Fingir a dor que deveras sente – uma leitura de “Ao Divino Assassino” de Bruno Tolentino

por Jessé de Almeida Primo

“Ao divino Assassino”, publicado em 1998 como frontispício à edição definitiva de Anulação e outros reparos,[1] e republicado em 2002 com modificações na seção “Lição de trevas”, no Mundo como ideia (ed. Globo, 2002), é algo como a parada de sucesso de Bruno Tolentino, como outrora o foi “Noturno”, do seu livro de estreia, que por coincidência é também uma lírica amorosa, a qual de alguma maneira não é um tipo de poesia que de modo significante lhe ocupa o espírito, a não ser que sirva para ilustrar a sua verdadeira obsessão, que é o mundo como ideia.

O termo “parada de sucesso” mesmo sendo atenuado pela locução comparativa, “algo como”, não é o mais adequado, uma vez que, atenuado ou não, implica uma recepção popular que é mais comum ao show business. Trata-se antes de uma identificação emocional, tanto de leitores e críticos, com o elemento amoroso de sua lírica. Se observarmos os leitores de Tolentino nas redes sociais, os poemas que os blogues e sítios virtuais de poesia geralmente publicam, veremos que A balada do cárcere[2] e As horas de Katharina são as obras mais lidas, mais apreciadas. Em tempo, nada há de desmerecedor nisso. Esses dois livros não são afinal “marginália” em relação ao restante de suas obras, a despeito do que disse o próprio autor sobre a Balada.[3] A organização interna de ambas é tão cerrada quanto o são O mundo como ideia e A imitação do amanhecer, e o que as torna porém mais bem recebidas é o fato de serem grandes poemas sobre o amor, amor esse que se expressa não apenas com engenho e arte e sim com uma intensidade emocional de tal ordem que dificilmente deixaria de comover, atingindo assim o mesmo efeito da lírica propriamente dita.

Ao que parece, se nos ativermos aos jornais de grande circulação, os livros de Tolentino mais resenhados foram justamente esses dois. Nas apreciações ao Anulação e outros reparos, por sua vez,  o já mencionado poema “Noturno”, uma lírica amorosa, esteve presente nas apreciações de Ivan Junqueira, em 1964, e de José Guilherme Merquior, em 1974, e imagino o efeito que teria sobre eles e outros críticos da época – sem contar Merquior, que já conhecia – se a série “Elegia obsessiva”, que é uma das mais fascinantes reflexões amorosas já expressadas na lírica,  tivesse sido publicada na primeira edição.

Os críticos, torturando-se por distinguir-se do grande público, e tentando menosprezar seus próprios sentimentos e impressões, podem declarar que gostam do poema ou autor ou livro específicos devido ao seu aspecto crítico, objetivo, irônico, não comumente explorado na lírica que desperta mais simpatia entre os leitores em geral, como se as impressões desses que, por vezes, não conseguem expressá-las com as palavras mais justas, ou por jargões acadêmicos, fossem destituídas de autoridade do gosto, quando na verdade têm sensibilidade para o que leem, faltando apenas algumas lacunas que cabe ao crítico preencher na sua função pedagógica, e como se os efeitos dos grandes poemas amorosos não dependessem justamente daquilo que torna a poesia do pensamento também grande, o domínio linguístico-formal, a capacidade de elaborar uma música poderosa pelas palavras, a escolha da palavra certa, da frase certa, que atenda aos requisitos do “best words in the best order”. Claro que isso ainda é muito pouco e se pode até certo ponto conseguir por meio de exercícios ou por imitações de literatura. Refiro mais ainda a uma pulsação, “voltagem poética”, nessa expressão feliz de Merquior, que torna as meras combinações das palavras em algo de outra natureza, naquilo que distingue um simples discurso bem elaborado musicalmente como literatura, como poesia. O aspecto autocoercivo de se relacionar com a poesia tão frequente na crítica acadêmica não é exagero da parte deste que vos escreve. O testemunho de Érico Nogueira, poeta e também professor universitário, é bastante elucidativo:

Em matéria de poesia e poética, os anos 1990 talvez possam descrever-se, no Brasil, como a década de João Cabral de Melo Neto(…)  Príncipe dos poetas brasileiros desde a morte de Drummond, em 1987, e ganhador, em 1990, do prestigiosíssimo  Prêmio Camões, Cabral teve a obra completa lançada pela primeira vez em 1994, e uma segunda e atualizada edição em dois volumes de sua poesia completa em 1997, publicações essas que, secundadas pela aclamação de poetas, críticos e professores universitários do porte de Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa e Antônio Carlos Secchin, entre tantos outros, lhe valeram a ele, ou antes a seus princípios compositivos, uma preeminência e autoridade que beiravam o vigor de lei. Num clima poético como esse, dominado por palavras de ordem como “concretude”, “objetividade”, “concentração” e “antilirismo”, a poesia filosófica e classicamente lírica de Tolentino soou como música nova aos ouvidos mais atentos.[4]

Alcir Pécora, por sua vez, comentando O mundo como ideia, talvez seja um dos poucos, assim como Nogueira, a não usar o silício crítico ao fazer apreciação de poesia:

Operando com formas fixas da tradição da poesia mais elegante e cerebral, como o soneto e a terça-rima, ele obtém um raro efeito de narração fluente, com palavras muitas vezes na ordem direta e sintaxe escorreita, ajustando-se mansamente à regularidade dos versos e ao padrão das rimas, sem prejuízo da variedade rítmica. O léxico é precioso, a matéria, erudita, e o tom, sentencioso, mas entrecortados por uma riqueza esquisita de registros que admite o ordinário, às vezes, na mesma frase que busca o sublime. As metáforas são abundantes e congruentes, o que, nele, tanto amplia o colorido do enunciado, quanto facilita a expansão perifrástica do tema.[5]

Pécora sente-se tão à vontade no seu ofício que não teme gostar do que muitos gostam só para se mostrar original. Isso fica muito evidente quando faz um comentário jocoso aos críticos que não gostam da poesia tolentiniana, ou fingem não gostar, por lhes parecer “anacrônico uma poesia com métrica e rima; ou mesmo, quem sabe, porque lhes tenha soado pobre uma poesia que, ao rimar, ilusão não exclui coração nem paixão, como um Roberto Carlos dos ricos.”[6] E dentro dessa contracorrente mesmo nos aspectos mais cerebrais da poesia tolentiniana ele encontra, e com muita satisfação, a suavidade da música, encontra enfim os elementos poéticos que não tornam sua leitura num instrumento que inflige dores, não se tratando pois de assumir um compromisso com determinado pensamento que o obriga a gostar incondicionalmente de poemas que estejam de acordo com esse pensamento e de rejeitar outros que não estejam dentro de qualquer contrato íntimo de grupos.

A apreciação que se flagela para parecer séria da poesia certo começou com o advento do Modernismo de 22, quando a propaganda acadêmica colocou Oswald de Andrade e Mário de Andrade no centro do movimento. Drummond e Bandeira é claro são associados ao modernismo, mas de forma secundária, uma vez que não perderam tempo tentando se distinguir do parnasianismo ou desse ou daquele autor ou movimento literário que lhes parecessem antigos, ultrapassados. Isso foi radicalizado pela crítica e produção poética surgidos no movimento Concreto, dos anos 50, tendo na frente os irmãos Campos e Décio Pignatari, embora fossem mais próximos ao neoparnasianismo da geração 45 do que desejavam parecer, mesmo nos seus trabalhos vanguardistas, e da qual a todo custo e recurso a “ismos” tentavam se dissociar. Em 1962, no famoso ensaio “A falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45”,[7] José Guilherme Merquior esforçou-se ao máximo para desvincular a poesia de João Cabral de Melo Neto da que se escrevia na Geração de 45, tarefa essa que foi levada adiante por Haroldo de Campos em 1967[8] ao escrever um ensaio sobre o consagrado poeta pernambucano, chegando a usar a mesma expressão de seu predecessor, a de que a relação entre a poesia de Cabral e a da geração 45 era “meramente cronológica”. Antônio Carlos Secchin, embora seja um crítico vivamente empolgado pela poesia Cabralina, e com a poesia em geral, cai na mesma tentação, que tem algo de masoquista, ao não reconhecer em Morte e vida Severina um poema que representa a poesia cabralina, como se verifica na introdução à Poesia completa de João Cabral de Melo Neto, publicada pela Afaguara em 2021.

E foi justamente essa atmosfera poética com que a poesia de Bruno Tolentino teve de lidar e também enfrentar, embora sua obra não rejeite, antes absorve, as conquistas do Modernismo, seja europeu seja brasileiro, desde o tipo de registro linguístico, algo mesclado, certa dicção urbana, uma sensibilidade nacional que se traduz em algumas construções e expressões, contudo sem o apelo a exotismos locais com que se procuram jogar holofotes sobre essa sensibilidade, a flexibilidade métrico-formal, entre outros, e muito distante da dicção parnasiana a que seus detratores quiseram articular-lhe a obra não por Tolentino censurar o parnaso também, mas pelo simples fato de que seu caminho é outro, de que sua dicção respira por outros meios.

A obra poética de Tolentino é muito variada, entretanto todos os assuntos de que trata são uma oportunidade para refletir sobre a recusa ao mundo real por se buscar algo, mesmo sabendo-o irreal, que se esvai toda vez que se acorda,  abraçando-se contornos fantasmagóricos ou sombras, e assim submete-se a carne à condenação – diz-nos os versos de “Perfeição, imperfeição”, da Balada do cárcere –  de “gemer por fogueira apenas”. O fantasma de Baudelaire, do poema “Espectro”, adverte: “A Ideia te convida/ mas não recebe nunca”. Isso porém não importa, seremos sempre aquela figura a quem o mefistofélico amante tão bem retratado num poema de Nívia Maria de Vasconcellos perguntará: “Teu sofrimento vale a pena/ pelos instantes de céu que concedo?” Lembremo-nos de que Adão e Eva, embora estivessem no Eden, entre o aviso de Deus, que com eles andava, e o instante de céu que a serpente oferecia por meio do fruto proibido, preferiram esse, mera e pálida contrafação. Dessa maneira, “Ao divino Assassino” expressa não tão-somente uma recusa ao mundo real (nas palavras do próprio autor “o mundo como tal”), mas o como um espírito agudamente realista também pode se deixar perturbar, uma vez posto à prova,  diante do real em sua inteireza, que revela contornos indesejáveis, temidos. Saber a verdade não é o bastante. Adão e Eva, como já disse, andavam com Deus, e deram ouvidos a uma serpente. Os discípulos que andaram com Cristo, incluindo o primeiro papa, vacilaram diante Dele.  E o próprio Tolentino, ele mesmo, à página 16 do prefácio ao Mundo como ideia, escreve: “não vivi exatamente infenso às sereias da ideia.” Por mais mitômano fosse ou parecesse, foi uma das pessoas mais transparentes que já conheci e, crede, uma das mais realistas.  Embora, então,  tenha sido escrito sob uma circunstância muito pessoal, é, como outro grande poema amoroso que é o já citado A balada do cárcere, uma das peças que compõem a meditação sobre o mundo como ideia, uma ária de uma grande ópera.

O poema em questão aparece como dedicado à memória de Anecy Rocha, atriz e irmã do cineasta Glauber Rocha, e sua composição ter-se-ia iniciado em 1979, dois anos após a morte dela num acidente de elevador, e concluído em 1997, um ano antes da publicação na reedição do já mencionado Anulação.

O poema e as circunstâncias em que se funda são muito tocantes, intensos, e  fez grande impressão em seu público o envolvimento com uma atriz, como se dizia, cult e irmã de outra grande personalidade da história do cinema nacional, efeito semelhante ao impacto que teve o Numeropata, cuja história é contada no prefácio ao Balada do cárcere e dramatizada nas líricas desse mesmo livro. Se essas histórias realmente aconteceram, travar conhecimento com um assassino a quem educou e fez amadurecer ou ter um envolvimento amoroso com uma musa do cinema, pouco importa para o que lhe chamo verdade literária, não depende de que algo aconteceu. É necessário antes de tudo que seja verossimilhante ou expresse determinados sentimentos como realmente são,  e isso exige menos de uma experiência pessoal que da simpatia para com os sentimentos ou experiências alheias, e da capacidade de expressá-las em poesia, como aliás é notório nas personagens de Shakespeare dos quais o contorno e a concretude ainda espantam a crítica e motivou Harold Bloom a atribuir ao Bardo a “invenção do humano.” Há outro grande precedente na poesia, que é Fernando Pessoa ao criar os heterônimos:

…pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.[9]

Vemos n’A balada do cárcere a formação do próprio poeta, ora aparecendo como o Numeropata, que romantiza ou justifica seus piores atos com o império das paixões, vendo-as como uma entidade onipotente (Não tinha nenhum motivo// de matar o que adorava;/ apenas porque a cratera/ não pode conter a lava/ nem compor a frase certa// mata-se em vão neste mundo.) e ora aparecendo como a voz da primeira e terceira partes (Era o 212!/ Voltava a cara, ou as costas,/ se o alguém o chamava Ambrose (…)), que é o poeta após uma travessia, o qual entrou na prisão como, segundo o próprio autor, esteta e dela saiu poeta[10], e isso de resto acontece nas outras obras dramáticas, em que conta a própria história por meio da personagem Katharina, nas Horas de Katharina,[11] e pelas duas personagens da Imitação do amanhecer,[12] na qual ora se apresenta na figura do espírito juvenil do amante que morre, alguém que – bem traduzido nos versos dedicados a Merquior n’Os deuses de hoje –  “conseguiu passar tão bem,/ tão distraído, no lugar mais feio/ da esplêndida viagem” –, ora na figura do amador, que, esteta ferido, o mumifica na esperança de guardar-lhe a beleza e por fim aceita que a verdadeira beleza é a que se fere. O fato é que Tolentino extraiu ao episódio da morte de Anecy Rocha uma das maiores realizações lírico-elegíacas de língua portuguesa, que atingiu de forma especial o coração de seus leitores que já estavam, por sua vez, tomados pelo pathos amoroso do já mencionado Balada do cárcere, além do religioso, e igualmente amoroso, de As horas de Katharina.

O poeta encontrou em tercetos dantescos a forma exata para ilustrar sentimentos tão conflitantes, de alguém que se divide entre o amor romântico de quem não aceita a morte da amada e a devoção a Deus, por vezes proferindo blasfêmias, fazendo uso em algumas passagens do registro mais vulgar ao mais sublime, como vez ou outra acontece na Divina comédia, até culminar na aceitação dos desígnios divinos, uma aceitação dolorosa, a qual por pouco não ultrapassa o limite da pirraça, até aceitar que a noite desça,  que se vê também em “Versos para Joaquim”, de Bandeira: “Joaquim,  a vontade do Senhor é às vezes inaceitável”. E se essa forma, que é a terça-rima, serviu aos princípios dantescos de ilustrar a elevação da alma ao Paraíso, aqui ilustra o derramamento, um sentimento que se prolonga em vários sentimentos, reações, e também uma espécie de elevação, uma vez que num único poema vemos uma alma em estado de profunda agonia que aos poucos entre altos e baixos, entre quedas e erguimentos, vai se apaziguando até finalizar num arremate de grande força: “mata, Senhor, que a morte não faz mal.”, cuja assertividade tanto da matéria quanto rítmica, que freia bruscamente os tercetos, sugere o arrebatamento ou o corte da morte. Não à-toa nos tercetos que compõem “Travessias” de O mundo como ideia há uns versos que ilustram muito bem o propósito dessa forma, de como ela, na qual o esquema de rimas é crescente, é mais adequada para descrever, como diz o título, uma travessia, um processo de formação do espírito humano: “Se eu não tentasse aquela travessia/ lograria um soneto, uma balada,/ uma estrofe outra vez?” Ou por outra, essas formas que menciona têm, nessa ilustração ao menos, um caráter mais sumarizante, como se lhes coubesse apresentar, na falta de palavra melhor, um resumo, ou antes uma condensação, quiçá uma pintura ou um instantâneo, de uma experiência interior, não o desenrolar dessa experiência, com todas as implicações.

Tanto a balada como o soneto se definem por um número específico de versos, além dos quais se tornam outra coisa que é a sombra da forma fixa original, diferentemente da terça rima que, embora seja elaborada por um tipo de estrofe e distribuição rímica específica, tem como limite na sua extensão a quantidade de combinações rimárias a ser utilizada, ou seja, o esquema rimário pode ser matematicamente rigoroso, não obstante possa estender-se muito mais que qualquer outra forma fixa. Mesmo essas formas mais associadas a uma lírica mais subjetiva, mais sentimental, são menos um soneto, uma balada ou assemelhados que estâncias de um grande poema de que o início está em Anulação e outros reparos e o fim, na Imitação do amanhecer. Lembremo-nos que “O espectro”, que também é uma travessia, é também uma terça-rima e o efeito dessa travessia, dessa formação, é intensificado pela sintaxe estendida, em sucessivos enjambements, que resultam numa musicalidade mais sinuosa, numa melodia poética que se prolonga ao infinito, sempre se elevando.

As mudanças por que passou essa elegia tornaram o poema ainda melhor, surpreendendo assim quem acreditava que algo tão bom poderia alcançar um grau ainda maior de realização. Se na primeira versão que publicou lemos “nunca viram os mais alvos crisantemos.” (com verso terminando em acentuação grave), fundando-se no deslocamento acentual de que a tradição poética em nossa língua tem se valido (E , entre a alga e o sargaço, a gemma/ mais rara deslumbra, e estão/ de Cleopatra o diadema(..)[13]), acabou por ceder à acentuação a que nossos ouvidos são mais afeitos, que é a esdrúxula, “nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos.” Ter, ademais, percebido, ou sido advertido por outrem, de que o correto era “Paray-le-Maunial” fê-lo reescrever o verso “Tricoteia Paray-le-Maunier”, transformando-o em “antenas às Tuas cenas de TV”, cuja articulação com o verso anterior, “enfia agulhas no Teu céu de lã”, que o intensifica, é bem mais expressiva e funcional, e cuja concretude e recurso a um símile que se vale de uma imagem a um tempo tão a nós familiar e inesperada – sim, mero objeto de uso doméstico – serviram muito bem a um visionarismo poético de muita força, digno dos melhores momentos de Murilo Mendes e de Jorge de Lima.

Essa habilidade é mostrada em outros poemas, entre eles o já citado “Travessia”, no qual descrevendo-se numa imensa paisagem gelada faz uso de uma imagem em que o cômico ou o ridículo de desenho animado ou de filmes fantásticos, ou mesmo dos jogos alucinantes com imagens à maneira de Alice no país das maravilhas, intensificam um pesadelo: “para fazer do incauto caminhante/ um sorvete esquecido na brancura// da geladeira por algum gigante.” Há, ademais, o acréscimo de um belo efeito acústico graças à gradação regressiva da passagem (e de uma hábil rima interna) de “anTEnas” para “CEnas”, em que a consoante dental “T” suaviza-se no “C” sibilante de “cenas”.

A melhoria do poema não se deve apenas a essas mudanças indicadas, mas a uma atitude que pode parecer escandalosa a alguns poucos que não tiveram acesso aos originais de O mundo como ideia e por isso podem se surpreender com o fato de que era dedicado a outra pessoa. O poema, com efeito, foi escrito em memória de Cecília Tolentino[14], sua irmã, que morrera, creio, em 1985, e a quem Tolentino escreveu ao menos mais outro poema, também elegíaco, “O Ás de ouro”, aliás, inédito, que o autor esperava publicar no Mundo como ideia.  Isso consequentemente põe em dúvida a datação dessa lírica, da qual a composição, a julgar pelo ano da morte da irmã, teria começado no meado dos anos 80, não em 1979, e possivelmente no calor do momento. Podemos também admitir a possibilidade de o poeta tocado pela morte de Anecy Rocha ter realmente esboçado o poema em 1979,  não conseguindo porém levar a composição adiante, tendo-a abandonado até que sua irmã morrera e ele então vira a possibilidade de retirá-la à gaveta e reescrevê-la sob essa circunstância, transferindo a dedicatória a ela, e, anos depois, já mais distante daquele acontecimento trágico envolvendo a atriz, viu a oportunidade de retomar mais uma vez o poema que, bem ou mal, já estava concluído e, por fim, dar-lhe o formato definitivo, conhecido do público, ao qual se ajusta melhor.

Partindo da possibilidade de que a homenagem fúnebre a Anecy Rocha apenas se esboçou em 1979, que não se concluiu, é admitir consequentemente que o poema começou de fato, ganhando o primeiro contorno completo, com a morte da irmã. É muito mais crível que a morte de Cecília Tolentino, por quem parecia nutrir grande afeição, lhe tivesse causado mais comoção do que a morte de uma atriz famosa, cuja perda teria mais impacto cultural que sentimental, por mais a admirasse e tivessem se relacionado como amantes. E não descarto a possibilidade de ele ter se relacionado antes com um símbolo, um monumento hedonista, uma diversão que se torna uma necessidade, que com uma pessoa. No já mencionado “Ás de ouro” há certo tom de inconformismo diante da morte aparentado ao “Divino Assassino”, uma espécie de urgência do desespero: “Perdi-lhe as fotos todas, que o desastre/ queria ser total…” ou o patetismo romântico da revolta: “E toda pulcritude, a singeleza/ de um corpo sem motivo de morrer” que, por sinal, ecoa “a carne não entende o que é morrer…”, um dos versos da primeira versão de “Ao divino Assassino”. A mim me parece que  “O Ás de ouro” tenha sido composto um pouco depois como uma versão menos derramada, de emoção mais explicitamente controlada, e sem o recurso à litania. Não que tivessem os tercetos elegíacos resultado num poema ruim, mas percebera de algum modo, por mais a forma se ajustasse ao objeto, que não era exatamente o poema que esperava escrever. Afinal, esses versos citados do primeiro soneto da série “O Ás de ouro” e mais ainda os do segundo parecem mais escancaradamente estudados, mais meditados, valendo-se de imagens propositalmente convencionais, garantindo assim maior controle sobre o efeito pretendido,

E toda a pulcritude, a singeleza
de um corpo sem motivo de morrer,
todo o esplendor que faz que o amanhecer
estenda um arco à jovem flecha tesa,

tudo o que eu tive como só o ser
tem a alma nas mãos, toda a certeza
de haver vivido tudo e não haver
regateado nada a uma princesa,

tudo aquilo por conta de um sorriso,
franco como no Dia do Juízo,
voltou-me matinal… E aquele rosto

aceso como a chama triunfal
que nunca há de apagar-se, ardendo posto
que tudo arde, enterrou-me o punhal!    

ao contrário do primeiro, que tem a emotividade patética da terça-rima, algo como “Ao divino Assassino” intermediado por uma voz lírica que não se deixa dominar pela emoção, mas, sim, usa-a como instrumento retórico, com um fim buscado e atingido:

Perdi-lhe as fotos todas, que o desastre
queria ser total! Toda catástrofe
presume-se completa e um holocausto
tende ao universal. Mas uma estrofe

escapara à canção do cisne incauto,
lograra confundir a luz que sofre
e antes, bem antes de cantar à morte,
salvara-me um solfejo: com seu casto

uniforme escolar, nos vagos rastros
da luz de um raio, um flash havia oculto
um jovem rosto! E a pétala que a exausta

haste humana tornou restos de um vulto,
na longa noite negra um belo dia
sorriu-me da gaveta que eu abria!

Essa especulação reforça outra: da mesma forma que “O As de ouros” é uma tentativa de corrigir certo exagero farsesco de “Ao Divino Assassino” é de se acreditar, e é nisto que acredito, que a forma definitiva que homenageia Anecy Rocha seja uma apuração estético-emocional dos dois, do já aludido aspecto farsesco daquele e do controle emocional demasiado deste, é um equilíbrio perfeito entre o conteúdo patético e a dicção contida.

Embora a verdadeira natureza da relação entre Tolentino e Anecy Rocha não seja algo esclarecido, qual o grau de consistência dessa relação, as circunstâncias foram sem dúvida favoráveis a esse encontro, como as frequentes idas de Tolentino a Salvador e as relações culturais que construiu na Escola de Teatro da Bahia, onde proferiu a palestra “Uma poética em direção ao real”, em 1961, segundo informa o verbete “Bruno Tolentino” constante na enciclopédia Delta Larousse, publicada nos anos 70. A julgar pelo soneto “Hosana à cidade do São Salvador”,  do livro Os deuses de hoje,[15] no qual uma cidade se antropoformiza numa figura feminina, é de supor que houve algo concreto, talvez não um envolvimento amoroso na acepção exata do termo, mas um envolvimento intenso entre parceiros que vivem como se essa relação não fosse durar, e uma das partes, por outro lado, por mais que veja a relação da mesma forma, a partir de algum momento não se conforma com que as coisas acabem e se ressente ou do sentimento de abandono ou do domínio imperioso das paixões sensuais:

E a ti também adeus, cidade orgia,
concubina do deus que não te doma(…)
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—————————————–
Azulejo, coágulo e carranca,
loba que vi comer meus olhos presos,
presos à tua fúria ágil e mansa,

soma mais este à multidão de adeuses
que te alimenta(…)

Esse poema, vale destacar aqui, retoma, deliberadamente ou não – é também um topos romântico que não perde sua atualidade –  “A mulher na noite”(Forma e exegese, 1935), de Vinícius de Moraes, a mesma sensação angustiante de impotência perante uma mulher que, como disse antes, é antes um monumento hedonista que uma amante:

Eu estava imóvel –  tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
e de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
e as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
e muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.

“Loba que vi comer meus olhos presos” ecoa o “Tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido”, verso esse em que um vegetal majestoso, “pinheiro erguido”, reaparece nos versos de Tolentino na figura de um animal, “loba”. Os versos “me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos/ e as formigas me passeavam pelo corpo úmido”  tornam-se num símile mais econômico, e de igual força: “comer meus olhos presos”. Em “Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito” está contida a imagem da  “fúria ágil e mansa”.

O mesmo clima se repete, menos patético e mais controlado, atendo-se mais ao descritivo, em “Dobres”, de Anulação e outros reparos:

De minhas mãos te cubro e não consigo
tocar-te as penas nem as alegrias,
nem consigo entender as agonias
lúcidas, livres, tuas – mas te sigo

e ligo-me ao teu peito e não me ligo
à secreta razão dessas sangrias,
esbato-me contigo e passo os dias
a descobrir que nunca estás comigo.

Pois mal sou eu que te consinto e espanto
e me percebo dissolvido e raso
de ter o que não tenho e me tem tanto

quanto não sou, não somos: muito mais
que rápidos, estamos por acaso
e nos aproximamos para trás.

Tanto neste como no soneto anterior, percebe-se haver uma assimetria na relação (loba que vi comer meus olhos presos” e “dissolvido e raso/ de ter o que não tenho e me tem tanto/ quanto não sou), de modo que se houve esse relacionamento foi-o provavelmente neste termo, “muito mais/ que rápidos, estamos por acaso/ e nos aproximamos para trás”. Primeiro, ele era apenas alguém que a um só tempo poderia ser contemplado pelo prazer que ela, um monumento hedonista, poderia lhe proporcionar, tal se uma esmola desse, e ser mais um que será sempre preterido pelo próximo ou pela festa da vida. Depois, a distância física, ele na Europa, numa vida errante; ela, casada, no Brasil. E finalmente, a perda definitiva, todavia dentro do clima amoroso de disputa. Dessa vez contra um adversário invencível: “e imaginá-la em Tua eternidade/ dói demais!”, uma vida, enfim, em perseguição da sombra, de uma sombra com carne, mas sombra mesmo assim, revivendo os versos de “Instabilidade”, também da Balada: “apaixonado perseguira/ a ninfa desejada e se abraçara/ ao tronco indiferente de um loureiro”.

Da relação em si não há duvidar. A dúvida mesmo reside em saber se de fato ele passou por toda essa agitação. Afinal, são apenas deduções a partir de leituras de alguns poemas amorosos escritos em diferentes momentos de sua carreira. Talvez sejam exercícios imaginativos. Não há como saber. Ele é, não esqueçamos, um poeta de sensibilidade muito aguda, capaz de reconstituir em versos as feições, caráter e sentimentos alheios, como só um poeta dramático poderia fazer. O seu gênio dramático é tão bom quanto o lírico. Resta então saber, se se trata de um eu pessoal, real, que se transfigura num eu-lírico. Ou seria uma grande personagem apaixonada e apaixonante que o poeta criou, do mesmo modo que Pessoa criou seus heterônimos? Ou ainda, em outros termos, não seria um mentiroso genial que se transforma, por meio de grandes versos, numa personagem que conseguiu fazer as coisas incríveis que ele mesmo, como alguém real, não fez e conseguiu ser o que ele mesmo não foi?

Trata-se, pois, de entender o que se lhe passou no espírito criativo em determinadas circunstâncias ou, mais propriamente dito, por que ele se sente mais à vontade em mostrar um sentimento amoroso genuíno por alguém apresentando-o sob as aparências de um terceiro ou com uma voz lírica que não é a sua, mas a voz dramática.

Entre uma e outra versão do poema há diferenças fundamentais, entre as quais, como já indicado, a diferença de rumo que o poema manifesta quando a pessoa a respeito de quem a voz lírica fala para Deus não é mais a irmã, é a amada. A versão definitiva é também maior, são 46 estâncias contra 31 da versão anterior, dedicada à irmã. Os cinco primeiros tercetos, com recurso a apóstrofe, são praticamente os mesmos, começando a mudar de fato no sexto terceto, a partir do qual começamos, aos poucos, a saber de quem o poema está tratando, além de introduzir, em substituição às imagens domésticas típicas de um ambiente familiar, tão marcantes na primeira versão (… Mas por que mal,/ Senhor, paga a indecência da orfandade?/ Volto outra vez do mesmo funeral,// como não rebelar-me? Na verdade/ minha tribo não crê, talvez não preste(…))[16], o interior de uma igreja na Europa, numa família maior, uma comunidade, universal, católica mesmo, a partir do nono terceto, da versão de 1997: “(…) Aqui é a maravilha,// as genuflexões… Os potentados/ e os humildes, a nata da esperança,/ todos chegam por cá meio esfolados,// sangrando como a luz. Não só da França,/ toda a Europa rasteja até aqui/ esfolando os joelhos, não se cansa// de ensaguentar-se até chegar a Ti(…)

Essa introdução ao ambiente de uma igreja, em Paray-le-Monial, em França, amplia a comparação entre quem se beneficia da misericórdia divina e quem por esta se não  beneficia. No que na versão dos anos 80 é econômico nas enumerações, até porque tudo ocorre num ambiente doméstico, que se restringe ao próprio poeta, sua mãe e outros membros da família que orbitam em volta dela (“minha tribo”) – e nesse ambiente permanece em todo o poema –, na versão definitiva há a presença de um número maior de personagens (considerando os fiéis de toda a Europa a que o autor refere), além da família da própria Anecy Rocha (pai e mãe apartavam-me da filha/ e o irmãozão nem falar…), mantendo assim algo do espírito doméstico da versão anterior, mas por meio do deslocamento de quadro, de um ambiente interno, mais íntimo, de família, para um ambiente externo ou maior, uma igreja e seu entorno.

Como disse, a partir da sexta estância iniciam-se as mudanças. A sensação de abandono pelo Pai, a da orfandade divina, na versão que dedica à irmã, (Mas por que mal,/ Senhor, paga a indecência da orfandade?) –  como se essa orfandade outros males atraísse, aprofundando ainda mais o abismo entre o homem e Deus –   dá lugar a uma pergunta direta pela qual põe em dúvida o Seu amor como garantia contra todo o mal, na dedicada à atriz: “(…) Mas afinal,/ Senhor, amas ou não a humanidade?”, e à exposição de um sentimento lutuoso de um amante, mais ainda, de um adultério, de uma traição sobrenatural, que mais dói porque definitiva, incontornável: “e imaginá-la em Tua eternidade/ dói demais!” No terceto seguinte da versão dos anos 80, a perplexidade do “orfão” ou de quem assiste impotente à “crueldade” divina autoriza, por assim dizer, a que o irmão não sinta mais a obrigação de reverência, “como não rebelar-me?”

Ainda que, pondera a voz dramática, a sua família seja hostil ou indiferente aos desígnios divinos (Na verdade/ minha tribo não crê,/ talvez não preste), o fardo que tem de carregar pela descrença não é apenas pesado para o pecado cometido como em nada ajuda numa possível reconciliação: “mas não ajudas com a brutalidade/ com que arrancas de volta o que nos deste.”, resgatando assim o espírito que anima os versos do já citado “Versos para Joaquim”, de Manuel Bandeira: “Por que então chamar a que estava apenas a meio de sua tarefa?”. No mesmo terceto e no seguinte, uma tentativa de conter o arrebatamento de uma mãe, espécie de “Joaquim” bandeiriano, que também não sabe como lidar com a perda da filha, aliás dito em versos que são um equilíbrio perfeito  entre o pastelão mais escancarado e o dilaceramento doloroso, como se entendesse que a grande dor não se traduz necessariamente em gestualha nobre, mas sim em comportamentos ridículos (Minha mãe, dividida entre a família/ foi quem mais padeceu: se tinha a peste,// não sei, sei que afastavam-na da filha/ como se a fosse reenfiar na pança.), substitui-se pelo esforço por afastar os amantes apaixonados; e a peste da descrença, que era a maldição da família do amador, torna-se em uma peste social vaga que, por vezes, resulta numa rivalidade orgulhosa entre famílias: “Tu sabes que a soberba da família/ era maior que a dela e eu tinha a peste – pai e mãe apartavam-me da filha/ e o irmãozão nem falar… E hoje, coitados,/ como hão de estar?”

Em seguida, na versão definitiva, o relato de um milagre que o poeta testemunhou na Igreja,

Aqui é a maravilha,

as genuflexões… Os potentados
e os humildes, a nata da esperança,
todos chegam por cá meio esfolados,

sangrando como a luz. Não só da França,
toda a Europa rasteja até aqui
esfolando os joelhos, não se cansa

de ensangüentar-se até chegar a Ti
e ao menos a um pixote do Além Tejo
restituíste a vista; eu quando o vi

solucei – mas que o cego e o paraplégico
saiam aos pinotes, que o Teu coração
se escancare e esparrame um privilégio

aqui e outro acolá na multidão,
só me faz perguntar: E ela? E ela…?
Não consigo entender que a um aleijão

concedas tanto enquanto a uma camélia
Tu deixas despencar… Por que, Senhor?
Olho tudo do vão de uma janela,

mas vejo a porta de um elevador
escancarar-se sobre um outro vão,
um vão sem chão… E a seja lá quem for

aqui absurdamente dás a mão!
Me pões trêmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor – mas consolado não.

não alivia a alma do ressentimento de ver perder uma pessoa querida, entrevendo um rompimento,

A mesma mão que fez gato e sapato
da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,

Dominus dixit…

e assume o lugar  dos seguintes versos da década de 80:

Eis que volta a alvorada, e a maravilha

da luz que eu vi nascer desde criança
não me explica que um cante e o outro apodreça,
ata outra vez o fio de esperança

que me pendura a Ti; mas que amanheça, 
que a estas alturas do campeonato
Tua luz abençoe-me a cabeça,

não me consola não, sinto-me ingrato.
Sei que os urros e murros da agonia,
a dor velhaca, o avesso do contrato, 

virão a mim também: quem fugiria 
à grotesca rasura natural
que a todos desnatura um belo dia?

No poema que veio a público, vemos uma romaria de miseráveis, de doentes, de suplicantes  que, não bastasse o sofrimento de origem, os sacrifícios do dia a dia, ainda se oferecem mais em sacrifício em busca de uma cura (… Os potentados/ e os humildes, a nata da esperança/ todos chegam por cá meio esfolados,// sangrando como a luz…), que finalmente é atendida, pelo menos a alguns deles (e ao menos a um pixote do Além Tejo/ restituíste a vista), em contraponto a uma beleza, que sem justificativa, se destrói num acidente tão doloroso quanto horrendo: “Não consigo entender que a um aleijão/ concedas tanto enquanto a uma camélia/ Tu deixas despencar…”

Tanto na versão dos anos 80 bem como na dos 90, vemos algo como uma revolta luciferina. Não há de modo algum uma decisão de não mais crer na capacidade de Deus fazer algo por alguém. E sim, de pôr em questão a qualidade do amor divino, de  questionar qual  critério Deus usa afinal para salvar a alguns e fazer morrer ou deixar que morram outros: “Não consigo entender que a um aleijão/ concedas tanto enquanto a uma camélia/ Tu deixas despencar…”. Verso esse que dialoga com “E toda pulcritude, a singeleza/ de um corpo sem motivo de morrer” da série “Ás de ouro” e também com o já citado verso de Bandeira: “Por que então chamar a que estava apenas a meio de sua tarefa?”, que faz parte de um poema que provavelmente inspirou a primeira versão de “Ao divino Assassino”, no qual a figura de um pai substitui-se pela figura da mãe.

A perplexidade constante em “Ás de ouro” e também em “Ao divino Assassino” é exatamente a mesma, a saber, o não conformismo à violência contra a beleza que se faz representar pela figura da “camélia” ou contra um corpo, cuja pulcritude evidencia a falta de sentido que há na sua morte, e que parece reforçar que um poema seguiu ao outro, que a imagem de um afinou-se no outro, que a irmã efetivamente foi a inspiração primeira dos tercetos. A propósito, na versão do poema da década de 80, as imagens seguem também o mesmo princípio: “Eis que volta a alvorada, e a maravilha// da luz que eu vi nascer desde criança/ não me explica que um cante e o outro apodreça,/ ata outra vez o fio de esperança// que me pendura a Ti…”, nem os milagres nem a beleza do mundo consolam.

Essa mesma perplexidade, espécie de desconcerto camoniano, reaparece no poema “Em plena vida” de As horas de Katharina: “Não sei por que o Mestre,/ o Criador/ da delícia campestre,/ põe a cor// da treva por debaixo/ da sempre-viva…” O papa Bento XVI, visitando um campo de concentração, pensando em que tipo de sentimento aquele horror poderia despertar, referiu ao “silêncio de Deus”. Nesses exemplos, por um esforço simpático da parte do poeta, ou do mesmo papa tentando entender a mentalidade moderna ferida, vemos uma radiografia do que se passa no espírito em estado de revolta. Porém, no Mundo como ideia, há uma aceitação de que as coisas são o que são e que esse espírito de revolta, que não é apenas o inconformismo romântico com relação à perda do ser amado, mas o medo mesmo da morte, pode levar a um abismo moral dilacerante: “a pior traição é a que se faz/ quem vendo a luz sangrar fecha a janela.”(“Imitação da música”, terceiro poema). Por isso, por mais doloroso seja, nos resta não apenas  aceitar que “(…)Estamos sós/ e todos condenados a perder”,  mas que devemos celebrar  “juntos a sentença/ e a liberdade em vão do ser que pensa/ e repensa essa luz que vai morrer.”(“Imitação da música, ‘último’”). Não vemos aqui uma visão pela qual se aponta o dedo contra quem não percebeu o que ele, o poeta, percebeu após muitos percalços, ainda mais se tratando de quem escreveu:

(…) certa fé no humano,
inclusive a ambição de salvar
algo da luz, ou eu muito me engano
ou é a pedra-de-toque do ser.

vemos, sim, o anúncio mesmo da mudança na perspectiva a partir da qual se vê a beleza, que o esplendor da beleza não está exatamente numa conformidade obsessiva entre as partes, está sobretudo na perspectiva de que ela será ferida, que tudo vai acabar. E foi justamente por isso que uma série de sonetos perfeitos, harmoniosos, de notável musicalidade, encerra-se com “Finale”. A expectativa era de que  um soneto encerrasse uma sequência de 101 sonetos. Acontece que o dito poema é sem rimas, com certa variedade métrica, meio quebrado, no qual a verdadeira beleza se revela: “Lotte Lehaman cantando An die Musik,/ carregada para fora do palco/ em lágrimas, incapaz de terminar / a curva do soluço…” É de se imaginar que o público percebeu o como a beleza do lieder de Schubert revelou sua integridade justamente no momento em que a cantora, tão emocionada, não conseguiu concluir sua execução, não-conclusão essa que acaba por participar da melodia como se estivesse na partitura mesma do lieder. E essa sequência desdobra-se em mais de quinhentos sonetos que compõem A imitação do amanhecer, que é o livro posterior, dessa vez retomando a perspectiva de um grande poema dramático, cuja voz, a partir da visão dos cervos da Lapônia – diferentemente dos flamingos dos quais as asas refletem a luz do sol –, aceita que a noite desça: “Já não cabe mover-se com a mesma agilidade,/ desapetece-lhe correr na luz agônica/ que empalidece tão depressa e desmorona-/ se-lhe ante a coroa agreste e o pinheiral…” É justamente nesse momento que uma visão cristã se impõe, melhor dizendo, aparece com naturalidade, pois o corpo de Cristo só alcançou a forma gloriosa passando pelo flagelo e depois pela cruz.

Dito isso, o poeta percebe, e vemo-lo na versão dedicada à irmã, que seu fim será antecipado, como aliás aconteceu a ele mesmo, por longos sofrimentos, e que os versos já citados a alguns parágrafos, e de grande força sugestiva e visual ilustram: “Sei que os urros e murros da agonia,/ a dor velhaca, o avesso do contrato,// virão a mim também(…)”, como se o perseguisse uma espécie de maldição de família, de que um irmão, que morrera antes de Cecília, também foi vítima: “Igual/ à agonia do irmão que os dois perdemos,

sua morte num leito de hospital,

alva de dor entre os lençóis extremos, 
como um precoce rito de passagem
foi brutal como a dele, os tornou gêmeos

e vai voltar por mim… 

A morte do próprio poeta antecipada pela morte dos membros de sua família é também tratada no poema “A explicação”:[17] “Olhando, olhando o prodigioso bando,/ reconhecendo a mim/ no meio dele, vendo que eu também/ lá vinha procurando o meu olhar(…)” E nesse poema, o pavor da morte, a reação ao fato de que ela existe é retomado: “Quando o pavor da morte nos ilude,/ rouba-nos a altitude/ em que tudo se passa/ segundo a aceitação – ou não – da graça.”

O consolo parece impossível até mesmo a quem sabe o que o futuro nos reserva, até mesmo para quem tem consciência de para que serve o sofrimento:

… Levo a vantagem
de haver adivinhado o quanto pude
do amor da remissão na dor selvagem,

mas vou inchar também, boiar no açude
das lágrimas sem fundo até que a fonte
cesse de soluçar e uma altitude 

inconhecida passe a limpo a fronte
que cansou de lutar. Ou talvez queiras
que a mim me embale a barca de Caronte

como ontem a velha Cantareira,
o azul da travessia. A irrecusável 
arrasta a cada um de um maneira,

segundo queira ou não ver o inefável,
confiar na promessa, que um escuta
e um outro chama de inafiançável.

É o momento em que ninguém quer ouvir falar da esperança na eternidade. A expectativa do que nos espera não nos parece bastar ou justificar as nossas dores (em nome da Promessa/ não há negar Teu duro amanhecer), que em linguagem mais conceptual se expressa na “Explicação”, para o qual o medo da morte pode levar à animalização, como se a consciência da mortalidade, que é subjugada pelo medo, não levasse o homem necessariamente a estabelecer prioridades, e sim a estragar-se como sinônimo de viver intensamente: “Medrosos, nos furtamos ao mistério,/ proclamamos o império/ do animal, o interregno do bicho/ e, em seguida às repúblicas do sexo,/ a morte como as sobras da ração;/ damos a cova como a goela aberta, o Não/ de Deus tornada a fera/ cinicamente à espera / de soterrar Seu lixo.”

No poema dedicado a Anecy Rocha, o patético do sofrimento apresenta-se como a explosão do escândalo, da morte como espetáculo de horrores, a que nem a beleza e a suavidade poupam: “…Mas quem merecia/ mais do que uma açucena matinal/ um manso desfolhar-se ao fim do dia,// quem mais do que uma flor, Senhor?///Mas não – tinha que ser total o escândalo!/ Por que, se nem nos circos mais extremos// Teus mártires andaram despencando/ sobre os leões, se nem um lixo cai / de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!” Logo em seguida, um instante de lucidez, de razão em meio à dor se manifesta, qual as “espigas que crescem entre escombros humanos”: “Não vim denunciar o Filho ao Pai/ ou o Pai ao Filho, não vim dar razão/ aos que recusam e usam cada ai/ contra a humildade”. Ele a um só tempo sofre e sabe os desatinos a que a grande dor pode levar: “vim porque a Paixão/ me chamou pelo nome e a alma obedece e aceita suar sangue”.

A lírica entendida como “expressão dos sentimentos” é algo de que Bruno Tolentino buscou muitas vezes se distanciar, seja por meio da poesia do pensamento, de certo acento existencial, em Anulação e outros reparos; de reflexão histórico-política, em Os deuses de hoje; seja por meio da sátira cultural em Os sapos de ontem; da poesia dramática em A balada do cárcere, As horas de Katharina e A imitação do amanhecer e da poesia da cultura em O mundo como idéia. A estrutura mesma de A balada do cárcere desempenha um papel didático, uma vez que a primeira e a terceira partes, em que fala o narrador, é mais objetiva, mais direta, e a segunda, em que fala o “minotauro”, o criminoso atormentado, é mais próxima à lírica propriamente dita, mais subjetiva, mais interiorizante, mais entregue ao mundo das abstrações e do delírio poético.[19] Isto é, nessa segunda parte a lírica mostra sua natureza não por si mesma, mas por um recurso dramático pelo qual se valendo da dicção lírica como ilustração atinge os mesmos efeitos da lírica propriamente dita. Nessa segunda parte, não há a rigor poesia lírica, e sim a apresentação, a imitação, do espírito da lírica. Diria então que a técnica aplicada na composição de “Ao divino Assassino”, a julgar pela mudança da dedicatória que definiu os versos de uma vez, é algo próximo a que é usado na sua poesia dramática, que é da heteronímia, a da construção de uma personalidade muito concreta por meio da despersonalização, valendo-se de uma voz alheia.

Katharina é a ilustração da personalidade de Bruno Tolentino por meio de uma personagem feminina, que é por sinal uma poetisa, que viveu no início do século XX, pela qual a maturidade pessoal e poética do autor se faz ilustrar por meio da conversão e do gradativo amadurecimento espiritual da personagem, amadurecimento esse que se mostra na passagem de uma visão mais cultural da religiosidade nas primeiras partes, algo mais renascentista, em que a matéria religiosa serve tão somente à ilustração de seus sentimentos mais subjetivos, de sua experiência amorosa, para uma visão mais direta sobre o mesmo assunto, já incorporado ao seu espírito, na medida em que se aproxima da morte, que se articula com a passagem da loucura para a autodescoberta na Balada do cárcere e do mundo medrosamente solar de Alexandria, ou do pavor dos flamingos ante o pôr-do-sol, para a aceitação da noite, pelos cervos da Lapônia, na Imitação do amanhecer, livro esse que em vez de ser uma série de líricas amorosas dirigidas diretamente ao poeta e romancista Simon Pringle, a quem o livro de fato é dedicado, é uma narrativa a respeito de duas personagens. Aqui, mais uma vez o autor despersonaliza-se, e a seu outrora amante, para mais bem descrever, por meio de uma narrativa poético-ficcional, o espírito daquele relacionamento. Quanto à Balada do cárcere, não sabemos se os cursos que o autor alega ter proferido na prisão aconteceu nem se houve de fato um numeropata. Isso, porém, é algo a ser investigado mais amiúde. Se, porém, isso não aconteceu, por outro lado, não deixa de refletir uma verdade sobre o próprio autor, a respeito da qual o poeta Érico Nogueira escreveu:

…a transformação do Numeropata é muito semelhante à de Tolentino em pessoa, que entrou na cadeia como esteta e saiu como poeta consumado. Sabendo das vicissitudes reais que lhe afligiram, fica difícil não ler esta Balada como testemunho (ficcional) de uma vivência concreta, no qual o depoente nos conta via personagens como a conquista da verdadeira poesia redunda em autoconhecimento, ou, inversamente, como o conhecimento de si leva à aquisição da verdadeira linguagem: desde que língua e consciência andem juntas, a ordem pouco importa.[20]

Isso está dentro do espírito do que chamei em outras ocasiões de verdade propriamente dita que se distingue da verdade literária. Aquela, por mais virtuosa seja, muitas vezes não funciona dentro de uma obra literária, não se conforma tão bem a ela e dessa maneira pode soar como uma falsificação, como algo em que se deve acreditar menos pela sua exposição que pela coerção, é algo que se impõe no grito ou na chantagem. A famosa passagem de Manalive, de Chesterton, em que o discípulo se propõe matar o seu mestre com o fito de desafiar o niilismo que este insistentemente expunha em suas aulas, conseguindo extrair-lhe uma conversão, não parece lá muito convincente. A verdade é ainda mais complexa, basta saber que da mesma forma que há mártires religiosos, há mártires do niilismo, que realmente se propuseram levar esse niilismo às últimas consequências, como tão bem retratou Dostoiévski e, antes dele, John Milton: “Better to reign in hell, than serve in heaven”, a não ser que esse professor concebido por Chesterton cultue o que José Guilherme Merquior chamou argutamente de “niilismo de cátedra”. Já a verdade literária é a ficção, ou mesmo a mentira, que opera a favor do real, desvela-o por meio de artifícios, alguns desvios e, principalmente, por máscaras. Como diria Oscar Wilde, o homem quando põe uma máscara revela seu rosto verdadeiro.

Dito isso, “Ao divino Assassino” trilhou dois caminhos, o da verdade factual, quando o poema tinha como assunto a morte da irmã, resultando num grande poema composto sob um estado de espírito muito abalado, guiado por uma emoção muito forte que não conseguia encontrar os meios mais adequados para respirar, apelando escancaradamente a alguns recursos de comédia pastelão, ou da sátira, que, se não extrapola a natureza do assunto, causa certa estranheza, e com essas extravagâncias líricas procura disfarçar o confessionalismo que não queria evidenciar; e o da verdade literária, quando, posto tenha mantido a primeira pessoa, transfere a dedicatória a outrem e substitui a irmã não por uma personagem da ficção, mas por um símbolo cultural de determinada época, forjando com esse símbolo uma relação amorosa, intensa, e cuja retórica, convenções literárias ou lugares comuns que tiraram um pouco a naturalidade à série de sonetos que compõem “Ás de ouro”, que dedicou à irmã,  foram justamente os elementos que conferiram ao “Divino Assassino”  grande força, um impacto emocional dilacerante, encontrando nele seu devido lugar.

A comparação que fiz entre a primeira versão de “Ao divino Assassino” e a última, embora tenha por vezes parecido pouco lisonjeira em relação à primeira versão, não encerra uma opinião definitiva a respeito de qual poema é o melhor. Gosto muito da que é dedicada à irmã, entretanto sua qualidade se torna mais evidente quando não penso na versão definitiva que se lhe seguiu anos depois. Não é exatamente uma inferioridade absoluta, essa depende de algo com que comparar, no caso, outro poema. Melhor dito, outra versão do mesmo poema. Foi justamente o fato de Tolentino ter trabalhado insistentemente sobre um mesmo poema anos a fio que mostrou a superioridade de um sobre o outro, como se o tratamento muito pessoal do tema a partir de uma pessoa real, sangue de seu sangue, causasse algum tipo de ruído, que só o distanciamento tático, o da heteronímia, pôde cessar.


[1] Primeira edição, Massao Ohno, 1963; edição definitiva, Topbooks, 1998.

[2] Topbooks, 1996; Record, 2016

[3] “(…) na economia de minha ambiciosa Opera Omnia não resisto a classificar este livrinho de marginália…(…) Ora, a Balada do cárcere foi um livro que ‘aconteceu’, o único a nascer das circunstâncias(…), “As experiências de um encarcerado”, in “Tribuna Bis”, Tribuna da imprensa, 28 de novembro de 1996.

[4] “Escrito nas estrelas”, prefácio à reedição de A balada do cárcere, Record, 2016, pp. 15 e 16.

[5] “Gesto besta, sublime intangível”, Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 11 de maio de 2003.

[6] “O livro das horas de Bruno Tolentino”, prefácio à reedição de As horas de Katharina, Record, 2010, p.09

[7] Razão do poema, Editora Civilização Brasileira, 1965, pp. 33-40.

[8]  “O geômetra engajado – João Cabral e a Geração de 45”, in Metalinguagem e outras metas:   ensaios de teoria e critica literária, ed. Perspectiva, pp.77-78

[9]“Os outros eus/ Gênese e justificação da heteronímia”, p. 94. in Fernando Pessoa/ Obras em prosa, Organização, Introdução e Notas de Cleonice Berardinelli,Nova Aguillar, 1986

[10] Érico Nogueira escreveu: “A balada do cárcere é, portanto, o relato ficcional do narrador sobre sua experiência (real) na cadeia britânica, centrado na figura de um misterioso condenado à prisão perpétua a que chama o Numeropata, ou, etimologicamente, “o que sofre do número”. Ora, se sofrer do número, ou do mal do número, é exatamente o que caracteriza o artista e poeta idealista que, fazendo música da Ideia, não de ideias, pretende que sua obra reconstrua e, ao fim e ao cabo, substitua o mundo-como-tal, então o Numeropata, haja existido ou não existido uma pessoa de carne e osso que lhe serviu de modelo, é antes de tudo e por tudo um alter ego do narrador, cuja função eminentemente didática, na economia do livro, é a de alegoria e exemplo do artista em prisão perpétua, que insiste em trocar o real pelo ideal, mas que alcança a liberdade possível  quando toma consciência de si e de suas forças, as quais reconhece incapazes de criar artefato nenhum  que faças as vezes da vida. Entre a ideia e o mundo, portanto, o Numeropata felizmente escolhe a segunda opção.”, p.26, “Escrito nas estrelas”, prefácio à reedição de A balada do cárcere, ed. Record, 2016.

[11] Cia das Letras, 1994; Record, 2010

[12] Globo, 2004

[13] “Coerulei oculi”, de Gauthier, na tradução de Raimundo Correia, in Versos e versões.

[14] Embora  fosse uma dessas várias pessoas que tem esses originais, eu não cheguei a ler “Ao divino Assassino” que neles figura. Anos depois, com \O mundo como ideia já publicado, julgando ser o mesmo poema, continuei a não lê-lo, preferindo dar atenção aos que permaneceram inéditos. Quem me chamou atenção para o fato de que essa versão era dedicada à irmã, me causando assim uma grande surpresa, foi o escritor Pedro Sette-Câmara, quando estávamos conversando pelas ruas do centro carioca.

[15] Record, 1995

[16] “minha tribo” refere à família do poeta, não a uma comunidade externa da qual o poeta faz parte, mas sem necessariamente laços de sangue.

[17] Leiam o ensaio “A travessia final”, de Martim Vasques, em que apresenta uma instigante interpretação não apenas deste poema como do volume O mundo como ideia: https://martimvasques.medium.com/a-travessia-final-2ceafe9658b8

[18] “inconhecida” é um anglicismo, algo que o autor resolveu anos depois com “altitude// imerecida me enxugar a fronte…”

[19] “… que observe a diferença entre a ‘minha’ linguagem e a tradução poética que tento fazer dos delírios daquele homem em tortuosa busca de expressão para o seu drama. No primeiro caso o ‘Narrador’ é um objetivo, textual, fala sem floreios; já os poemas em que cedo a palavra ao ‘Numeropata’ são necessariamente ‘poéticos’, pois é como a diferença entre as duas vozes da poesia, a dramática e a lírica: a primeira é sempre nua, direta, deliberada e nunca espontânea. É o lirismo egocêntrico que tende a se descabelar, a dificultar a apreensão da realidade, não raro confundindo  preciosismo formal com riqueza expressiva.”, in Tribuna da imprensa, op. cit.

[20] “Escrito nas estrelas”, in A balada do cárcere – Edição comentada, Record, 2016, p. 25