Dostoiévski e Proust – por Ortega y Gasset

– traduzido por Lucas Lima

Enquanto outros gigantes declinam, arrastados ao crepúsculo pela misteriosa ressaca dos tempos, Dostoiévski continua no topo. Talvez seja excessivo o entusiasmo recente por sua obra, e quanto a esta eu prefiro reservar meu julgamento para uma hora mais tranqüila, mas, seja como for, não há dúvida de que o russo foi salvo do naufrágio geral por que passou o romance do século passado e vem passando o do atual. O problema é que as razões mais comumente dadas para explicar esse triunfo, essa extraordinária capacidade de sobrevivência, me parecem erradas. Costuma-se atribuir o interesse despertado por seus romances aos assuntos tratados, ao drama repleto de mistério das tramas, ao caráter exageradamente patológico de seus personagens, ao exotismo das almas eslavas, de aparência caótica, tão diferentes das nossas, límpidas, lineares e inequívocas. Não nego que todas essas coisas contribuam para o prazer que nos dá a leitura de Dostoiévski, mas me parecem insuficientes para explicá-lo. Demais, tais componentes poderiam ser considerados fatores negativos, mais propensos a nos irritar do que nos atrair. Lembre-se dos que leram esses romances e, após a leitura, ainda que cingidos de complacência para com o autor e sua obra, ficaram com certa impressão aflitiva, desagradável e um tanto nebulosa.

O assunto nunca salva uma obra de arte, assim como o ouro de que uma estátua é feita não a consagra. A obra de arte perdura muito mais por sua forma do que pelo material usado em sua composição, e deve o encanto essencial que dela emana, em primeiro lugar, à sua estrutura e organização. É isto o que de verdadeiramente artístico existe em uma obra, e ao que a crítica artística e literária deve atentar-se. Todo aquele que tem sensibilidade estética apurada perceberá um indício de filistinismo na idéia de que em uma pintura ou produção poética o mais determinante é o “assunto”. Por óbvio que sem isso não pode existir obra de arte, da mesma maneira que não há vida sem processos químicos. Contudo, assim como a vida não se reduz a tal, tornando-se vida de fato quando à sua complexidade originária são acrescentadas as leis químicas, também a obra de arte torna-se digna de sê-lo graças à estrutura formal que se impõe ao assunto ou à matéria.

Sempre me surpreendeu o fato de que mesmo entre os que compartilham do ofício há relutância em reconhecer como os aspectos formais, que ao vulgo parecem vãos e abstratos, são a parte realmente substancial na arte.

O ponto de vista do autor ou do crítico não pode ser o mesmo do leitor inculto. A este importa apenas o efeito último e total produzido pela obra, e a gênese do prazer causado pela leitura é a última de suas preocupações.

Muito se fala do que acontece nos romances de Dostoiévski, mas quase nada de sua forma. Os insólitos sentimentos e ações que esse assombroso escritor descreve atraíram a atenção dos críticos e os impediram de penetrar nas profundezas dos livros, naquilo que, como em toda criação artística, é o que aparenta ser mais secundário e superficial: a estrutura romanesca enquanto tal. Então criou-se uma curiosa ilusão de ótica. É comum atribuírem a Dostoiévski o caráter inconsciente e turbulento de seus personagens, e o romancista é imaginado como uma das figuras de seus próprios romances, as quais parecem ter sido geradas em momentos de êxtase demoníaco por algum desconhecido poder elemental, primo do relâmpago e irmão do vendaval.

Mas isso tudo é magia e fantasmagoria. O espírito atento se compraz em todas essas imagens cosmogônicas, porém não as leva a sério, e prefere, no fim das contas, idéias claras. Pode ser verdade que Dostoiévski enquanto homem fosse um pobre lunático ou, se preferir, um profeta; no entanto o Dostoiévski romancista foi um homme de lettres, um prestimoso servidor de um ofício admirável, nada mais. Sem sucesso, tentei muitas vezes convencer Baroja de que Dostoiévski era, antes de tudo, um prodigioso técnico do romance, um dos maiores inovadores da forma romanesca.

Melhor exemplo da lentidão própria do gênero romance não há. Seus livros quase sempre têm muitas páginas, embora a ação apresentada seja brevíssima. Por vezes são necessários dois tomos para relatar um acontecimento de três dias, quando não de algumas poucas horas. Porventura há um caso de maior intensidade? É um erro crer que esse mesmo efeito pode ser obtido com a narração de um grande número de incidentes. Muito pelo contrário: isso se consegue com poucos incidentes altamente detalhados, ou por outra, desenvolvidos. Como em tantas outras coisas, também aqui impera o non multa, sed multum. A densidade é alcançada não pela justaposição de peripécias, mas pela dilatação de cada uma delas mediante a descrição de seus elementos mais insignificantes.

A concentração do enredo no tempo e no lugar, característica da técnica de Dostoiévski, nos faz pensar, inesperadamente, que as veneráveis “unidades” da tragédia clássica são recuperadas. Tais regras, que convidavam, sem que se soubesse por quê, à continência e à limitação, aparecem agora na forma de um fértil recurso para a obtenção dessa densidade interna, dessa como que pressão atmosférica dentro do volume romanesco.

Para Dostoiévski nunca é demais preencher páginas e mais páginas com os intermináveis diálogos de seus personagens. Graças a esse abundante fluxo verbal, aprofundamo-nos em suas almas e essas pessoas imaginárias aos poucos, a olhos vistos, adquirem uma corporeidade que nenhuma definição pode fornecer.

É fascinante constatar a astúcia de Dostoiévski para com o leitor. Quem não observar atentamente crerá que o autor define cada um dos seus personagens. Com efeito, quase sempre que vai apresentar-nos alguém, começa por referir-se brevemente a sua biografia, fazendo-o de tal modo que pensamos saber, desde o início, tudo sobre sua natureza e suas potências. Mas assim que começam a de fato atuar – quer dizer, conversar e agir –, sentimo-nos confusos. Os personagens não se comportam de acordo com a imagem deixada por aquela suposta definição. Àquela primeira imagem conceitual que nos foi dada, segue-se uma segunda em que, de maneira mais íntima, os vemos viver, e esta já não aparece definida, diferindo substancialmente da outra. Então é suscitada no leitor, por um inevitável automatismo, a preocupação de que os personagens lhe escapem na encruzilhada desses dados contraditórios, e, sem querer, ele é impelido a procurar respostas, esforçando-se por interpretar as indicações opostas para chegar a uma imagem unitária; isto é, ocupa-se em defini-los ele mesmo. Isso é justamente o que acontece conosco em nossas relações pessoais. O acaso as conduz ante nós e as filtra no orbe de nossas vidas sem que nada se encarregue oficialmente de no-las explicar. A todo momento vemos sua difícil realidade, não meros conceitos. E essa incerteza atmosférica, difusa e volatilizada, essa relativa resistência do nosso próximo a ajustar-se completamente às nossas idéias a seu respeito, é o que o torna independente de nós e nos faz senti-lo como algo real, efetivo e transcendente a nossas imaginações. E com isso chegamos a este corolário: o “realismo” – chamemos assim para não complicar – de Dostoiévski não se encontra nas coisas e fatos por ele narrados, mas na maneira pela qual o leitor se vê obrigado a lidar com eles. Não é a matéria da vida o que constitui seu “realismo”, mas sim a sua forma.

Nesse estratagema para confundir o leitor, Dostoiévski chega à crueldade, pois não só evita esclarecer-nos os seus personagens por meio de antecipações definidoras, como também faz o comportamento deles variar a todo momento, apresentando-nos diferentes facetas de cada um, e desse modo eles parecem tomar forma e ganhar unidade pouco a pouco diante dos nossos olhos. Dostoiévski evita a estilização dos personagens e se compraz em tornar evidentes seus equívocos, como acontece na realidade. O leitor se vê obrigado a reconstruir, entre hesitações e correções, sempre receoso de ter cometido um erro, o definitivo perfil dessas criaturas mutáveis.

Em razão deste e de outros artifícios, os livros de Dostoiévski – os melhores e os piores – nunca parecem falsos ou convencionais. O leitor nunca dá de cara com os bastidores do teatro, sente-se imerso em uma quase-realidade perfeita, sempre autêntica e eficaz. Porquanto o romance exige – ao contrário de outros gêneros poéticos – que o leitor não o perceba como um romance e que as cortinas e o tablado não sejam vistos. Balzac, se lido hoje, nos desperta de nosso sonho romântico a cada página, pois esbarramos em seu bailéu de romancista. Entretanto, a mais importante qualidade da estrutura propiciada por Dostoiévski ao romance é difícil de explicar, e prefiro falar dela em outro momento.

Por outro lado, convém afirmar desde já que esse hábito de não definir, ou melhor, de confundir, essa contínua mutação de personagens, essa condensação de tempo e lugar, enfim, essa morosidade ou lentidão, não são exclusividade de Dostoiévski. Todos os romances que hoje continuam a ser legíveis coincidem mais ou menos em seu uso. Tome Stendhal, em seus principais livros, como um exemplo disso. O Vermelho e o Negro, que, por ser um romance biográfico, narra alguns anos da vida de um homem, é composto de três ou quatro quadros diferentes uns dos outros, os quais funcionam como os romances do mestre russo.

O último grande romance – a monumental obra de Proust – intensifica ainda mais essa estrutura secreta, de certo modo levando-a à exageração. 

Em Proust, essa morosidade, essa lentidão chega a seu extremo e quase se transforma em uma série de planos estáticos, sem movimento, sem progresso nem tensão. Sua leitura nos convence de que a medida da lentidão conveniente foi transpassada. A trama é quase anulada e o último resquício de interesse dramático, apagado. O romance é assim reduzido à pura descrição imóvel, e com exclusividade é exagerado o caráter difuso, atmosférico, sem ação concreta, o qual é, verdade seja dita, essencial ao gênero. Notamos que lhe falta o esqueleto, o rígido e tenso suporte, que é o aramado do guarda-chuva. Desossado, o corpo romanesco torna-se uma nuvem informe, um plasma amorfo, celulose sem dintorno. Por isso eu disse antes que conquanto a trama e a ação tenham um papel mínimo no romance atual, no romance possível não convém eliminá-las completamente, e sua função, decerto apenas mecânica, do fio em um colar de pérolas, do aramado em um guarda-chuva, das estacas na barraca, deve ser mantida.

Minha idéia – que antes de ser rejeitada pelo leitor merece alguma consideração – é, pois, que o chamado interesse dramático carece de valor estético no romance, apesar de ser uma necessidade mecânica. A razão dessa necessidade se origina no princípio geral da alma humana, que merece ao menos uma breve exposição.

José Ortega y Gasset (Madrid, 9 de maio de 1883 – Madrid, 18 de outubro de 1955) foi um filósofo, ensaísta, jornalista e ativista político, fundador da Escola de Madrid. O ensaio original, “Dostoyewsky y Proust”, pode ser encontrado na coletânea “Ensaios sobre la novela”(1925)