Duas Versões de João Grilo

– por Jessé de Almeida Primo

Quase para o final do filme O auto da Compadecida, de Guel Arraes, baseado na obra homônima de Ariano Suassuna, há uma cena em que Jesus, muito impressionado com os arranjos que João Grilo fez para salvar as almas do inferno, a ele se dirige:

–  Agora é nós, João Grilo, você que é tão sabido, o que é que você tem a dizer em sua defesa?

–  Nada não, Senhor.

–  Como nada? Agora chegou a hora da verdade.

–  É por isso que estou lascado, comigo era tudo na mentira.

Satisfeito, já abrindo as portas do inferno, o diabo completa:

–  Ainda bem que reconhece.

A Compadecida interfere:

–  Você mentia pra sobreviver, João!

– Mas eu também gostava. Acabei pegando gosto por enganar aquele povo… –  E João, por vontade própria, aceitando o castigo, se aproxima das portas infernais.

–  Não, mas eles também te exploravam! A esperteza é a coragem do pobre. A esperteza era a única arma de que você dispunha contra os maus patrões!

–  Agradeço a intervenção, mas devo reconhecer que não vivi como um santo.

O diabo ironiza:

–  Tá se fazendo de humilde para ela tomar as dores dele…

–  Do jeito que sou ruim, pode até ser isso mesmo.

A Compadecida:

–  Não, não se entregue! Este é o pai da mentira, está querendo lhe confundir!

– A verdade é que não fui nenhum santo. Nem tive uma morte gloriosa como a dos meus companheiros.

Leiamos agora como esse diálogo figura na peça:

Manuel: – E agora, nós, João Grilo. Por que sugeriu o negócio para os outros e ficou de fora?

João Grilo: – Porque, modéstia à parte, acho que meu caso é de salvação direta.

Encourado: – Era o que faltava! E a história que estava preparada pra a mulher do padeiro?

Manuel: – É, João, aquilo foi grave.

João Grilo: – E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me desgraçando pra o resto da vida? Valha-me Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré, já fui menino, fui homem…

Compadecida sorrindo: –  Só lhe falta ser mulher, João, já sei. Vou ver o que posso fazer [A Manuel] Lembre-se de que João estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu.

Encourado: – É, e apesar de todo o aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro bento.

A Compadecida: –  João foi pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.

João Grilo: – Para o purgatório? Não, não faça isso assim não. [Chamando a Compadecida à parte.] Não repare eu dizer isso, mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a gente pede mais, para impressionar. A senhora pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório.

A Compadecida: – Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?

João Grilo: – Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada termina enrolando nós dois!

A Compadecida: – Deixe comigo [A Manuel.] Peço-lhe então, muito simplesmente, que não condene João.

Manuel: – O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso também tem um limite. Afinal de contas, o mandamento existe e foi transgredido.

A Compadecida: – Dê-lhe então outra oportunidade.

Manuel: – Como?

A Compadecida: – Deixe João voltar.

Manuel: – Você se dá por satisfeito?

João Grilo: – Demais. Pra mim é até melhor, porque daqui pra lá eu tomo cuidado na hora de morrer e não passo nem pelo purgatório, pra não dar gosto ao cão.

A Compadecida: – Então fica satisfeito?

João Grilo: – Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira.

Editora Agir, 2005, p. 155-158

A resposta e a reação de João Grilo no filme de Guel Arraes trouxeram-me à memória “Tres versiones de Judas”, de Jorge Luis Borges, do livro Ficciones, conto esse em que o protagonismo na história da Salvação desloca-se de Cristo crucificado para a traição de Judas. Chama atenção não apenas o traidor como herói, mas o fascínio, espécie de autoprojeção de justiça, pela coerência desse traidor que recusa o perdão porque não apenas isso teria desempenhado um papel na história da salvação, como também o traidor se torna o mais justo dos homens por aceitar seu castigo, mesmo que Cristo estivesse disposto a perdoá-lo.

Sob essa perspectiva, São Pedro não foi virtuoso, era alguém sem a verdadeira noção do que é justiça, porque, embora tenha negado Cristo por três vezes, bastou arrepender-se para assim dar continuidade ao apostolado até ser martirizado, usufruindo dessa maneira da Graça sem que a tivesse merecido.

A radicalidade dessa convicção vai ao ponto de afirmar que os dois famosos versículos do livro de Isaías,

2. E subirá como arbusto diante dele, e como raiz que sabe duma terra sequiosa: ele não tem beleza, nem fermosura, e vimo-lo, e não tinha parecença do que era, e por isso nós o estranhamos: 3. feito um objeto de desprezo, e o último dos homens, um varão de dores, e experimentado nos trabalhos: e o seu rosto se achava como encoberto, e parecia desprezível, por onde nenhum caso fizemos dele.

para muitos eram “una prevision del crucificado”, para outros, como Hans Lassen Martensen, “una refutación  de la hermosura que el consenso vulgar atribuye  a Cristo, para Runeberg, um escritor fictício como vários há entre os contos borgianos:

la puntual profecia no de um momento sino de todo el atroz porvenir, en el tiempo y en la eternidade, del verbo hecho carne. Dios totalmente se hizo hombre, pero hombre hasta la infamia, hombre hasta la reprobración y el abismo. Para salvarnos, pude elegir cualquiera de los destinos que traman la pleperja red de la historia; pude ser Alejandro o Pitágora o Rurik o Jesús; elegió un ínfimo destino: fue Judas.

e, como se se virasse a Cruz de cabeça para baixo, Jesus tem, dessarte, um papel irrelevante na história da Salvação e sua importância relativizada, sendo posto lado a lado com Alexandre Magno, Pitágoras ou Rurique, e Judas deve ser percebido como o nosso verdadeiro Salvador, nossas almas não foram salvas pelo amor do Crucificado, mas pelo suborno, pela traição e pelo suicídio e, ironia das ironias, o grande escritor argentino, visto muitas vezes como um representante do cânone ocidental, alguém identificado como defensor das causas elitistas, nesse conto clama qual um romântico do século XIX ou um militante identitário atual por uma reparação histórica. O conto de Borges, porém, tem, a despeito das minhas discordâncias dos princípios que o coordenam, uma coerência interna, de maneira que a conclusão ou a visão teológica que lhe é subjacente é dotada, quer queiramos ou não, de força dramática. O Judas do conto não passa de um parvo moderno – é, porém, uma grande personagem por conter a verdade literária; o conto é teologicamente falso e fraco, por outro lado o drama que lhe é extraído tem funcionalidade.

A falta de perdão de si mesmo tem um caráter mais grave do que se diria: significa a descrença na bondade de Deus, em razão de nossa maldade teimosa e contábil. É também o caso de Judas, que não creu nem no poder de Cristo (que poderia perdoar-lhe) nem na bondade de Cristo (que queria perdoá-lo).[1]

Essa passagem de Nicolae Steinhardt, um monge ortodoxo, na sua obra prima O diário da felicidade, é memorável, não apenas memorável, é arguta, reduz esse pretenso heroísmo gnóstico ao seu verdadeiro tamanho, revela-lhe a natureza real. A “maldade teimosa e contábil” não apenas se articula com o olho por olho, dente por dente, em outras palavras, o castigo na proporção exata do ato e sem nenhuma possibilidade de remissão, bem como nos traz à memória São João que descreveu Judas sem nenhuma palavra atenuante. Da mesma maneira que Steinhardt desmascara o que realmente estava por trás do suicídio de Judas, São João, vendo-o protestar contra a “unção em Betânia”, que considerava um luxo, um desperdício que em nada serve aos pobres, observou que Judas “disse isso, não porque ele tivesse cuidado dos pobres, mas porque era ladrão, e sendo o que tinha a bolsa, trazia o que lançava nela.”

Agora, qual é o caso de João Grilo? Lembro-me de que ao ver a cena do julgamento das almas pela primeira vez no cinema, me emocionei com a interpretação de Matheus Nachtergale, com o modo como ele dizia aquelas coisas com um riso resignado, de quem se contenta com o que aprontou e ao mesmo tempo sabe que chegou o momento de ser cobrado por isso e dessa maneira aceitar o castigo merecido.  Também tive uma sensação de estranheza, de que não era mais uma personagem de Ariano Suassuna que via nas telas do cinema, e sim outra coisa, um anti-João Grilo talvez, um sertanejo com as características de personagens de romances ou filmes existencialistas europeus ou do mesmo Judas borgiano.

Não é que o João Grilo de Ariano Suassuna fosse alguém destituído de vida interior por não ser como uma personagem existencialista europeia ou um traidor herói. Pelo contrário, é inteligente, criativo, dinâmico, bem humorado, e Zaratustra tinha lá sua razão ao afirmar que a alegria é mais profunda que a dor; aliás, ninguém com sua imaginação, capacidade de sobrevivência na adversidade, de lidar com os tipos mais diversos e fazer-se aceito por eles é alguém a quem falta vida interior. Ele ainda não é exatamente como Judas. Partindo do que bem observou Steinhardt, João Grilo não duvida do perdão que Cristo, sob intervenção de Maria, lhe possa dar. Na verdade, ele o recusa por não se ver como merecedor, e não se entrega ao Inferno sem antes empenhar-se em salvar a alma de todos que morreram com ele, inclusive as de seus assassinos. Por sinal isso confere a uma grande personagem, que não precisava de nenhum adorno intelectual, uma falsa profundidade, e uma, por assim dizer, interferência que (mais uma vez com Zaratustra) turva “as águas, para que pareçam profundas”,[2] revelando uma tremenda ignorância de questões teológicas fundamentais, entre as quais as relativas à salvação da alma, travestida de dignidade moral, de altruísmo, ou por outra, João Grilo é rebaixado de uma grande personagem picaresca para uma personalidade de escola romântica que desobedece a Deus para salvar a humanidade, ou daquelas que bradam contra os céus porque sua amada morreu de tuberculose, e une-se dessa maneira a lúcifer e a toda a corja de anjos caídos para vingar a amada e a indiferença de Deus aos homens.

É evidente o modo como o trecho em destaque sofreu uma das modificações mais arrogantes que um diretor de cinema pôde realizar em cima de um clássico, e mais surpreendente ainda é que Suassuna tenha aprovado o filme sem questionar esse trecho. Não se trata de mudanças que se fazem para conformar o trecho à linguagem cinematográfica, é, como já expus, uma corrupção dos princípios que fundamentam a obra original, como se o diretor tivesse algo a ensinar ao escritor. Ademais, o diretor substitui o maravilhoso “o meu caso é de salvação direta” por um ato de suicídio que se traveste de heroísmo, quando isso era absolutamente desnecessário, um clichê, de resto comum a filmes norte-americanos em que o protagonista, podendo se salvar com o grupo que lidera, se entrega à morte na mão de algozes em vez de dar ao grupo que o respeita e o ama a alegria de sua presença.

No final das contas, o João Grilo guelarraico não é o que será julgado junto com as outras almas, ele é tornado em juiz, e não exatamente juiz dos que se encontravam como ele, mas de Jesus e de Maria, ensinando-lhes qual é a verdadeira justiça, apresentando-se como alguém que tem autoridade sobre que destino se deve dar a cada alma e, quando é a sua vez, ele mesmo se dirige, determinado, para o Inferno, dando a entender que os gestos misericordiosos de Maria não passavam de trapaças para salvar-lhe a alma (A esperteza é a coragem do pobre. A esperteza era a única arma de que você dispunha contra os maus patrões!). Perde-se com isso o valor do arrependimento e vilaniza-se o sacramento da confissão, pois se esta, pelo reconhecimento do pecado, serve para que a alma se livre da tormenta dos erros, que acontece pelo remorso, fazendo o pecador renascer em Cristo, João Grilo acaba por seguir todos os passos do encourado, ao usar o reconhecimento dos erros como instrumento da própria condenação. Isso é a verdadeira personificação do já mencionado anti-João Grilo, senão vejamos.

Na peça, quando João Grilo consegue que cinco almas vão para o Purgatório, está escrito: “Os cinco se despedem comovidamente de João Grilo (p.155)”, ao que João lhes diz: “Desmanchem essa cara de enterro e boa viagem pra todos.” Essas palavras brincalhonas guardam uma profundidade incontornável, o presente da Graça ou uma nova oportunidade devem ser agradecidos com alegria, não com o pesar de quem o aceita a contragosto só porque pecou, e reduz esta declaração que só aparece no filme, “É por isso que estou lascado, comigo era tudo na mentira…”, a mera sinalização de virtudes. A ida ao Inferno, de livre vontade, dando a entender que a Compadecida estava trapaceando quando queria livrá-lo da condenação, é mero moralismo pavônico que esta declaração na peça logo desmoraliza: “Demais. Pra mim é até melhor, porque daqui pra lá eu tomo cuidado na hora de morrer e não passo nem pelo purgatório, pra não dar gosto ao cão.”

“Dar gosto ao cão”, que é o que João Grilo faz no filme (digamo-lo sem peias), é uma virtude pagã, satânica mesmo, e nem mesmo o livrar as outras almas da condenação redime o ato de entregar a própria alma; é como se resolvesse entregar a alma à danação infernal sem sequer ter feito um pacto demoníaco, é submeter-se à justiça paranoica do diabo no julgamento das almas, que quer daná-las, num ato moralista, ao castigo eterno por um erro qualquer. A grande virtude do Cristão é clamar pelo céu ainda que não se considere merecedor, porque pior do que o ato que cometeu é deixar-se arrastar para o inferno, mais ainda, antecipar-se à decisão do diabo, só para ser o certinho do pedaço, revelando antes a virtude de um burocrata que a de um cristão, afinal qual o sentido de amar a Cristo ao mesmo tempo em que se deixa conduzir incontornavelmente para longe Dele?

O verdadeiro João Grilo não é o que luta para ir ao Inferno, fazendo pouco caso da intervenção da Compadecida e da oportunidade que Cristo lhe dá, é o que usa de todos os recursos possíveis, do que aprendeu com as adversidades do sertão, não apenas para salvar as almas de todos, inclusive a de seus assassinos, mas a própria alma,

Para o Purgatório? Não, não faça isso assim não(…) não repare eu dizer isso, mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a gente pede mais, para impressionar. A senhora pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório. (p.156-7)

É o que não perde a oportunidade de esmagar o demônio, senão com os pés, como vemos nas iconografias de Arcanjo Gabriel ou de Maria pisando na cabeça da serpente, mas de certeza com um discurso que mostra o quanto o despreza, “Quem deve estar danado é o filho de chocadeira.”, é o que faz coro com Augusto Matraga: “Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!… E a minha vez há de chegar… P’ra o céu eu vou nem que seja a porrete!”


[1] Steinhardt, N. O diário da felicidade, p. 176, tradução de Elpídio Mário Dantas Fonseca, É realizações, 2009

[2] Nietzsche, Friedrich, Assim falou Zaratustra, Cia de Bolso, trad. Paulo César de Souza