-las criado.

Nessa pausa momentânea do espírito, ouve-se o canto doloroso com a consolação de quem encontra a expressão de uma solidão que julgava só sua. Quem os males canta, não necessariamente os espanta; antes, converte-os numa espantosa solidão compartilhada com seus ouvintes. Juntos no canto, porém não mais encurralados, assim descobrimos o segredo do blues, por excelência, que é também o segredo da insuspeitada e sutil alegria provocada pelo samba triste, pela lírica poética, pela prosa intimista, pelas formas e cores de boa parte das grandes criações artísticas.

Dos mais agudos clamores aos mais graves lamentos, a música de Nina Simone (1933–2003) realiza essa alquimia espiritual com generosa intensidade, frequência e versatilidade, como o ouvinte percebe, por exemplo, nas quatro faixas a seguir, que ilustram, cada uma a seu modo, distintas abordagens musicais:

1. CONSONÂNCIA ENTRE LETRA E MÚSICA: My Father

Gravação recomendada: álbum Baltimore, 1978.

Ânsia de sonho, de juventude e de felicidade, atravessada pela mágoa e pela crueza do tempo perdido, a canção é de tal modo apropriada pela voz e pelo piano de Nina Simone que não resta nada a ser lembrado da versão original de Judy Collins. Oscilando entre a esperança e a frustração, o sonho e a desilusão, o jogo de forças é introduzido por um padrão de toques no teclado que lembra as águas de um rio, com a miríade de reflexos cintilantes e a mistura de tranquilo fluir e imprevisíveis movimentos — refletindo as referências da letra aos passeios de barco pelo Rio Sena, símbolo da promessa paterna de sair do interior dos Estados Unidos para viver em Paris.

A percussão surge surda e regular, como um coração que bate, e o arranjo de cordas graves cresce como se prenhe de esperança, acompanhando a recordação da promessa que o pai fizera à filha. Quando canta que na França aprenderia a dançar, Nina tempera a esperança com toques coloridos, inquietos e vivazes do piano. Ao fim da primeira estrofe, porém, a melancolia dá sinais de que vai dar a última palavra, e de que a promessa “sail in time”, vogando nas águas do passado. Atada à promessa perdida, resta dançar sozinha.

O verso que deveria expressar a realização do sonho — “And I live in Paris now” — desaba na voz e no arranjo de cordas com uma melancolia pesada e fatalista. Alguma esperança retorna, ainda, na subida aguda das cordas, pois as gerações se sucedem e agora são seus filhos que dançam e sonham. O tom final, entretanto, é de uma melancolia um tanto enlutada, resignada com a memória do pai, com a obra do tempo, com os sonhos que se vão, com os caminhos que a vida encontra para seguir adiante, a tudo contornando, como as memórias soltas nas águas do rio.

2. O PESO DA INTERPRETAÇÃO: The Other Woman

Gravação recomendada: álbum Nina Simone at Town Hall, 1959.

Comparando essa gravação de Nina Simone com a versão de Lana Del Rey (2014) — ambas belíssimas —, entende-se tudo o que é possível alcançar por meio da interpretação vocal. A letra descreve as vantagens da “outra”, a amante sempre perfumada, atraente e disponível, para em seguida vaticinar um destino final melancolicamente solitário, quando o seu encanto perder o viço diante da passagem dos anos.

Há diversas gravações realizadas por outras cantoras, mas o que distingue a comparação entre as duas versões aqui escolhidas é que Nina parece dar voz à esposa, enquanto Lana soa como a amante; a mesma música, a mesma letra, mas o espírito muda conforme a interpretação vocal.

Na voz de Nina Simone há um ressaibo de resignação conforme o ponto de vista da esposa, que se sabe traída mas que terá o triunfo a longo prazo; um certo tom irônico perpassa a sua interpretação, sobretudo quando canta a derradeira palavra — “alone”, referindo-se ao destino final da amante. Lana Del Rey, por sua vez, se expressa de modo mais pungente, doloroso, desamparado (no que talvez seja sua principal qualidade como intérprete), chegando ao paroxismo do abandono exatamente quando canta a palavra “alone”, que sai do fundo do coração magoado e desiludido de quem vai terminar seus dias com as unhas pintadas, mas sem ninguém para quem as mostrar.

3. A LETRA POUCO IMPORTA: Le peuple en Suisse

Gravação recomendada: álbum Fodder On My Wings, 2020.

A primeira metade da música soa estranha: ouve-se a letra com clareza, mas é como se a voz e o piano não encontrassem o tempo certo; Nina parece um tanto fora do prumo, dando inclusive uma impressão de desleixo e de má vontade. Por volta de 1 minuto e 55 segundos, contudo, o andamento ganha um novo encaixe, mais solene e denso, seguido pela entrada das vozes do baixo e do trompete. Canção transfigurada: a partir daí, um arrepio de fascínio percorre a espinha da música, a voz de Nina encontra seu destino ea cor da música aparece plenamente — enquanto o sentido da letra desvanece diante da insistente repetição do verso-título, das vogais esticadas, da mistura de língua inglesa e francesa, do uso puramente musical da voz.

Se o sonho de tornar-se concertista de piano clássico mostrou-se inalcançável para uma jovem negra e pobre dos interior dos EUA nos anos 1950, as qualidades da sua formação em piano mostram-se eloquentes em gravações em que toca desacompanhada e sem usar a voz, como em You’ll never walk alone (canção gravada por inúmeros intérpretes vocais de primeira grandeza, que no piano de Nina se apresenta tão intensa quanto isenta de sentimentalismo) e Theme from Samson and Delilah (tema da ópera Sansão e Dalila, de Camille Saint-Saëns, que Nina incluiu no repertório da sua célebre apresentação no Carnegie Hall, em 1963), entre outras. Em meio ao bramido do turbilhão de notas, a voz emudecida transborda no teclado com a força de tudo o que não pode ser dito.

4. IRONIA OU DISSOCIAÇÃO ENTRE LETRA E MÚSICA: Ain’t Got No, I Got Life

Gravação recomendada: álbum The Very Best of Nina Simone 1967–1972, 1998.

Sem lar, sem Deus, sem amor, sem dinheiro, sem ninguém, sem nada — a letra da música nos faz desprovidos de quase tudo, exceto da vida mesma e da sua energia intrínseca, do fluxo e refluxo dos movimentos do destino, que nos assemelha aos brincos balouçantes de Nina Simone no vídeo em que apresenta a música ao vivo num programa de TV, em Londres, 1968.

Medley de duas faixas do musical Hair — que Nina modificava ligeiramente a cada apresentação —, o lamento inicial dessa canção parece ir absorvendo forças da sua própria miséria, aos poucos se transformando numa efusão sanguínea e vibrante que celebra o fato puro, simples e sempre espantoso de que há a vida, aqui e agora, e isso é suficiente para cantar, malgrado todos os pesares.

No ponto em que tudo se mostra fechado a qualquer forma de esperança, a perspectiva estética abre horizontes e relativiza as dimensões da existência. “Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável” — sugere Nietzsche em A Gaia Ciência — “Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós.

Em Nina há uma dor surda e ancestral que se incorpora dramaticamente na celebração da vida, insuflando no prazer de existir um páthos que se renova e se fortalece em moto-contínuo. Rindo ou chorando, prevalece a constatação do último verso da música: “I’ve got life”.

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A vida de Nina Simone se extinguiu em 21 de abril de 2003, mas a vasta obra que legou — em que se destacam interpretações definitivas e insuperáveis de pelo menos 60 músicas — permanece realizando a alquimia espiritual a que aludimos na introdução.

Frequentemente reconhecida pelo seu ativismo social, Nina expressava como poucos uma individualidade marcante, que encontrava a liberdade interior inclusive quando oprimida pela dor e pela solidão, graças ao seu gênio profundamente artístico, que lhe proporcionava os meios de compartilhar a imensidão de tudo o que sentia com seus ouvintes, com maior intensidade, verdade e pungência do que qualquer protesto.

As obras do gênio têm em comum que, mesmo quando captam vividamente a nulidade das coisas,” – escreve o poeta Giacomo Leopardi – “quando mostram claramente e nos fazem sentir a inevitável infelicidade da vida e quando expressam o desespero mais terrível, ainda assim, para uma grande alma, mesmo que se encontre em um estado de abatimento extremo, desilusão, nulidade, tédio e desespero de vida ou nas mais amargas e mortíferas das desgraças — sejam elas relacionadas a fortes paixões ou a qualquer outra coisa —, servem sempre de consolação, reacendendo o entusiasmo.” (citado por Harold Bloom em A Anatomia da Influência)

Por meio do gênio musical de Nina Simone nos descobrimos imbuídos dessa grande alma, inspirada pela piedade das Musas, reconciliada com seu próprio desespero e com o vazio por trás da vida. Afinal, não possuímos realmente nada mais do que a vida — e isso é já muito, principalmente se soubermos escutar a sua música.