*Entrevista concedida por e-mail a Gabriel Coelho Teixeira*
Alexei Bueno nasceu em 1963, no Rio de Janeiro. É poeta, crítico, ensaísta, tradutor e editor. Publicou recentemente sua “Poesia Completa e Traduzida” (G. Ermakoff Casa Editorial, 2023). Como editor, foi responsável, entre outros tantos trabalhos, pela publicação da “Obra Completa de Augusto dos Anjos” (Nova Aguilar, 1994) e de uma edição comentada de “Os Lusíadas” (Nova Fronteira, 2018).
1. Com que idade e como começou a trabalhar com livros?
Trabalhar com livros, no sentido estrito, aos 25 anos, em 1988, quando ajudei a montar e dirigi uma livraria-antiquária no Rio de Janeiro, a Livraria Universal — o adjetivo ainda não tinha a pesada carga neopentecostal que se consolidou mais tarde —, livraria que, aliás, era vizinha, parede com parede, da Livraria Kosmos, a melhor que existiu no Rio, na Rua do Rosário, com filial em São Paulo. Eu já era então um razoável bibliófilo, e havia publicado meu primeiro livro, obra imatura, aos 16 anos, em 1979. Mas no exato sentido do verbo trabalhar, aos 25.
2. Como adentrou no mercado editorial e quais foram seus primeiros trabalhos?
A origem de tudo é literária, o resto são epifenômenos, embora a minha paixão pelo livro como objeto — coisa independente da paixão de leitor — tenha sido precoce e muito forte. Em 1992 a Nova Fronteira publicou o meu primeiro livro lançado sob um selo de grande editora. No ano seguinte, por contato direto com os proprietários, fui convidado a trabalhar lá, convite aceito imediatamente. Fiz, rigorosamente, de tudo, todas as incontáveis funções necessárias ao aparecimento de um livro, da fixação de texto até a sugestão de títulos, e até mesmo, algumas vezes, traduções, o que não é comum no interior de uma equipe editorial, mas justamente essa variedade me parecia muito interessante. É inviável selecionar títulos, muita coisa.
3.Em que período se sentiu mais plenamente realizado?
Como disse, sou escritor, o trabalho editorial foi coisa paralela e consequente. Aliás, como escritor é termo muito vago, e embora eu tenha publicado numerosos títulos como crítico e ensaísta, além de obras de História — ficção jamais, não sou ficcionista, tenho uma peça de teatro, que é outra coisa —, eu sou primordialmente poeta, visceralmente, é uma relação quase religiosa, logo, o que me realiza ou não é o que escrevi ou deixei de escrever como poeta, qualquer vida profissional vem depois. Sob tal aspecto, poderia lembrar, lançando mão de um exemplo muito prestigioso, o de T. S. Eliot, que trabalhou 40 anos na editora Faber & Faber, mas o que importa na vida do Eliot é a sua poesia. Editorialmente, e de longe, o período em que mais me senti realizado foi o da Nova Aguilar, que estava basicamente em dormência, então esse momento do seu retorno à atividade foi extraordinário, uma coisa de causar entusiasmo, e lá trabalhei com uma
liberdade muito grande, na verdade um entendimento com os seus proprietários que fluía naturalmente, o que é coisa bastante rara. Entre muitas edições importantes, que me davam a impressão de que estávamos realizando algo de enriquecedor para o país, a mais importante para mim foi a exaustiva edição crítica da Obra completa do Augusto dos Anjos, poeta sem paralelo e sempre pessimamente editado, e pessimamente compreendido, uma obra eivada de erros textuais, com dezenas de peças não canônicas destituídas de cronologia e do todo o resto, um verdadeiro horror, que foi plenamente sanado através de um trabalho hercúleo e de um imenso aparato crítico. Nunca deixei de trabalhar nessa edição, há 29 anos eu a amplio e atualizo no arquivo virtual. A “bibliografia”, por exemplo, mais do que dobrou de extensão em tal período.
4. Por falar no seu trabalho como poeta, recentemente saiu pela G. Ermakoff sua poesia completa. Como foi revisitar e reavaliar toda a sua produção poética para montar essa edição da Poesia completa e traduzida?
Já havia feito isso anteriormente, reunindo, o que é claro, menos títulos, e tendo como resultado um livro bem menor do que esse pesado calhamaço de 1.056 páginas. São 19 livros de poesia mais os poemas traduzidos, que foram publicados originalmente em edição bilíngue, como é o ideal, o que não aconteceu agora, pois inviabilizaria o livro. É uma edição comemorativa, pequena e fora do comércio, só para amigos e bibliotecas. O que sempre me fascinou na possibilidade de reeditar é levar o texto a um estado definitivo, ne varietur, o que creio ter conseguido. O famoso aforismo que afirma que não há livro sem erro não é verdadeiro, mas está muito perto da verdade. Fora a correção das gralhas, existe o aperfeiçoamento de determinados poemas. Há poemas que escrevi e nos quais nunca mexi numa vírgula, mas há outros nos quais um só verso, ou parte de um deles, me incomodaram por anos, por décadas, pois o que eu queria não era exatamente aquilo. Quando este momento é alcançado, o momento do apaziguamento estético, como digo, é uma maravilha para o autor. Aquilo definitivamente independe dele, é uma coisa externa, passa a existir por si, livre das suas pobres contingências, das suas vicissitudes, da sua miséria.
4. Você trabalhou na obra História das ruas do Rio, de Brasil Gerson, também escreveu um pequeno livro sobre a Gamboa, bairro da zona portuária do Rio de Janeiro, possui alguns poemas sobre a cidade, como o “Lapa”. A cidade do Rio de Janeiro, em seu aspecto histórico, literário e arquitetônico, é alvo de interesse especial da sua parte?
Sim, profundamente, sou carioca, apesar de ser o primeiro carioca da família, e, entre outras paixões minhas, duas das mais fortes são pela História e pela arquitetura, duas coisas que se fundem numa cidade. Desde a infância frequentei muito o Centro, que, como em quase todas as partes, reúne o que há de mais valioso em determinada urbe, e sempre
sob o fascínio do seu passado e de sua arquitetura, que se revelam juntos. Sou um bom conhecedor de história carioca, de arquitetura no sentido mais largo, e muito especialmente da questão do patrimônio histórico no Brasil, suas grandezas e misérias, hoje muito mais misérias do que grandezas, especialmente no Rio, cidade que está sendo pilhada e demolida, ou perto disso. Foi por tais características, sem dúvida, que fui convidado para ser diretor-geral do INEPAC, o Instituo Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, cargo que exerci entre 1999 e 2002, e muito me orgulho do que pude lá fazer, apesar do trabalho pesado e das carências de sempre. A situação do patrimônio edificado nesta cidade degradada e conflagrada em que se transformou o Rio é coisa para chorar. Fazendo um recorte mínimo, e de forma aleatória, vejam o estado em estão as fontes e chafarizes coloniais e imperiais do Rio. São ruínas, invariavelmente sem água. Passar com frequência diante da fonte do Passeio Público, de onde até os balaústres de ferro que a ladeavam foram arrancados a marreta, e não ver a figura do anjinho do Mestre Valentim, segurando a cartela “Sou útil inda brincado”, chega a ser inacreditável. Há anos e anos não está lá, e a cidade tem prefeito… Tudo aqui parece normal, ou fica normal, por mais absurdo que seja.
5. Você comentou que aos 25 anos já era um “razoável bibliófilo”. Há casos, para nos restringirmos ao âmbito nacional, de bibliófilos cujas bibliotecas pessoais ficaram como legados para a cultura nacional, como José Mindlin. O bibliófilo é uma figura importante para o cenário cultural de uma nação?
Sim, evidentemente, graças a eles — e creio ter conhecido quase todos os meus contemporâneos no Brasil — coisas de transcendente importância escapam da desaparição, comumente graças a uma prontidão e eficiência muito raras no poder público, ou mesmo impossíveis. Em tese, é uma atividade que exigiria uma situação financeira muito confortável, coisa que nunca tive, mas a dedicação, um interesse um tanto obsessivo, conseguem fazer milagres. Reuni uma biblioteca enorme, e muito variada, pois sempre tive interesses muito variados. No meio dessa biblioteca de leitura — que é a que mais importa —, reuni, através das décadas, algumas notáveis primeiras edições, manuscritos, autógrafos literários ou outros, do século XV até a atualidade. Há um momento em que essas coisas passam a ser um peso, pois a vida é curta, e aí começa o trabalho inglório de dar um destino a elas.
6. Quais os principais problemas que você identifica tanto no mercado editorial brasileiro quanto no público leitor?
O problema do mercado editorial brasileiro é o da carência cultural do Brasil, ou seja, do povo, além dos eternos e muito conhecidos problemas de distribuição e de pontos de venda, agravados — até certo ponto — pela extensão territorial. Somos um povo apoteoticamente ignorante, às vezes isto me impressiona. Sou relativamente viajado, e assisto a certos espetáculos de ignorância no Brasil que, com franqueza, são assustadores, e limito minhas comparações ao Terceiro Mundo. Não adianta lembrar que demos Gonçalves Dias e Guimarães Rosa, o Aleijadinho e Cruz e Sousa, Castro Alves e Villa- Lobos, Machado de Assis e Glauber Rocha, Drummond e Oscar Niemeyer, Guignard e Cecília Meireles, etc. etc. O espírito sopra onde e quando quer, e, como Baudelaire afirmava, todas as nações produzem seus grandes homens a contragosto.
Não é só uma questão de educação, uma educação que busca estritamente criar especialistas e gerar empregos pode conseguir essas duas coisas, mas cultura é uma terceira, e não me refiro a “cultura” no sentido antropológico, evidentemente. O Brasil sofre de um verdadeiro câncer mental, profundamente arraigado, que é o “bacharelismo”, e ele só parece piorar. Há cartas e anotações do Unamuno — que deu o nome a esta revista—, na década de 1890, nas quais percebemos o seu quase desespero ao constatar para onde o “bacharelismo” estava levando a Espanha. O português popular que domina o Brasil de hoje é uma tragédia, é quase um dialeto. Quando qualquer noção de regência desaparece, quando milhões de pessoas escrevem “ele mim disse”, “eu curtir a festa”, “vamos acaba com isso”, a situação é muito grave, não é possível raciocinar corretamente com um instrumento de tal maneira degradado. Nem falarei sobre a crase, pois aí é caso perdido.
7. Hoje você ainda desenvolve trabalhos editoriais? No que está trabalhando atualmente?
Acabei, muito recentemente, uma pequena bibliografia, coisa muito específica e minha única incursão no gênero, e estou para fechar uma biografia — na verdade, é mais uma história familiar — de um fascinante personagem da passagem do século XIX para o XX, que ninguém conhecia. Fora isso, corrigi e ampliei, este ano, meu livro Uma história da poesia brasileira, que saiu em 2007 e estava esgotado. Foi uma remodelação em regra, de livro muito vasto, mas creio que cheguei bem perto do meu objetivo. Também tenho para sair, com uma importante editora de São Paulo, um livro de que gosto muitíssimo, e que se chama Cinema: cinco ensaios. Espero que apareça em 2024.
8. Quais projetos editoriais você gostaria de ter realizado, mas não surgiu oportunidade de concretizar?
Na época da Nova Aguilar lamento não ter conseguido organizar e publicar uma Obra completa do Raul Pompeia. O conjunto da sua obra foi reunido em trabalho meritório pelo Afrânio Coutinho, mas com problemas, especialmente no décimo e último volume. Apesar do meu fascínio pelo escritor, e inclusive pelo homem, reconheço que O Ateneu, romance genial, é superior a tudo o mais que ele escreveu, mesmo coisas de altíssimo nível, mas seria um autor perfeito para uma obra completa no formato e na proposta da Nova Aguilar. A mesma coisa com o Fagundes Varela. Infelizmente, não se concretizaram. Creio que todos os países precisam ter uma coleção de clássicos nesse molde, como a Pléiade, na França — exemplo insuperável —, a Aguilar de Madrid, primeira inspiração para a brasileira, a Lello em Portugal, ou as edições da Mondadori, na Itália, entre outras. Infelizmente, o formato da Nova Aguilar — papel-bíblia, capa dura de couro, etc. — foi desfeito. É destruir, na minha opinião, o maior valor de uma marca — coisa típica do Brasil —, acabar com algo de longa tradição e de imediato reconhecimento, como a caixa de Maizena ou a garrafa de Coca-Cola.
9. Após toda uma vida trabalhando com livros, você se sente plenamente realizado?
Não creio que ninguém se sinta plenamente realizado, é da natureza humana, e do que há de melhor nela. Nem Bach e nem Beethoven dever ter sentido uma plena realização, e acho que dei os exemplos mais radicais. Como dizia a personagem de Dadá, em Deus e o Diabo na Terra do Sol: “Aquela paz a gente só encontra na morte”.
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Parte 2: Questionário de Proust
– Qual é, para você, o cúmulo da miséria moral?
A subserviência.
– Onde gostaria de viver?
Em Paris.
– O seu ideal de felicidade terrestre?
Ter muito dinheiro para não pensar nele, coisa que jamais me ocorreu, saúde para me dedicar exclusivamente às coisas que me interessam, e estar apaixonado por uma mulher, com reciprocidade.
– Qual falta lhe inspira mais indulgência?
A concupiscência carnal, a libertinagem, ou que nome tenha.
– O seu pintor favorito?
Um não dá. Caravaggio, Velázquez e Van Gogh.
– O seu músico favorito?
Também não dá para citar um só. Bach e Beethoven.
– O seu filme preferido?
Idem. Couraçado Potiônkim, de Eisenstein, 1925, e Mãe, de Pudóvkin, 1926.
– Quem gostaria de ter sido?
Não me passa pela cabeça ser outra pessoa. Mas gostaria de ter sido Victor Hugo, não fosse a perda dos filhos.
– O principal atributo do seu caráter?
Convicção no que creio.
– Que mais deseja aos seus amigos?
O melhor, obviamente.
– O seu principal defeito?
São inúmeros. Uma tristeza metafísica abissal, que me leva a uma espécie de piedade cósmica.
– Qual a maior das desgraças?
Ter nascido.
– O seu poeta preferido?
Homero.
– O seu personagem predileto?
Odisseu, ou Ulisses, como queiram.
– O seu herói da vida real?
Mustafá Kemal Atatürk.
– Personagem histórico que mais abomina?
Irrespondível, não dá, é gente demais.
– A reforma política que mais ambicionaria no mundo?
O fim de todas as formas de imperialismo e colonialismo, com as suas ingerências na realidade cultural e material dos povos.
– O dom da natureza que mais gostaria de possuir?
O que é exatamente “dom da natureza”? Gostaria de estar mais próximo da música. Tenho excelente ouvido, mas desde criança pedi, em vão, para estudar música. Não sei tocar nem reco-reco.
– Como desejaria morrer?
Dormindo, creio não haver novidade nisso, ou na frente de uma carga de cavalaria, coisa que não existe mais, que eu saiba.
– Estado presente do seu espírito?
Angústia, hoje e sempre.
– A sua divisa?
Nunca a encontrei.