Entrevista com Daniel Laier & questionário de Proust

Entrevista concedida por e-mail a Matheus Bensabat

1. Como foi a sua infância em Poços de Caldas e quando surgiu o seu interesse pela  literatura?

Nasci em 1978 e passei minha infância na década de oitenta, sem computadores e internet. As diversões de um garoto que vivia no interior naquela época eram brincar na rua de casa, assistir aos desenhos na televisão e ler. Um pouco depois veio o vídeo game.

Os livros sempre fizeram parte da minha vida. Lembro de um episódio em que fui ao centro com meu avô e ele comprou um livro para mim. Após chegar em casa, terminei o livro em menos de uma hora e minha mãe disse ao meu avô, brincando: — Volta e compra mais um, porque esse aqui ele já leu.

Outra lembrança importante é do tempo em que estava na sexta série do que hoje denominam ensino fundamental. Uma das atividades era a redação com tema livre. Na época havia acabado de conhecer os livros das coleção Vaga-Lume, e tinha lido O mistério do cinco estrelas, de Marcos Rey, uma história de suspense em que os personagens querem investigar um assassinato ocorrido num hotel. Quando a professora passou a atividade, o que fiz? Escrevi uma redação com um tema semelhante, imitando, obviamente sem querer, o estilo de Marcos Rey. Acabei contando uma história bem parecida com o romance, mas em duas páginas e meia. É claro que na época nem pensava em ser escritor, mas essa foi uma atividade que me marcou. Lembro até hoje do meu empenho ao escrever a história, e de como gostei de contá-la.

No ensino médio me afastei da literatura. Sempre fui um ano mais novo que todos na sala, e lembro de que a professora de literatura, já atenta aos livros exigidos nos grandes vestibulares, indicou os romances de Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Machado de Assis, entre outros. Foi um choque passar da coleção Vaga-Lume para aquela linguagem difícil, com temas que não me despertavam o interesse. O ensino médio é um dos grandes responsáveis pelo desprezo que muitas pessoas no Brasil têm pela literatura.

Como conseguia entender as matérias de física, química e matemática e me saía bem nas provas, entendi que minha cabeça era voltada para as exatas, outro erro comum que muitos cometem por conta do ensino direcionado ao vestibular. Passei a ver a literatura como algo estranho, incompreensível, até misterioso. Por isso, prestei vestibular para engenharia, e só voltei à literatura no segundo ano da faculdade, lendo os livros dos mesmos autores que me haviam sido apresentados no ensino médio, mas que agora eu mesmo escolhia, segundo os meus interesses, na biblioteca do diretório acadêmico da faculdade.

Boa parte do que contei aqui está no livro, mas de forma romanceada e com mais detalhes.

2. Em que momento surgiu a ideia de escrever “O labirinto do corpo” e o que te levou a pensar em uma trilogia?

Dediquei boa parte da minha juventude, dos treze aos trinta anos, ao estudo da música. Estudei vários gêneros musicais: rock, música clássica, jazz, choro e música popular em geral, nacional ou estrangeira. Boa parte desses anos de estudo foram dedicados a compor canções. Contava pequenas histórias do cotidiano. Aos vinte e seis anos tive um câncer no sistema linfático, e após o tratamento de seis meses no hospital, aos poucos percebi que existem certas experiências que não cabem numa canção de cinco minutos. Naquela época, como disse na pergunta anterior, havia retomado a convivência com a literatura, e lia um livro atrás do outro, não apenas de autores das literaturas brasileira e portuguesa, mas também Dostoiévski, Kafka, Dante, etc. Então, foi óbvio para mim que a canção era um meio de expressão limitado para as minhas necessidades. O que me levou a tornar-me escritor, portanto, foram minhas próprias experiências, e não um mero interesse pela literatura, ou uma ideia de glamour frequentemente associada à vida de escritor. Percebi que era impossível continuar escrevendo canções após viver seis meses no hospital. Ao mesmo tempo, abandonei os temas do cotidiano que costumava tratar nas canções por me parecem menores frente à necessidade de contar a minha experiência no hospital. Isso não significa que não venha no futuro a tratar de temas semelhantes aos das canções que compunha, mas na literatura o tratamento será outro, por permitir o aprofundamento de questões que na canção, muitas vezes, passam despercebidos.

Observe que entre a realidade e a arte há um enorme abismo. Jamais conseguimos transmitir numa obra de arte a totalidade de nossas experiências, os mínimos detalhes do que vivemos. Pensei muito nessa questão depois que saí do hospital e tentei relembrar o que vivi enquanto estava internado. Se já existe um abismo entre o que vivemos e o que conseguimos expressar, pensei à época, devemos escolher o meio de expressão que nos permita tratar os temas com o maior nível de detalhamento possível.

Atente-se ao fato de que todas essas reflexões ocorreram em virtude de uma experiência de vida. “Qual a melhor forma para expressar o que vivi?” — essa pergunta soou por anos na minha cabeça.

3. Quais são as suas principais referências literárias e de que modo elas te auxiliaram na composição do livro?

    O primeiro livro que li após receber alta foi A Montanha Mágica. Sempre quis ler esse livro, o nome sempre me atraiu, lembro de passar um dia diante de uma livraria em Poços — que hoje não existe mais — e ver da calçada a pilha dos volumosos exemplares. O curioso é que nunca cheguei a ler o texto da orelha, como se o próprio nome me satisfizesse. E quando, nas primeiras páginas, descobri que o tema do romance era o tratamento de Hans Castorp contra a tuberculose, e que deveria permanecer internado num sanatório no alto da montanha, mal acreditei no que lia. Lembrei-me então de que, embora sempre tivesse interesse pelo livro, jamais havia procurado saber do que ele tratava. E até hoje não sei explicar o que senti ao me dar conta da proximidade do tema com a minha experiência no hospital. Talvez um dia consiga expressar o que vivi naquele momento solitário no quarto que ocupava na casa de meus pais.

    Quando estava no penúltimo ano da faculdade de engenharia, descobri Dostoiévski e Kafka, duas referências importantes. Pouco depois, comecei a ler Proust, Tolstói, Flaubert.

    Flaubert foi importante não apenas pelos romances, mas pela correspondência. Li os cinco volumes publicados pela Pléiade. Aquilo foi minha faculdade de escrita, não apenas no que tange à técnica, mas ao comportamento que um escritor deve assumir. Nas cartas, acompanhamos de perto as angústias, incertezas e dificuldades de alguém que dedicou toda a sua vida à literatura. Após ler as cartas, descobrimos que não há outra conduta possível a não ser escrever todos os dias. Flaubert sempre me vem à mente quando vejo escritores que não conseguem manter um cotidiano de escrita, que dizem escrever quando se sentem inspirados para contar uma história. Esses escritores conseguem, de fato, contar suas histórias. Mas elas são superficiais, um leitor atento percebe que não houve um tempo mínimo de convivência do escritor com seu tema. No fundo, não passam de sabotadores do ofício da escrita, e, em última instância, de si mesmos.

    Acredito que levo um pouco de cada um desses escritores que citei na minha escrita, mas não de forma consciente, pois isso acontece normalmente quando ainda não formamos nosso estilo. Lemos o romance de um determinado escritor, aquilo nos impacta e, quando nos voltamos para o nosso texto, a presença daquele estilo em nosso íntimo parece intrometer-se no que escrevemos. Leitores do meu livro já me disseram ouvir o eco de escritores consagrados, mas é uma presença sutil, que não impede a voz própria de existir. Leva tempo para isso acontecer.

    4. Em O labirinto do corpo determinados temas são retomados pelo narrador ao longo da história, como se o autor quisesse imitar as oscilações próprias da consciência humana, o que me fez lembrar, talvez não por acaso, a constituição de um labirinto. Tal efeito foi planejado?

    Não. Estou pensando nisso apenas porque você me contou sua percepção. O título do livro surgiu apenas quando cursei a mentoria com o professor Gurgel, em 2022. Como comecei a escrever o livro em 2013, o título surgiu tardiamente. A retomada dos temas por meio das lembranças do narrador é um recurso bem utilizado, não tive a intenção de produzir algum efeito de labirinto, mas, por fim, a impressão me parece ser válida. É difícil criar e ao mesmo tempo ter o controle sobre as possíveis interpretações da própria obra. Sinto-me recompensado quando recebo esse tipo de resposta dos leitores, pois descubro coisas novas a respeito do que escrevi.

    O primeiro significado de labirinto, no caso do livro, diz respeito à desorientação de Davi por conta das massas na barriga e a dificuldade de descobrir um diagnóstico. Mas percorrer um labirinto também é uma oportunidade de reflexão. E é justamente o que acontece com o protagonista quando relembra episódios do passado em busca de uma interpretação da usa trajetória.

    Pretendo dar à expressão labirinto do corpo outras interpretações no decorrer da publicação dos volumes.

    5. Na sua biblioteca há vários livros da Bibliothèque de la Pléiade, entre os quais À la recherche du temps perdu, obra máxima de Proust. De que modo o escritor francês foi importante para a sua formação?

      Proust é um autor central na minha vida. Com ele percebi que, para transmitir ao leitor uma ideia mais exata das mudanças nos personagens, precisamos escrever um romance mais extenso do que o habitual. Além disso, ele tem uma forma única de descrever as obras de arte no romance e como elas influenciam os pensamentos e comportamentos dos personagens, nem sempre no sentido positivo. Ele viveu numa época de muitas mudanças e acontecimentos (caso Dreyfus, Primeira Guerra Mundial, carros com motor à combustão), e, salvo algum engano da minha parte, ele conseguia escrever sem tomar partido, principalmente no que tange a questões políticas. Ele conseguiu traçar um painel admirável de sua época, o que só é possível quando se toma um certo distanciamento. É um grande aprendizado que tive ao ler seu romance imenso.

      6. Qual postura o aspirante a escritor deve adotar ao ler autores clássicos?

        A postura de quem quer realmente aprender a escrever. O mundo passou por milhares de transformações desde Homero, e se a obra dele chegou até nós, não foi por acaso. Sua obra foi lida e relida, analisada por críticos de diferentes épocas, com diferentes mentalidades; é importante ter isso em mente quando se abre um clássico.

        7. Você foi um dos primeiros alunos da Oficina de Escrita Criativa, ministrada pelo crítico literário Rodrigo Gurgel. Quais foram os principais conhecimentos assimilados e como eles foram importantes para a sua formação?

          Na Oficina, o professor Gurgel trata separadamente dos principais tópicos acerca da criação de um romance: criação de personagens, descrições de ambientes e objetos, diálogos, entre outros. Quando cursei a Oficina, já havia feito vários cursos com o professor Gurgel na internet: Bases da criação literária, Prática de leitura e formação de estilo, A descoberta do ensaio, um curso sobre a História da literatura ocidental, de Carpeaux. Portanto, a Oficina não foi a minha primeira oportunidade de estudar a escrita com ele.

          Quando cursei a Oficina já havia escrito cerca de sessenta páginas do meu romance. Lembro-me exatamente do dia em que conversei com o professor Gurgel sobre as primeiras dez páginas, que ele havia lido no fim do curso. Foi uma conversa via Skype. Deixei ao lado do computador uma folha em branco e a lapiseira para anotar tudo que estava errado e devia ser reescrito. Mas logo no início da conversa, quando ele percebeu que iria escrever alguma observação que ele tinha feito, ele me disse: “Não precisa escrever nada, seu texto é muito bom”.

          Ainda tivemos mais duas oportunidades de conversar sobre o livro. Numa segunda Oficina que cursei, em que apresentei as páginas seguintes do livro, e na Mentoria, em 2022, quando apresentei várias partes do segundo volume da trilogia.

          Estudo com o professor Gurgel há mais de dez anos. É até difícil listar tudo o que aprendi. Acho que o mais importante está nos primeiros cursos, via internet, quando fui apresentado a autores que desconhecia e deparei-me, nas aulas, com uma forma de enxergar a literatura que me era inédita e contribuiu para mudar minha forma de escrever.

          8. Você escreveu as primeiras cinquenta páginas do romance em primeira pessoa. Insatisfeito com o resultado, abandonou a primeira versão e começou a escrever em terceira pessoa. O que te fez mudar de perspectiva?

            É difícil explicar. O texto não soava bem, parecia concentrado em excesso na vida do protagonista e na maneira como ele interpretava os fatos. Isso me incomodava bastante, porque embora ele enfrente grandes dificuldades, eu tinha a necessidade de mostrar o impacto da doença em toda a família. Por isso a narrativa em primeira pessoa não me satisfazia. Quando mudei para terceira pessoa, o romance foi ampliado, porque consegui contar os dramas particulares de cada um dos personagens.

            9. Seu romance tem fortes traços autobiográficos. A consciência de um escritor se torna mais apurada à proporção que se esforça para dar forma literária a acontecimentos tão importantes?

              Sim. Se eu decidisse contar minha experiência a alguém num banco de praça, o resultado seria bem diferente do que consegui apresentar no romance. E como comecei a escrever o livro em 2013, tive tempo suficiente para pensar numa série de questões que um escritor comprometido com o modo industrial de produção de literatura não teria. Comprometer-se a publicar um livro a cada dois ou três anos pode significar a morte de um autor. E, no mundo das redes sociais, as pessoas querem estar sempre em evidência, e para os escritores isso pode significar publicar com uma frequência que não permite a convivência com as próprias ideias. Como uma criança, um texto também precisa dormir e descansar para crescer.

              Nesse sentido, é importante não apenas esforçar-se para dar forma literária a acontecimentos da própria vida, mas fazer isso sem a perspectiva de publicação. O texto existe a partir do momento em que é escrito, e não apenas quando é publicado.

              Ao tentarmos dar forma literária a acontecimentos biográficos, sentimos na pele o abismo que existe entre os fatos e o resultado no texto, e o esforço necessário para diminuir essa distância. E é uma experiência que está, em maior ou menor grau, ao alcance de todos os escritores, pois sempre levamos algo de nossas vidas para a ficção.

              10. O protagonista do seu romance é formado em engenharia mecânica. Em determinado momento da narrativa, deitado no leito após a cirurgia de biópsia das massas, ele lamenta a formação estritamente burocrática dos cursos superiores no Brasil. De que modo a ausência de uma formação que implica o desenvolvimento da imaginação moral do indivíduo pode afetar a cultura de um país?

                Vivemos num mundo de especialistas, ao menos no Brasil. E o agravante é que, para muitas pessoas, a especialidade virou sinônimo de cultura. Um médico ou engenheiro que nunca leram Dostoiévski acreditam ser cultos por conta de diplomas e de uma posição de destaque em virtude de sua profissão. Como não

                leem literatura — e em muitos casos a odeiam abertamente — o conjunto de referências se limita às experiências pessoais e histórias que testemunham ou ouvem de outras pessoas, as quais jamais terão a profundidade de um texto escrito por Tolstói ou Proust. Normalmente, são pessoas com quem conversamos apenas sobre temas do noticiário ou banalidades, pois, uma vez que não partilhamos dos conhecimentos especializados do nosso interlocutor, não sobra muito o que dizer. É a cultura que permite uma convivência mais profunda e proveitosa entre as pessoas, e sem ela cada um parece isolado em sua ilha particular, em sua especialidade, sem possibilidade de contatos próximos. Esse é outro tema abordado no romance. E no caso do Brasil, muitas vezes a pessoa não apenas despreza a cultura, mas tira sarro de quem a valoriza. Testemunhei esse tipo de comportamento durante toda a minha adolescência, seja entre os amigos, seja nos adultos.

                11. Assim como o protagonista, você também estudou música. De que modo a formação musical foi importante para você?

                  Foi um dos estudos mais importantes da minha vida. Os anos de dedicação à música me mostraram, quando comecei a escrever, que os conhecimentos estão mais entrelaçados do que imaginamos.

                  Em música aprendi a observar o tamanho das frases musicais, e como uma frase responde à anterior, a mudança dos movimentos de uma sinfonia, os pontos de tensão e repouso de uma peça musical, entre outras questões. Todos esses conhecimentos devem ser aplicados à prosa. Prosa é mudança, variação.

                  Um escritor que tenha o objetivo de escrever um texto apenas com frases curtas, ou fases longas, terá um resultado artificial. O que determina o tamanho de uma frase é a natureza daquilo que você tem a dizer. Se uma frase curta lhe basta, tudo bem. Se você precisa de mais palavras, sem problema.

                  O estilo que não revela a natureza do que deve ser dito é capenga.

                  12. Você tem horários fixos para escrever, e os segue religiosamente, fazendo da literatura o que aconselhava Benedetto Croce, ao dizer que o artista deve considerar a arte como uma missão e exercê-la como um sacerdócio. Como a disciplina se tornou um elemento fundamental na sua prática artística?

                    Na marra. Ninguém é disciplinado por natureza. A disciplina é uma conquista. O que impede muitas pessoas de serem disciplinadas é a crença de que a inspiração vem de repente, sem o nosso esforço. De fato, isso acontece. Mas a inspiração não vem apenas dessa forma, mas também durante o trabalho, quando escrevemos sem estarmos tomados por qualquer inspiração. A inspiração também surge em virtude do trabalho diário de escrita, quando nos debruçamos sobre o trabalho em busca de uma continuidade da história que escrevemos. A inspiração proveniente do trabalho metódico é um dos maiores presentes que o escritor pode receber, porque é justamente ela que o incentiva a manter sua disciplina. A inspiração gratuita, apenas, não é suficiente para escrever um livro.

                    13. Seu estilo, como diz o crítico literário Rodrigo Gurgel no prefácio, se opõe à estética literária predominante no Brasil, muitas vezes contaminada por ideologias e discursos autorreferentes. Como você avalia o cenário da literatura brasileira contemporânea?

                      A literatura brasileira contemporânea virou um apêndice da grande mídia. Temas relacionados a discussões de gênero, racismo, lutas de classe, tratados à exaustão na grande mídia, dando a impressão aos leitores de que são assuntos centrais na vida de qualquer brasileiro, agora são tratados na literatura, e, muitas vezes, com a mesma superficialidade dos textos produzidos nos jornais. Aliás, muitos são os autores da literatura nacional que escrevem nos jornais e se concentram, sempre, nos mesmos temas em ambos os meios, como se a vida estivesse reduzida a quatro ou cinco tópicos que eles os únicos dignos de interesse.

                      Recentemente li a notícia de que o cinema nacional é responsável pela venda de apenas 5% dos ingressos nos cinemas. Isso acontece porque o cinema nacional se concentrou em apenas alguns temas — quantos filmes a respeito da ditadura militar já foram feitos? —, deixando de lado a multiplicidade das experiências humanas. A literatura brasileira está seguindo o mesmo caminho.

                      14. Em que momento do seu processo criativo você se deu conta de que havia conquistado um estilo literário?

                      Não sei se um escritor é capaz de identificar exatamente o momento em que conseguiu criar um estilo. Como sempre digo, um estilo não é um produto de luxo que você compra na loja, mas uma conquista que leva tempo. E acredito que, quanto mais o escritor busca um estilo no ato da escrita, mais ele se afasta do seu objetivo. No ato da escrita, o escritor deve se concentrar na história que pretende contar, e não no estilo, porque se isso acontecer, já existirá dentro dele uma divisão da atenção, ele não saberá, em diversos momentos, se deve se concentrar na história ou na construção de um estilo. O escritor deve, sim, ter em mente que precisa construir seu estilo, mas é apenas a rotina de escrita, sem que essa preocupação esteja em primeiro plano, que lhe permitirá conquistá-lo.

                      15. Na sua opinião, o que é mais importante para o escritor brasileiro atualmente?

                        Escrever sem pensar em publicar. Se a obra de um escritor não se enquadra nas temáticas tratadas pela grande mídia, o número de editoras disponíveis é reduzido, talvez não passem de duas ou três. Se o escritor se concentrar nesses aspectos negativos e tiver grande necessidade de publicar, irá se frustrar. Como disse, um livro nasce quando é escrito, e não apenas quando é publicado. Se o trabalho da escrita é realmente importante e ele o exerce como um sacerdócio, como diz Benedetto Croce, a dificuldade de publicação não o desanimará. Comecei a escrever meu livro em 2013, e publiquei o primeiro volume da trilogia em 2024. Comecei a pensar numa publicação apenas quando cursei a Mentoria com o professor Gurgel, em 2022. Esse livro é o trabalho de uma vida, ainda

                        não concluído. Meu objetivo não é estar em evidência agora, mas criar uma obra que permaneça no tempo.

                        16. Quais são seus autores prediletos em língua portuguesa?

                        Drummond, Bandeira e Fernando Pessoa.

                        17. O primeiro volume da trilogia foi escrito em cinco anos. O mesmo ritmo de escrita se estendeu ao segundo volume. Foram, até agora, dez anos dedicados à produção do romance. Quais foram as principais dúvidas que você enfrentou ao se dedicar por tanto tempo a uma mesma obra?

                          O romance tem uma forte carga autobiográfica. Portanto, de início tinha um roteiro seguro a seguir. No entanto, com o passar do tempo acrescentei vários elementos puramente ficcionais à história, em especial quando percebi que a obra poderia ser dividida em volumes. Nesse momento, tratei de forma paralela as questões particulares do protagonista e os temas de ordem pública, mostrando como os personagens reagiam ao que ocorria no país. Esse tratamento é pouco perceptível no primeiro volume, mas torna-se evidente nos volumes seguintes.

                          Mas só cheguei a esse entendimento cinco anos após o início da escrita. Se fosse um escritor voltado para o mercado, a história seria apenas sobre um jovem que descobre ter uma doença grave e pronto. Romances divididos em volumes não são escritos no Brasil porque os escritores estão interessados em construir uma carreira literária.

                          18. Como você enxerga a atividade literária?

                          A atividade literária é um trabalho solitário, e talvez a maior angústia para quem começa é não existir ninguém ao redor para ler com atenção o que escrevemos. Mas com o passar do tempo essa angústia diminui, até acabar. A própria experiência da escrita cotidiana nos traz, aos poucos, a confiança. Lembro do dia em que conversei com o professor Gurgel pela primeira vez, em 2014, sobre as páginas iniciais do romance O labirinto do corpo. Foi uma mudança radical, pois tive confirmação de que estava no caminho correto.

                          Outra questão importante é não se apegar a grupinhos literários, grupos de WhatsApp de escritores. Esses grupos corroem o talento do escritor, porque o comportamento do grupo é sempre no sentido de manter a unidade, e, para isso, uns elogiam os outros, sem levar em conta a qualidade da produção literária de cada um. E, preso naquele grupo, sendo elogiado a todo momento, o escritor tem a falsa ideia de que é bom. Há pouco tempo li uma entrevista de um escritor em que ele disse que o futuro da literatura brasileira estava num grupo do WhatsApp ao qual ele pertence. Imagine o tamanho do Brasil e quantas pessoas hoje produzem literatura. Compreende como esses grupinhos de escritores deixam as pessoas cegas?

                          19. Qual é a principal função da literatura?

                            Talvez seja mostrar como as vidas são diferentes umas das outras, como as pessoas são diferentes. Acredito que a literatura é o meio mais eficiente de mostrar as inúmeras possibilidades da existência humana.

                            A literatura é uma ponte entre a realidade e o leitor. Vivemos apenas uma vida, a nossa. E das vidas das pessoas ao nosso redor, em geral conhecemos apenas seu aspecto exterior, por meio da convivência. Nunca conhecemos a vida de outras pessoas em profundidade como conhecemos a nossa. É a literatura que nos permite, por meio das informações que o escritor partilha a respeito do íntimo dos personagens, conhecer outras vidas em profundidade. A obra literária, portanto, é o meio pelo qual conhecemos novos mundos, com os quais jamais teríamos contato a partir de nossas próprias vidas.

                            20. Você é um escritor bastante ativo no Instagram, publicando stories em que compartilha suas leituras e os momentos em que começa a escrever, além de interagir com os leitores por meio da caixa de perguntas. Como você enxerga a relação do escritor com o público por meio das redes sociais?

                              As redes sociais têm muitos aspectos positivos, e, para os escritores, ampliou as possibilidades de contato com os leitores. Antes os escritores ficavam isolados e só apareciam quando lançavam um livro novo. Mas agora há a possibilidade de partilhar com os leitores o trabalho diário, as pesquisas, as referências literárias e as descobertas. Por conta das redes sociais, boa parte dos leitores entendem melhor o que é ser escritor.

                              21. Para Louis Lavelle, as únicas obras que têm grandeza são as que contêm em si a experiência e o labor de uma vida. Você concorda?

                                Lembro de que uma insatisfação constante na época em que me dediquei a escrever canções foi que os temas das músicas eram distantes da minha experiência, e, embora fossem histórias até curiosas, me pareciam banais. Sentia a necessidade de tratar de temas mais próximos da minha vida, mas não sabia ao certo o que fazer, porque era muito jovem e ainda não possuía uma experiência de vida bem consolidada. Isso foi antes de morar seis meses no hospital. Nesse sentido, o câncer salvou a minha vida, pois foi a partir dessa experiência que descobri a minha vocação e comecei a me dedicar à literatura, pois encontrei o meu tema. E, contando essa história de forma romanceada, comecei a incluir outros assuntos no livro até transformá-lo numa trilogia. Pretendo escrever outros livros, mas O labirinto do corpo é, certamente, o romance da minha vida, principalmente por não ter nascido de um simples desejo de tornar-me escritor, mas por eu ter sido conduzido pelas minhas experiências à literatura.

                                22. O que o leitor pode esperar dos próximos volumes da trilogia?

                                  No primeiro volume iniciei vários temas e citei alguns personagens que serão trabalhados nos próximos volumes. Os leitores atentos perceberão isso.

                                  Embora a história do romance aconteça em 2005, no segundo volume, por exemplo, trato de um momento anterior da vida do protagonista, em 2002, que lhe permitiu uma mudança completa de perspectiva em relação à música. Esse

                                  tema é sinalizado no primeiro volume, mas, como disse, apenas os leitores mais atentos o perceberão.

                                  23. Pensa em escrever outros romances?

                                  Sim, claro. Mas ainda não tenho nenhuma ideia de romance. Vou começar a pensar nisso quando terminar a trilogia.

                                  Mas quero aproveitar a pergunta para desenvolver uma reflexão. A nossa época, o início do século XXI, é rica em acontecimentos, tanto do ponto de vista nacional quanto mundial. Na verdade, somos atropelados pelos acontecimentos, pois não conseguimos compreender tantas transformações. Quantas mudanças de comportamento são impostas pela grande mídia, e qual o resultado na vida de cada um? Certas observações que costumávamos fazer a respeito de determinados temas na década de noventa, por exemplo, são praticamente proibidas hoje. As pessoas, em geral, absorveram essas mudanças que vêm de cima, que não são fruto de uma mudança natural de mentalidade da população, e se tornaram censores de quem manifesta os mesmos pensamentos que elas defendiam há vinte anos. E isso aconteceu em várias frentes, como saúde, questões de gênero, família, escola, educação dos filhos, entre outros. Há vinte anos ninguém se sentia culpado por ser branco.

                                  Hoje, a censura praticada pelo Estado está em destaque, mas as pessoas se esquecem da censura presente no próprio corpo da sociedade. Percebo que os romancistas não conseguem dar conta de tantas novidades. Quantos romances lançados recentemente tratam dos temas que acabei de citar?

                                  24. O que você está lendo?

                                    A informação, de Martin Amis.

                                    26. Qual conselho você daria a um escritor iniciante?

                                      Escreva sem pensar em publicar. Crie um cotidiano de escrita e siga-o o máximo que puder. Não acredite em quem diz que escreve de vez em quando. Eles não são escritores, mas apenas enganam a si mesmos. As obras que permaneceram no tempo são de escritores que não tiveram esse tipo de comportamento. Observe as vidas de Flaubert, Hemingway, Proust e outros grandes escritores e não se deixe levar pelos enganadores do momento que, amanhã, serão meros desconhecidos.

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                                      Questionário de Proust

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                                      Qual é, para você, o cúmulo da miséria moral?

                                      Não ter coragem de enfrentar os desafios que a vida nos apresenta.

                                      Onde gostaria de viver?

                                      Sul da França.

                                      O seu ideal de felicidade terrestre?

                                      Conseguir escrever todos os dias.

                                      Qual falta lhe inspira mais indulgência?

                                      Soberba.

                                      O seu pintor favorito?

                                      Gustave Caillebotte.

                                      O seu músico favorito?

                                      Rachmaninoff

                                      O seu filme preferido?

                                      Alemanha, ano zero.

                                      Quem gostaria de ter sido?

                                      Ninguém além de mim mesmo.

                                      O principal atributo do seu caráter?

                                      Perseverança.

                                      Que mais deseja aos seus amigos?

                                      Que cuidem da própria vida.

                                      O seu principal defeito?

                                      Ser duro demais com as pessoas.

                                      O seu sonho de felicidade?

                                      Conseguir escrever bons livros.

                                      Qual a maior das desgraças?

                                      Ser um escravo da vida social.

                                      O seu poeta preferido?

                                      Fernando Pessoa.

                                      O seu personagem predileto?

                                      Frédéric Moreau.

                                      O seu herói da vida real?

                                      Meus pais.

                                      O que mais detesta no homem?

                                      Mentira.

                                      Personagem histórico que mais abomina?

                                      Stálin.

                                      A reforma política que mais ambicionaria no mundo?

                                      Nenhuma.

                                      Como desejaria morrer?

                                      Dormindo.

                                      Estado presente do seu espírito?

                                      Em busca da perfeição inatingível.

                                      Daniel Laier. O labirinto do corpo: As massas, vol.I. Campinas: Sétimo Selo, 2024.