-Textos selecionados, traduzidos e comentados por João Pinheiro Silva
I. Introdução – por João Pinheiro Silva
Pedir conselhos de escrita a escritores é como pedir dicas de nutrição a nutricionistas: descobrimos, num dia, que o ovo aumenta o colesterol, no outro, que o cura; ora que o sal rosa do Himalaia reduz a pressão arterial, ora que todo sal é igual; aqui, que a carne vermelha faz mal, ali, que o segredo é comer apenas carne vermelha.
Longe de mim, claro, reduzir a nobre arte literária às diatribes de uma reles ciência. Na verdade, enquanto tais incongruências são, para os nutricionistas, razão de alarme, no caso da literatura, semelhante ausência de consenso demonstra apenas a sua vitalidade. Há um certo filistinismo subjacente às tentativas de tornar a escrita uma ciência exata, com um método próprio e regras bem delineadas. Nada melhor do que ouvir de um Colm Tóibín algo como “termine tudo o que começar”, e, depois, de um John Steinbeck, “abandone a ideia de que sequer irá terminar”; ou a máxima democrática de V.S. Naipaul, “uma sentença não deve ter mais do que dez ou doze palavras”, ser contraposta pelo pernosticismo de Martin Amis, “tente não escrever frases que absolutamente qualquer um poderia escrever”. Todos emitiram tais máximas como regras, certo, mas duvido que algum deles – sensatos que são – as pensasse como leis científicas universais, aplicáveis em qualquer contexto, para qualquer fim desejado, com resultados previsivelmente galantes. É bem mais provável que, se forçados a justificar o seu dito, se resignassem à própria experiência, ao gosto pessoal, à intuição, prontamente reconhecendo a possibilidade de criar grandes obras violando o princípio que tão prontamente enunciaram.
Isto porque a real tarefa da escrita sempre foi, e sempre será, apenas uma: expressar o mais fielmente possível uma alma. Um fim que, vale notar, sempre justifica os meios. Se a expressão genuína de uma alma se dá através de frases curtas, sóbrias e despidas, ou através de frases longas, complexas e ornadas, pouco importa. Seria um desserviço esperar de um homem insipidamente vigoroso como Hemingway uma escrita enfeitada e barroca; tal como o seria esperar que Proust, nas suas introspeções labirínticas, se subordinasse ao laconismo.
A própria ideia de estilo denota essa nuance. O estilo emerge quando um autor se expressa com tamanha transparência que a linha entre o intencionado e o conseguido se dissolve por completo. O estilo é, portanto, o produto de uma expressão necessariamente individual e sui generis. Nesse sentido, a ideia de um manual de estilo torna-se ridícula. O máximo que um manual pode oferecer, além de normas gramaticais e ortográficas, é uma série de métodos que permitem educar a técnica ao ponto de facilitar a expressão de uma intenção; jamais ditar essa intenção.
Mas é exatamente isso o que vários manuais de estilo e oficinas de escrita arrogam para si mesmos: não apenas oferecer uma panóplia de técnicas que podem facilitar a expressão de um estilo, mas as leis universais do que constitui o bem escrever e às quais qualquer forma de expressão se deve subjugar. Mais do que um atrofio da escrita, tais constituem um atrofio do espírito humano, não só porque o limitam, mas porque o limitam da forma mais inimaginavelmente reles.
A “clareza”, a “concisão” e a “simplicidade”, tantas vezes louvadas nesses meios, quando tomadas não como convenções, mas como decretos divinos, impossibilitam não só a expressão genuína de um estilo próprio, mas também que qualquer outro estilo que não se coadune a esses moldes seja sequer considerado, quiçá compreendido. A escrita é reduzida às suas dimensões mais grosseiras, numa espécie de “copywrightização” do ofício, e todo o texto se torna uma forma de redação escolar, com os seus lugares-comuns e “gatilhos persuasivos” indissociáveis das produções de uma inteligência artificial anêmica.
Recuperar um senso mais amplo de boa escrita é, portanto, mais do que um mero desvario aristocrático, é a escolha moral do distintamente humano, do estilo na sua verdadeira acepção. Isso se tornará ainda mais claro quando lermos os dois textos reproduzidos a seguir. O primeiro, de Ed Simon, é uma espécie de manifesto em defesa da frase longa, que se insurge diretamente contra os vários manuais de estilo e a visão limitada do bem escrever que oferecem. Já o segundo, do magnífico David Bentley Hart, é ele mesmo uma espécie de “manual” ou “guia” de estilo. Contudo, como se notará, as 33 regras propostas por Hart são, na verdade, “anti-regras”, uma denúncia dos vários absurdos tão comumente papagueados nestas discussões. Em ambos os casos, cortei as partes excessivamente idiomáticas e tentei deixar o texto o mais relevante possível para os leitores de língua portuguesa.
Seguem os textos, por uma escrita mais nutritiva:
II. Barroca, Púrpura e Bela: Em Louvor à Frase Longa e Complicada – por Ed Simon
A pedra de um metro de altura que se tornou conhecida como Estela de Mesa (ou Pedra Moabita), com o seu basalto negro e suave esculpido cerca de dezesseis séculos antes de ter sido desenterrada da densa areia vermelha de Díbon, na Jordânia em 1868, é indiscutivelmente mais importante pelo que surge na conclusão de todas as suas frases: um ponto final. “Eu sou Mesa, filho de Quemós”, diz a inscrição, “Rei de Moabe”.
Hoje exposta no Louvre, recomposta após ter sido estilhaçada por um grupo de Beduínos num protesto contra a ocupação Otomana, qualquer visitante pode ver o característico ponto no final de cada palavra da inscrição. Ainda que o escriba anônimo que cinzelou essa mensagem, nove séculos antes da Era Comum, tenha usado o ponto final de uma maneira que hoje consideraríamos idiossincrática – a pontuação separando cada palavra individualmente em vez de encerrar unidades sintáticas – é ainda clara e obviamente o mesmo sinal de pontuação que se encontra no final desta frase. A Estela de Mesa é, assim, o mais antigo exemplo de escrita a conter sinais de pontuação. No caso, o ponto final moabita era usado para interromper a forma de escrita arcaica denominada scripto continua, naqualpalavraseramaglutinadasdeumamaneiracomplicadadeler.
A profundidade é muitas vezes filha da conveniência. Embora esse simples sinal de pontuação tivesse praticamente o mesmo propósito que todos os seus descendentes – vírgulas, ponto-e-vírgulas, os meus amados travessões –, a saber, tornar o sentido da leitura mais simples, trazia consigo também uma série de efeitos secundários. Com a pontuação, um senso do ritmo da linguagem pode ser transmitido, uma arte, um lirismo, uma poesia. Aliás, tal como a distinção entre o dia e a noite cria ambos, o primeiro ponto final criou a primeira frase. Uma. Frase. Muito. Diferente. Das. Que. Lemos. Hoje.
Ao contrário da frase algo morosa e labiríntica com que comecei este ensaio, todas as frases da Estela de Mesa são, por definição, nada mais que uma palavra; e fossemos nós subscrever aos ditames dos especialistas em estilo contemporâneos, que não passam de partidários da parcimônia, talvez as frases mono-palávricas da Estela de Mesa sejam preferíveis. Mas eu não acredito nisso.
Numa frase longa – oração sob oração, as vírgulas e ponto-e-vírgulas, travessões e dois-pontos, parêntesis e apostos a acumular-se – pode haver um verdadeiro enredo de imagens, um labirinto de conotações, uma profusão de conceitos; a frase barroca e púrpura é simultaneamente um arquivo da consciência no seu estado mais cafeinado e um sonho de novos mundos criados apenas pelas palavras. Sem dúvida, o exemplo de frase longa com que comecei este parágrafo não agradará a todos os leitores, o que é compreensível, mas àqueles que consideram inviolavelmente que a única boa frase é a frase curta, tenho o prazer de oferecer uma interjeição composta de apenas duas palavras, a primeira um verbo com pronome enclítico e a segunda um impropério escatológico.
Podemos rastrear a tirania das frases curtas numa série de manuais de estilo que há muito se proliferam nas salas de redação e gabinetes de editores. George Orwell, no seu ensaio “Politics and the English Language”, propõe entre os seus mandamentos a injunção de que “se for possível cortar uma palavra, corte-a sempre.” Por sua vez, o jornalista William Zinsser, no seu clássico “Writing Well: An Informal Guide to Writing Nonfiction”, sugere que “o segredo da boa escrita é despir cada frase até deixá-la apenas com os seus componentes essenciais. Toda palavra que não serve a uma função, toda palavra longa que poderia ser substituída por uma palavra curta, todo advérbio que carrega um significado já presente no verbo, toda construção em voz passiva… são estes os mil e um adulterantes que enfraquecem uma frase.”
Por último, o aparentemente mais icônico, canônico e até bíblico dos guias de estilo – The Elements of Style de E. B. White e William Strunk, claro – exige que uma “frase não deve conter palavras desnecessárias”. Eu sugeriria que Orwell, Zinsser, Strunk e White – todos grandes autores – não só estão enlevados por uma definição arbitrária de bom estilo que consiste em dizer muito com pouco, mas que são criaturas do seu tempo, acorrentados às condições materiais das margens de papel e alérgicos a tudo o que pareça demasiado afetado, demasiado rococó, demasiado estético, demasiado afeminado.
Os modernistas de Grub Street, que revolucionaram a literatura de acordo com as restrições do jornalismo, tendiam a dar conselhos de estilo que eram reveladoramente violentos – recorde-se o chavão de F. Scott Fitzgerald sobre a edição ser um assassinato de entes queridos. Jaz nisto, evidentemente, uma elisão do que os diferentes tipos de escrita tentam fazer. Quando Orwell diz que temos de cortar uma palavra sempre que possível, quando Zinsser diz que temos de despir a frase e valorizar a função acima de tudo, quando Strunk e White exigem que todas as palavras sejam necessárias, incorrem numa discussão filosófica sobre o que importa e o que não importa.
Para os autores de tais guias de estilo, a boa composição é um exercício de literalidade, de simplicidade, de utilitarismo. Existem certamente algumas formas de escrita para as quais isso não passa de um bom conselho, mas quando tomado como um mandamento recebido do Sinai, elimina-se muito do que é exuberante e fecundo nas frases longas, o que é extático, encantatório e sublime na literatura. Na sua forma mais exuberante (que é como quem diz, menos exuberante), os partidários da parcimônia são puritanos que branqueiam paredes de igrejas e partem vitrais; os militantes do minimalismo são executivos da linguagem preocupados única e exclusivamente com o mais reles denominador comum.
Ironicamente, muitos dos autores que povoam o cânone são aqueles que nunca cortavam palavras desnecessárias, que não tinham qualquer afeição especial pela frase curta, em staccato, e que não partilhavam o rancor pelo adjetivo e pelo advérbio que caracteriza os editores implacáveis, de caneta censória sempre empunhada. O que seria de Dom Quixote sem a prosa castelhana loquaz de Miguel de Cervantes, as Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, sem a sua sintaxe brobdingnagiana, o Ulisses, de James Joyce, sem a sua dicção ambulatória?
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Apesar dos louvores à ortodoxia da frase curta, não faltam autores que foram e continuam a ser mestres dedicados da forma barroca. O cosmopolita Vladimir Nabokov conta com uma frase de 99 palavras em Lolita, o erudito W.G. Sebald compôs um período de 107 palavras em Os Anéis de Saturno, a profética Margaret Atwood redigiu uma sentença de 111 palavras em O Conto da Aia, a incandescente Virginia Woolf teceu uma frase de 116 palavras em Mrs. Dalloway, ou o elegante Salman Rushdie, cujos Versos Satânicos contam com uma frase de 165 palavras que ainda assim flui tão levemente quanto uma pena a cair do céu. Isto para não falar das frases longas conscientemente dissidentes, advindas dos escritores de vanguarda que, tal como um maratonista que testa até onde consegue continuar a correr ou um alpinista que se desafia a subir cada vez mais alto, levam a prosa aos seus limites.
O romance do irlandês Mick McCormick, Solar Bones, vencedor do Prémio Goldsmith de 2016, uma narrativa em primeira pessoa sobre um espírito retornado no Dia de Finados, é escrito numa única frase que pulsa pela história como uma espécie de radiação cósmica de fundo, ou o gigantesco romance de Lucy Ellman, Ducks, Newburyport, de 2019, que consiste numa série de ruminações em fluxo de consciência de um professor adjunto de história e é também composto por uma única frase ondulante que se prolonga ao longo de impressionantes mil páginas. A literatura mais convencional também tem a sua quota-parte de belas frases longas, claro.
Veja-se uma típica frase do livro da romancista britânica Zadie Smith, apropriadamente intitulado On Beauty (Sobre a Beleza). Ao descrever a liturgia do final do ano, Smith escreve: “Este era, afinal, o mês em que as famílias se começavam a apertar e fechar e selar; do Dia de Ação de Graças ao Ano Novo, o mundo contraía-se, dia após dia, no microcosmo festivo de um único lar, cada um com os seus próprios rituais e obsessões, regras e sonhos.” 43 palavras, nove orações, um único ponto e vírgula. Não é uma frase muito longa, mas viola muitos dos conselhos comuns sobre ir direto ao ponto.
O que torna a prosa de Smith tão impactante é precisamente não ir direto ao ponto, especialmente quando o tema em questão é a forma como o tempo se contrai e expande no marasmo das festas do final de ano. Smith é uma escritora que demonstra um senso admirável de paralelismo quase bíblico; a frase é um exemplo brilhante de como orações simetricamente balanceadas (“rituais e obsessões, regras e sonhos” – note-se a aliteração entre a primeira palavra de cada oração) são naturalmente agradáveis ao ouvido. Infamemente repudiada pelo crítico da The New Yorker, James Wood, pelo seu “maximalismo histérico”, parte do que torna as frases de Smith tão agradáveis é exatamente a sensação de que a beleza transborda das suas linhas, de um deleite abundante.
Não que o deleite seja a única emoção engendrada pela frase longa, pois, como mostra Kiran Desai em The Inheritance of Loss (que é, por si, um romance absurdamente belo), o amontoamento frenético de palavras e imagens pode também ser uma forma conveniente de mimetizar a psicologia da mente ansiosa. É assim que ela descreve um dos seus personagens:
“… ele sabia o que o seu pai pensava: que a imigração, tantas vezes apresentada como um ato heroico, podia muito bem ser exatamente o oposto; que era a cobardia que levava muitos para a América; que o medo marcava a viagem, não a coragem; o desejo de se refugiar num lugar onde nunca se visse a pobreza, não realmente, onde nunca se tivesse de suportar um peso na consciência; onde nunca se ouvissem as exigências dos criados, dos mendigos, dos parentes arruinados, e onde nunca fosse exigida dele qualquer generosidade; onde se pudesse sentir virtuoso cuidando apenas do próprio filho-cão-jardim.”
Cada ponto-e-vírgula da frase de Desai poderia ser substituído por um ponto final, mas quanto se perderia nessa alteração? Os ponto-e-vírgulas que ligam cada oração numa única frase longa encorajam uma narração mental ofegante, como um personagem que reflete rapidamente nas implicações da sua linha de pensamento. Quando o leitor chega à quinta ou à sexta oração, há uma sensação esmagadora de que o personagem (conforme representado através do discurso indireto livre) está em conflito consigo mesmo, com todos aqueles “nuncas” na penúltima oração, e depois, na última, a mistura apressada dos substantivos “filho-cão-jardim”, que contrastam condenatoriamente a diferença de preocupações entre a América suburbana e a Índia natal de Desai, uma preocupação que, pelo menos neste excerto, nunca precisa ser didaticamente afirmada.
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Examine-se outra bela e consumada frase longa que exibe as qualidades que tornam a abordagem maximalista tão apelativa, no caso, por permitir uma imitação da sensação de movimento:
“Na mais bela de todas as cidades, onde as casas eram brancas e altas e os ulmeiros eram verdes e mais altos do que as casas, onde os pátios da frente eram largos e agradáveis e os quintais densos e convidativos, onde as ruas desciam até ao ribeiro e o ribeiro corria calmamente debaixo da ponte, onde os relvados se dissolviam em pomares e os pomares se dissolviam em campos e os campos se dissolviam em pastagens e as pastagens subiam a colina e desapareciam por cima do seu cume no maravilhoso céu amplo, nesta mais bela de todas as cidades, Stuart parou para beber salsaparrilha.”
107 palavras e um ponto final; seis vírgulas e dez adjetivo, tudo para dizer o equivalente a “Stuart parou para beber um copo numa cidade bonita”. E, no entanto, é óbvio que aquela bela frase e a minha tradução anêmica não dizem de todo a mesma coisa. O que é que torna aquela frase bela? O fato de, naquelas 107 palavras, o autor ter criado não apenas um pequeno mundo, mas toda uma forma de sentir, precisamente ao empilhar orações sobre orações e palavras sobre palavras. Muitas delas são, de uma perspetiva estritamente literal, completamente supérfluas. Mas, tal como na música, é o ritmo e a melodia que dão poder à coisa.
Considere a repetição encantatória de palavras enquanto o autor deixa a frase divagar como se estivéssemos a ver a própria paisagem que ele descreve a partir da janela de um carro, essas transições de relvados para pomares, para campos, para pastagens, para o céu, a maneira como as próprias feições geográficas se tornam cada vez maiores e terminam com o próprio cosmos. Depois, a frase “na mais bela de todas as cidades” que, para além de evocar a princípio os contos de fadas, retorna mais tarde como uma espécie de ombrada gentil que nos acorda de um sono breve.
Por fim, tudo isso se concentra na oração final, esse vasto quadro descritivo que termina com o personagem principal parando para saborear a mais folclórica das bebidas gaseificadas. Há um encanto e uma graça numa frase como esta que se perderia se todas as palavras supérfluas fossem impiedosamente cortadas. Graças a Deus, o autor não seguiu o seu próprio conselho sobre a preferência por frases curtas; este é um excerto de Stuart Little de E.B. White (não ironicamente a melhor obra sobre o amor do século XX).
Numa frase longa, portanto, existe uma série de coisas que podem ser realizadas que seriam impossíveis de ser replicadas de outra forma; é verdade que, por vezes, há uma dificuldade acrescida em ler uma frase longa – todas aquelas voltas e reviravoltas, a sintaxe complicada e o empilhamento de palavras e imagens, vírgulas e ponto-e-vírgulas, oração, oração e oração – mas na luta com essa prosa há a possibilidade de tanto o leitor quanto o escritor trabalharem em uníssono rumo a uma conclusão, rumo ao significado maior da própria frase; porque, há que dizê-lo, existe uma diferença ética entre a frase que é fácil de ler e a que exige atenção; essa diferença não deve necessariamente ser entendida como uma afirmação de que a frase longa é inerentemente superior em termos morais, mas antes que, ao exigir que um leitor realmente se digladie com uma frase, nos rebelamos contra os deuses deste mundo (que são, como dizem, os algoritmos da internet) que valorizam a frase curta e concisa acima de tudo; há, efetivamente, no louvor da frase longa um reconhecimento de que, por vezes, a frase curta é mais fácil, diminuta, e até insignificante, mas isto não quer dizer que a frase longa exige a capitulação da curta, pois o que torna um estilo agradável de ler é muitas vezes o contraste entre o gigantesco e o minúsculo, tal como a música é construída sobre notas e pausas; talvez o que é autoindulgente na frase longa (e ela certamente pode sê-lo) também possa ser transmitido ao leitor, de modo que essa prosa expansiva seja melhor entendida como uma dádiva, ou melhor ainda, como um segredo; depois, claro, há as coisas que só a frase longa pode transmitir, aquela sensação de movimento, de deslocação através de uma paisagem, ou da mente que se insurge nas suas próprias ondulações; enfim, se há algum radicalismo na frase longa, é este: abraçar o artifício, o ornamento, a decoração e o excesso nada mais é que uma resistência contra a utilidade mesquinha e os bisturis afiados dos obcecados por resultados, sejam eles executivos ou editores – é um entregar-se à imaculada ousadia da beleza supérflua. É tudo.
III. Trinta e Três Regras Para a Boa Prosa – por David Bentley Hart
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Quando se coloca a bíblia King James ao lado da prosa não só de Browne mas de todos os grandes escritores ingleses da época, por um período de algumas gerações – John Florio (1552-1625), Lancelot Andrewes (1555-1626), John Donne (1572-1631), Robert Burton (1577-1640), Thomas Hobbes (1588-1679), Izaak Walton (1593-1683), John Dryden (1631-1700), Thomas Traherne (c. 1636-1674), Joseph Addison (1672-1719), e assim por diante – não se pode deixar de sentir que nos movemos ao longo de um único continuum: não irrompendo, como tendemos a pensar hoje em dia, do ostensivamente espalhafatoso para o despretensiosamente simples, mas antes do belo para o sublime, no sentido clássico e pré-kantiano desses termos. Assim considerado, o “belo” é um estilo que abunda em ornamentação cintilante, enquanto o “sublime” é um estilo de contenção majestosa, colocado “abaixo do limiar” (sub limine) do templo, uma nudez plangente cujo poder retórico excede de alguma forma o dos mais espetaculares adornos oratórios.
Toda a grande prosa nacional, em praticamente qualquer língua, só atinge o seu meridiano superior através de uma negociação prolongada e constante desta tensão entre beleza e sublimidade – entre o decorativo e o augusto, ou entre o esplêndido e o lúcido. E isso só acontece ao final de longas épocas de desenvolvimento. Ser capaz de equilibrar expressividade e reticência, ou saber quando se deve abandonar esse equilíbrio, requer tato, engenho e gosto por parte dos escritores; mas requer também uma linguagem com maturidade suficiente. É por isso que a prosa de qualquer importância surge invariavelmente muito mais tarde na história de uma cultura do que a grande poesia. A poesia entrou no mundo quase tão cedo como as palavras; é o primeiro florescimento da magia intrínseca da língua – com os seus poderes de invocação e apóstrofe, de tornar presente o ausente e misterioso o presente, de abrir uma mente a outra. É mais natural para as línguas na sua primeira aurora, quando algo elementar – algo de algum modo pré-linguístico e não muito consciente – é ainda audível nelas. A prosa, no entanto, só evolui quando essa força foi subjugada por séculos e séculos de refinamento, depois de o encantamento inconsciente ter sido largamente dominado pela arte consciente, quando a língua adquiriu um vocabulário suficientemente rico e uma sintaxe suficientemente sutil, e descobriu plenamente as suas cadências nativas. Em inglês, tal como em francês, isto aconteceu no início do período moderno, começando no final do século XV e atingindo um zênite inultrapassável no século XVII.
A essa altura, ademais, o inglês já havia acumulado o mais variado e magnificamente caótico tesouro de palavras de qualquer língua europeia, cheio de trovões teutônicos e latinidade ronronante, mas também enriquecido com todos os outros despojos verbais que pudesse apreender do exterior. Nenhuma outra língua poderia atingir uma gama tão profunda de tons de órgão, ou ostentar uma coleção tão enorme de tubos e registos, ou comandar um espaço acústico tão imenso.
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Não sei exatamente por que razão, no século XX, as modas dominantes na prosa inglesa se moveram implacavelmente na direção de uma simplificação cada vez maior e de um minimalismo estético. Nem sequer lamento inteiramente esse fato. Os gostos mudam, e alguma da mudança foi um corretivo de certos excessos do passado. Mas, de um modo geral, o resultado tem sido uma espécie de dogma oficial a favor de uma prosa tão despojada de nuances, elegância, complexidade e originalidade que poucas vezes supera o infantil, não só em termos de vocabulário, mas também de arte e poder expressivo – uma fórmula, isto é, para produzir escritores cujas vozes são totalmente anônimas na sua vulgaridade monótona. A maior parte da ficção que se lê hoje em dia nas revistas literárias é atrozmente escrita, tal como a maior parte dos ensaios, principalmente porque os escritores foram doutrinados num estilo tão rígido, estéril, brutal, seco e idiotamente ingênuo, que o melhor que podem conseguir é uma monotonia competente. E quem é que consegue distinguir um autor do outro?
Afinal, a simplicidade é difícil, não menos que a complexidade. Ambas requerem gosto e habilidade. Nenhuma é menos artificial ou mais natural do que a outra. Ambas são necessárias para escrever bem. E quando uma se torna um regime forçado, excluindo a outra, os resultados só podem ser horríveis. A boa escrita é produzida não por abandonar o belo pelo sublime ou o exorbitante pelo contido, mas por encontrar novas formas de orquestrar a interação entre eles. Todavia, as autoridades do nosso tempo parecem concordar: o autor literário deve tratar a consola do órgão como uma coleção de tentações decadentes a que deve resistir; deve confinar a sua atuação a um único manual, tocado a dois dedos, sem batentes puxados e com os pedais nunca sequer roçados por uma ponta de sapato errante.
As Regras
Propor uma lista de regras para escritores é provavelmente uma coisa muito presunçosa. A única autoridade que pode ter é o seu próprio exemplo e, por isso, oferecê-la ao mundo é uma espécie de aposta. Temos de assumir que a nossa própria escrita é suficientemente impressionante para a maioria dos leitores a ponto de nos credenciar para tal tarefa. Se estivermos errados neste ponto, a emissão destas regras será um mero convite ao ridículo. Quero dizer, por amor de Deus, Steven Pinker (dentre todas as pessoas) publicou um livro sobre estilo. Como é que se pode levar isso a sério?
Não que ser um bom escritor seja garantia de que se tem um dom para instruir os outros nessa arte. E.B. White era um estilista absolutamente esplêndido; produziu uma prosa tão límpida que foi capaz de enganar até a si próprio, julgando-a o triunfo da simplicidade em vez (como era realmente o caso) de uma complexidade muito sutil. Foi também o principal culpado pelo livro The Elements of Style, coautorado por William Strunk, de longe o mais influente e pernicioso do seu gênero em inglês: um conjunto de conselhos fátuos e de ignorância gramatical. Do mesmo modo, George Orwell era um estilista perfeitamente competente (ainda que bastante chato); no entanto, o seu célebre ensaio Politics and the English Language, que pretendia ser uma repreensão do jargão obscurantista, perdura hoje sobretudo como um manifesto de provincianismo literário. Tivessem White ou Orwell seguido os seus próprios conselhos túmidos com alguma fidelidade, nenhum deles seria tão carinhosamente recordado.
De qualquer modo, tendo em conta tudo isto, proponho o que se segue apenas àqueles que gostam da minha escrita, ou que pelo menos a consideram suficientemente eficaz para me tornar uma autoridade credível nestas matérias. Estas são, pelo menos, as regras que sigo e que melhor exprimem os meus gostos literários. As três primeiras resultam, aliás, dos meus encontros diretos com editores e críticos.
Vocabulário:
1. Utilize sempre a palavra que significa mais exatamente o que pretende dizer, sem se importar minimamente com quão comum ou familiar essa palavra é. Um escritor nunca deve se preocupar com o que os seus leitores podem ou não saber, deve se preocupar apenas em não os subestimar. Como disse Nabokov, um bom leitor está sempre munido de um dicionário e nunca se ressente de ser apresentado a um novo termo. Chamo a isto a “regra do ultracrepidário”, simplesmente porque um editor tentou uma vez, sem sucesso, dissuadir-me de escrever sobre um certo “polemista que tropeça em fronteiras disciplinares invisíveis num estupor ultracrepidário”. O editor viu-se obrigado a ceder porque não há absolutamente nenhuma outra palavra que signifique tão exatamente o que eu queria dizer.
2. Utilize sempre a palavra que julgar mais adequada ao efeito que pretende produzir, seja em termos imagísticos e sonoros, seja na gama de conotações e associações que pretende evocar. Chamo a isto a “regra hialina”, devido a uma frase que aparece num livro meu intitulado The Doors of the Sea: “Nas costas, as encantadoras e límpidas águas hialinas foram de uma só vez poluídas com o lodo, os detritos e a escuridão do leito do oceano, e subiram com uma rapidez tão aterradora que muito poucos – mesmo em locais tão distantes como o Sri Lanka – tiveram tempo suficiente para fugir.” Um leitor indignado reclamou que eu poderia muito bem ter usado a palavra “vítreas”, como qualquer alma decente e despretensiosa teria feito. Mas eu tinha escolhido “hialinas” por razões muito particulares: é uma palavra precisa, que significa “vítreo” no sentido principalmente de translucidez cristalina; tinha exatamente o som certo para a frase – três sílabas, os adoráveis sons das vogais longas i, o igualmente adorável “l” líquido e o “n” suavemente brilhante, que somados proporcionam uma sensação vítrea e aquosa na língua; e era a palavra perfeita no contexto desse livro, porque ecoa a thalassa hyalinē do livro do Apocalipse, “o mar de vidro como cristal” diante do trono de Deus, bem como a frase de Milton “… no hialino, o mar vítreo…”[1] [“On the clear hyaline, the glassy sea…”]. Talvez nenhum leitor tenha conhecimento de tudo isso; mas eu sabia o que estava a fazer e, por isso, usar qualquer outra palavra teria sido uma capitulação covarde ao ordinário.
3. Quando se apresentar a ocasião para usar uma palavra estranhamente obscura, mas absolutamente precisa e apropriada, use-a. Chamo a isto a “regra da pogonotrofia[2]”, porque uma vez escrevi uma recensão no Times Literary Supplement de um livro de Rowan Williams, na altura Arcebispo da Cantuária, depois de um jornalista terrivelmente estúpido ter sugerido que a sua reputação de intelectual era apenas uma consequência da sua barba farta. Isso me deu a oportunidade de usar essa palavra maravilhosa, que há muito estava a reservar para o momento certo. Uma oportunidade destas nunca mais se repetiria; se a tivesse deixado passar sem ser aproveitada, teria levado a mágoa para o túmulo.
4. Nunca utilize uma palavra simplesmente porque é obscura, mas também nunca hesite em utilizar uma palavra devido à sua obscuridade. Se se exibir sendo pontualmente preciso, conforme a regra acima, toda a grande ornamentação rococó que poderia desejar para a sua prosa surgirá por si só.
5. Não utilize um tesauro. As listas de sinônimos putativos não lhe dão uma noção do significado e uso mais adequado de qualquer palavra. Se estiver a tentar lembrar-se de uma palavra que conhece e que inexplicavelmente se recusa a vir à tona na sua memória, talvez a encontre nesse volume; e talvez, se estiver a escrever versos humorísticos e se deparar com um problema intratável de escansão, possa encontrar aí algo adequado. Caso contrário, aprenda os significados e usos das palavras lendo muito (com aquele dicionário que Nabokov recomenda ter sempre por perto).
6. O exótico é normalmente mais agradável do que o familiar. Seja gentil com os seus leitores e ofereça-lhes coisas exóticas sempre que puder. Em geral, a vida é bastante aborrecida, e um escritor deve tentar mitigar esse aborrecimento, não contribuir para o mesmo.
Estilo:
7. Às vezes, menos é mais. Mais frequentemente, mais é mais e menos é menos. Às vezes, mais é o mínimo que se pode fazer pelos leitores.
8. Se tiver de escolher entre a elegância e a total clareza, permita-se um período de indecisão decorosamente agonizante e, depois, opte sempre pela elegância.
9. Nunca desperdice uma oportunidade para demonstrar engenhosidade verbal. Contei uma vez na imprensa a infame história de Schopenhauer a atirar uma velha lavadeira por umas escadas abaixo, descrevendo-o a certa altura como se a tivesse agarrado pela sua “garganta grácil”.[3] Autoindulgente, sem dúvida, mas são esses os momentos que dão algum propósito à vida.
10. Em Politics and the English Language, George Orwell propõe seis regras. A primeira é uma boa admoestação contra o uso de metáforas banais; quanto à segunda, lê-se: “Nunca use uma palavra grande quando uma pequena servir”. Esta é uma máxima idiota, que concentra em si quase todos os tipos de filistinismo. O que ele deveria ter escrito era: “Nunca prefira uma palavra curta por ser curta ou uma palavra grande por ser grande, mas use sempre a palavra que, na sua opinião, melhor combine sentido, conotação, elegância, inteligência e som, sem se preocupar se os seus leitores são suscetíveis de a reconhecer”.
11. Orwell também decreta: “Se for possível cortar uma palavra, corte-a sempre”. Nenhum grande escritor na história de qualquer língua alguma vez acatou tal regra, e nenhum aspirante a escritor a deve seguir. O conselho correto seria: “Se uma palavra é excessiva ao ponto de prejudicar o efeito intendido de uma frase, corte-a; mas nunca corte uma palavra simplesmente porque é possível fazê-lo.”
12. Orwell então ordena: “Nunca use a voz passiva quando pode usar a voz ativa”. Esta é talvez a pior regra de estilo alguma vez proposta por quem quer que seja. Toda a história da literatura proclama a sua imbecilidade. Em vez disso: “Evite a voz passiva quando a ativa funciona melhor e vice-versa.” Afinal, na vida, às vezes agimos e às vezes somos objeto de ação. A dialética causal entre agente e paciente, para usar os termos escolásticos, é intrínseca à finitude.
13. O preceito seguinte de Orwell é: “Nunca use uma expressão estrangeira, uma palavra científica ou um jargão se conseguir pensar num equivalente inglês corrente.” Tudo o que se pode salvar deste disparate banal e paroquial é “Evite o jargão”. Sinta-se à vontade para usar uma frase estrangeira quando for adequado ou agradável fazê-lo, e faça-o sempre que ela exprima uma ideia com maior elegância ou economia aforística do que qualquer equivalente em inglês (por exemplo, a expressão l’esprit d’escalier). O inglês é uma língua gloriosamente mestiça e sempre pilhou outras línguas em busca de bugigangas brilhantes. Além disso, empregue sempre – sempre – termos científicos precisos nos contextos em que sejam pertinentes.
14. A injunção final de Orwell é: “Violem qualquer uma destas regras antes de dizerem algo obviamente bárbaro”. No entanto, uma vez que seguir as suas regras produziria prosa bárbara na grande maioria das vezes, ele deveria ter escrito: “Ignore estas regras, exceto a que diz respeito às metáforas banais e à parte sobre jargão”.
15. Já o Elements of Style, de Strunk e White, decreta: “Mantenha as palavras relacionadas juntas”. Isto é vazio. Obviamente, rupturas abruptas de sentido devem ser evitadas. No entanto, tomado como um princípio, este pequeno axioma não é apenas um mau conselho; é uma renúncia da linguagem enquanto tal. Como qualquer estudante decente de linguística sabe, uma das principais diferenças entre o significado linguístico real (por um lado) e os meros ruídos e gestos ostensivos (por outro) é o fato de o primeiro se basear em proximidades estruturais e não espaciais. A capacidade de qualificar uma frase predicativa através da interpolação de uma oração subordinada (por exemplo) é uma dessas conquistas preciosas que nos distinguem dos babuínos.
16. O mesmo livro aconselha: “Escreva com substantivos e verbos, não com adjetivos e advérbios”. Uma imbecilidade. É melhor não escrever nada do que tentar seguir semelhante obscenidade, absurda e puritana. Escreva com todo tipo de palavras que sirva os seus objetivos.
17. Na verdade, se tiver uma cópia de The Elements of Style, apenas destrua a maldita coisa. É uma presença pestilenta na sua biblioteca. A maioria das regras de estilo que propõe são vácuas, arbitrárias ou impossíveis de seguir, e é melhor que não façam parte da sua vida. E os materiais sobre gramática e uso são frequentemente piores. Alguns deles são simplesmente consensos falsos herdados – “contudo” [“however”] deve sempre seguir aquilo que qualifica, “que” “[which”] não deve ser usado numa oração relativa restritiva, e outros disparates desse gênero – todos eles desmentidos por todo o cânone da literatura inglesa. Outros, no entanto, são prova de uma ignorância surpreendente. Já é suficientemente mau que o manual insista que, por princípio, se deve preferir a voz ativa à passiva; mas é muito pior que depois apresente vários exemplos que supostamente estão na voz passiva, mas que na verdade não estão. Um deles – “Havia um grande número de folhas mortas deitadas no chão” [“There were a great number of dead leaves lying on the ground”] – parece ter sido escolhido simplesmente porque a ação de “deitar” soa como algo passivo, embora a frase não esteja na voz passiva. O fato de nem Strunk nem White saberem a diferença entre uma construção passiva e um verbo intransitivo ativo no pretérito imperfeito – ou, como o livro também demonstra, a diferença entre o pretérito perfeito passivo e ativo, ou a diferença entre o particípio passado passivo e um particípio passado adjetival sem um verbo auxiliar – é genuinamente chocante. No entanto, transmite uma lição útil: nunca tome o tom de autoridade como prova de conhecimento real.
18. Todas estas injunções insipidamente doutrinárias – que nos obrigam a escrever apenas frases declarativas simples, despidas de modificadores e compostas apenas por palavras familiares a uma criança de dez anos, e que exigem que prefiramos sempre o cinzento-carvão à púrpura suntuosa – são expressões de tudo o que há de espiritualmente mortífero na modernidade tardia e nos seus valores ignóbeis. Refletem uma época em que o misterioso, o evocativo e o graciosamente elíptico foram sistematicamente suprimidos e quase extintos em nome do eficiente, do prático, do mecânico e do absolutamente inequívoco – em suma, em nome de tudo o que torna a existência pouco convidativa e a vida chata. São reflexos de uma era de economicismo capitalista insípido, do reinado de um senso comum grosseiro, do triunfo bárbaro da função sobre a forma, de uma arquitetura cívica espartana e sobressalente de vidro, aço e plástico, de uma sociedade consumista que vive da produção e destruição incessantes de conveniências intrinsecamente desgraciadas. Aprenda a detestar todas estas coisas e será um melhor escritor.
19. Leia sempre o que escreveu em voz alta. Por mais elaborada que seja a sua prosa, ela deve fluir; deve parecer genuinamente contínua. Isto não quer dizer que se deva imitar o discurso oral; quer dizer apenas que se deve tentar captar os seus ritmos. Se o que escreveu é estranho na sua língua, então é estranho na sua página.
Modelos
20. A escrita má é raramente confundida com a boa por quem é perspicaz, mas pode ser frequentemente confundida com a excelente. Mantenha isso em mente ao considerar o trabalho de autores que tenta imitar.
21. A escrita verdadeiramente boa é muitas vezes inimitável, simplesmente porque quanto melhor é um escritor, mais distinta tende a ser a sua voz. Tenha isto também em mente quando considerar o trabalho de autores que se sente tentado a imitar.
22. Se alguma vez frequentou um curso de “escrita criativa”, tente lembrar-se o mais vividamente possível do tipo de prosa que foi encorajado pelo seu professor a escrever, e depois faça o seu melhor para evitar escrever dessa forma.
23. Se lhe foi dito na escola que O Velho e o Mar de Hemingway é um exemplo de boa escrita, desiluda-se. É, na verdade, um espécime excruciante de má prosa escolar, escrita por um homem que, a essa altura, tinha, infelizmente, estado bêbado demasiadas vezes, sofrido demasiadas concussões e sido elogiado em demasia.
24. Para os escritores americanos em particular, e especialmente para os jovens escritores americanos, e muito especialmente para os jovens escritores americanos do sexo masculino: Existe nestas paragens uma tradição autóctone do “Sublime Americano” – embora em muitos casos fosse melhor chamá-la “Fustão Americano”. Encontramo-la no seu pior em William Faulkner e Thomas Wolfe, quando estão no seu pior, bem como numa série de outros autores cujos nomes omito aqui. Nós, enquanto povo, gostamos de aspirar a efeitos grandiosos, muitas vezes para além de qualquer ocasião plausível para o fazer. Se isso se deve à presença da nossa paisagem magnífica ou à ausência de uma longa história cultural, não posso adivinhar. Não diria que deve resistir totalmente às tentações desse estilo. Ele também está presente no melhor da nossa literatura – em Melville e Emerson, Muir e Thoreau etc. – e, nesses casos, é muitas vezes glorioso. Ainda assim, ceda-lhe apenas na medida em que possa controlar as forças que desencadeia. Caso contrário, cairá na paródia inadvertida.
Pontuação:
25. Um escritor que desdenha o ponto e vírgula é um tolo. Na realidade, a hostilidade a este sinal de pontuação tão delicado e lírico é um indício seguro de uma alma deformada e de uma sensibilidade selvagem. A vida consciente não é uma concatenação bruta de unidades discretas de experiência; é muitas vezes fluída, resistente a divisões rígidas e a partições impermeáveis, pontuada por momentos de transição que não são, por natureza, nem exatamente terminais, nem exatamente contínuos. Além disso, o significado é muitas vezes unificado por ligações elusivas, mudanças ambíguas de referência, coerências misteriosas. E a arte deve usar todos os instrumentos de que dispõe para exprimir estas eventualidades ambíguas e alternâncias desconcertantes. Dominar o ponto e vírgula é dominar a prosa. Dominar o ponto e vírgula é dominar a capacidade milagrosa da linguagem para captar a forma da realidade.
26. Perdendo apenas para o ponto e vírgula em subtileza, beleza fluente e capricho está o travessão. Aprecie-o. Use-o sem reservas.
Os Leitores:
27. Aqueles que leem apenas para se informar e nunca para se deleitar com as palavras da página têm todo o direito de o fazer. Mas não escreva para eles.
28. Os únicos críticos literários com alguma importância são, eles próprios, distintos escritores. Cultive inteligência crítica e tente ler o seu próprio trabalho com imparcialidade; mas ignore diligentemente as críticas dos inaptos.
29. Não rebaixe a sua escrita de acordo com o que presume ser o nível dos seus leitores (a menos que esteja a escrever especificamente para crianças muito pequenas). Fazê-lo é uma injustiça com os leitores e consigo mesmo. Mesmo que as suas suposições estejam corretas, deve dar-lhes a honra de assumir que eles sabem o que você sabe, ou que o podem aprender, ou que estão pelo menos dispostos a tentar. É verdade que alguns leitores ficam indignados com a sua própria incapacidade de acompanhar prosa de qualquer complexidade ou de reconhecer palavras mais obscuras do que aquelas que estão acostumados a usar quando falam com os seus cães. Invariavelmente, culpam o autor e não a si mesmos. Não lhes deve absolutamente nada. Se tentar sempre descer ao menor denominador comum, nunca chegará ao fundo do poço, mas acabará certamente por perder o interesse dos melhores leitores. Infelizmente, estamos numa época de declínio da literacia e da capacidade de atenção, e a situação agrava-se de ano para ano. Não se deve, pura e simplesmente, fazer concessões a essa realidade, a menos que esteja preparado para desistir da escrita por completo.
As Últimas Coisas:
30. Memento mori. Um dia morrerá e irá para a sua morada eterna, e a sua voz calar-se-á. Tem pouco tempo para manifestar os tesouros da sua mente e da sua alma. Não desperdice o pouco tempo que lhe foi concedido produzindo apenas obras destinadas ao momento e não à posteridade.
31. Conheça os nomes das coisas e os nomes dos lugares. Ambos são uma espécie de poesia e ambos contêm mistérios. É uma intuição antiga que possuir o nome próprio de uma coisa é possuir poder sobre ela; é, quanto mais não seja, partilhar a forma dessa coisa – a sua maneira única, isto é, de manifestar a riqueza inesgotável do ser. Isto deve-se ao facto de a linguagem ser mágica.
32. A linguagem é mágica. É invocação e conjuração. Com as palavras, invocamos os mares e as florestas, as estrelas e as galáxias distantes, o passado e o futuro e o fabuloso, o real e o irreal, o possível e o impossível. Com as palavras, criamos mundos – na imaginação, no reino das ideias, na arena da história. Com as palavras, revelamos coisas que de outra forma estariam escondidas, inclusive o nosso interior. E assim por diante. Quando escrever, tente lançar um feitiço. Se não for essa a sua intenção, não escreva.
33. À medida que se aproxima do fim da sua vida, poderá olhar para o seu trabalho com alguma satisfação se tiver havido momentos na sua prosa em que alcançou exatamente aquilo que esperava alcançar. Mantenha um inventário desses momentos na sua mente, para que possa voltar a eles quando se sentir deprimido, sem inspiração ou com dúvidas.
[…]
[1] Paraíso Perdido, Verso 619, livro VII, tradução de Daniel Jonas.
[2] Não encontrei referência a “pogonotrofia” em nenhum dos dicionários a que tenho acesso, mas dadas as raízes helénicas da palavra, pouco estranhas ao português, e o facto de “pogonofilia” (o gosto ou atração por barbas) figurar em certos dicionários, achei por bem traduzir literalmente “pogonotrophy”.
[3] A expressão original é “wizened weasand”. Uma tradução literal seria “pescoço enrugado” ou “goela encarquilhada”. De modo a manter algo próximo à aliteração original, ainda que deixando de lado o sentido mais literal de “wizened”, optei por “garganta grácil”.