— por Gabriel Campos Medeiros
Os poetas aí listados são dos melhores da nossa literatura, e naturalmente escreveram diversos outros sonetos primorosos. Quis eu no entanto não ser tão óbvio na seleção, para que o leitor não se sentisse numa aulinha de literatura do Ensino Médio, numa empulhação mal ministrada por um professor que, pouco conhecendo a própria disciplina, lê dois ou três poemas-chave de uma e de outra escola literária; faz uma repugnante, ignominiosa caricatura do poeta seu autor; atribui-lhe insolentes motivos de ele ter pensado este ou aquele verso; frustra, com o tino típico do homem vulgar, a inteligência dos alunos já tão pouco iluminados; e, por fim, desdenhoso e radiante, apresenta-lhes umas salafrárias letras de Djavan ou de Caetano como as mais acabadas poesias desta inzoneira Terra de Anta e Avestruz.
Isto eu não vou fazer com o bom leitor da Unamuno. Por isso acedi, sim, aos sonetos inescapáveis de um Cruz e Sousa e de um Olavo Bilac, pelo que nos reservam, eles, de um espírito elevado, contra as lamacentas verborréias dos poetastros, contra os estéreis soluços dos marginais. E recolhi, também, sonetos que superam em muito os que costumam extasiar esses nossos escrupulosíssimos redatores de livros didáticos, taifeiros da naufragante nau que é a educação nacional, tão dada a atolamentos ideológicos e achaques de imanente pequenez.
Por exemplo, de um Bandeira não destaquei um soneto a Camões ou um Soneto Italiano, arquiconhecidos: porque pretendo mostrar do poeta não a inigualável e afamada operosidade, mas a particular e bem calculada atualidade (devo dizer: permanência), mas a refinada e ciosa descontração, resultantes em elocução a um tempo medida e natural, em extrato da língua do povo embelezada pela mão do profundo e escorreito artista. Essa mesma espontaneidade poética — que os inimigos da arte não alcançam aventar com seus artificiosos experimentalismos —, eu a pretendi mostrar, tão bem acomodada à pauta pré-determinada do soneto, neste Bruno Tolentino, neste Jorge de Lima, neste Alphonsus Filho, etc.
Sem incluir contemporâneos, meus critérios de seleção foram o vigor da expressão, a densidade do assunto e a clareza do conceito, foram aquela melodia bem composta, aquela imagem bem pintada, elementos que, encadeados no crescendo verbal necessário aos quatorze versos, culminam, quando não na impressionante chave de ouro, ao menos no arremate lógico que conforta a razão dos comuns e ofende a dos vanguardeiros.
▪︎ Dualismo, Olavo Bilac
▪︎ Portas do Céu que dais para a outra vida, Alphonsus de Guimaraens
▪︎ Sorriso interior, Cruz e Sousa
▪︎ Unidade, Raul de Leoni
▪︎ Senhor, assim pregado ao duro lenho, José Albano
▪︎ Ouro Preto, Manuel Bandeira
▪︎ Passagem do Aqueronte, Dante Milano
▪︎ Fugas, Alphonsus de Guimaraens Filho
▪︎ O rochedo do sono é tão fechado, Jorge de Lima
▪︎ Ó festa do real, teus convidados, Bruno Tolentino
DUALISMO (Tarde, 1919) -Olavo Bilac
Não és bom, nem és mau: és triste e humano…
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.
Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.
Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:
E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.
PORTAS DO CÉU QUE DAIS PARA A OUTRA VIDA, (Setenário das Dores de Nossa Senhora, 1899) -Alphonsus de Guimaraens
Portas do Céu que dais para a outra vida,
Diante de mim, de par em par, abri-vos…
E a oblação da minha alma entristecida
Chegue ao limiar dos tronos primitivos.
Ermitão que procura a quieta ermida,
Isolada dos mortos e dos vivos,
Evoco a luz da terra prometida…
Falazes sonhos meus contemplativos!
Vagueando pela vastidão cerúlea,
Minha Alma é como um hino que se expanda
Em louvores de sempiterna dúlia…
Exaude, Virgem branca, intemerata,
A fervorosa prece miseranda,
— Rosário que entre os astros se desata…
SORRISO INTERIOR (Últimos sonetos, 1905) – Cruz e Sousa
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
UNIDADE (Luz Mediterrânea, 1912) – Raul de Leoni
Deitando os olhos sobre a perspectiva
Das coisas, surpreendo em cada qual
Uma simples imagem fugitiva
Da infinita harmonia universal.
Uma revelação vaga e parcial
De tudo existe em cada coisa viva:
Na corrente do bem ou na do mal
Tudo tem uma vida evocativa.
Nada é inútil; dos homens aos insetos
Vão-se estendendo todos os aspetos
Que a ideia da existência pode ter;
E o que deslumbra o olhar é perceber
Em todos esses seres incompletos
A completa noção de um mesmo ser…
SENHOR, ASSIM PREGADO AO DURO LENHO, (Rimas, 1948) – José Albano
Senhor, assim pregado ao duro lenho,
Não negas a ninguém o teu socorro;
A mim, pois, que de mágoa vivo e morro,
Dá-me o brando sossego que não tenho.
Em te amar sempre ponho todo o empenho,
Vendo do puro sangue o frio jorro,
E com suspiros aos teus braços corro
E ao pé da santa cruz deitar-me venho.
Olha como foi triste o meu destino,
Sem esperanças quase e sem ventura,
Apenas com os sonhos que imagino.
Lembra-te destas dores tão escuras,
De que tu és o meu Pastor divino
E de que eu sou a ovelha que procuras.
OURO PRETO (Lira dos Cinqüent’anos, 1940) – Manuel Bandeira
Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
Ribeirão trepidante e de cada recosto
De montanha o metal rolou na cascalhada
Para o fausto d’El-Rei, para a glória do imposto.
Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras… templos que são fantasmas ao sol-posto.
Esta agência postal era a Casa de Entrada…
Este escombro foi um solar… Cinza e desgosto!
O bandeirante decaiu — é funcionário.
Último sabedor da crônica estupenda,
Chico Diogo escarnece o último visionário.
E avulta apenas, quando a noite de mansinho
Vem, na pedra-sabão lavrada como renda,
— Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho!
PASSAGEM DO AQUERONTE (Poesia e Prosa, 1979) – Dante Milano
A barca negra sob a ventania
E o barqueiro gritando: “Ide, malvados,
Esconder vossos crimes e pecados
Na treva onde jamais desponta o dia!”
E os mortos em confusa gritaria,
Retorcendo os pescoços esticados,
Os olhos sem visões e revirados…
Habituado aos horrores, ele ria,
Entre ondas de cadáveres, batendo
Uns contra os outros, num marulho horrendo…
E bradava, cruel: “Destino justo!”
Sem indagar origens nem motivos.
E ria na hora do terrível susto
Pensando, não nos mortos, mas nos vivos…
FUGAS (Nostalgia dos Anjos, 1946) – Alphonsus de Guimaraens Filho
Fugas não houve que não fossem puras…
Muitas vezes as mãos colheram o aceno
e foram, brancas como as amarguras,
agasalhar, sonhar no céu sereno…
Fugir do mundo sem que as criaturas
me possam ver (tal como fui) pequeno!
Noites de antigamente, que torturas!
E os nossos sonhos, mano Nazareno!
Fugir é só possível nas cantigas…
Chega a música e traz ao nosso afago
recordações de sombras mais amigas.
E o coração, coitado! é um violino
chorando no silêncio, tênue, vago,
pobre menino, sim, pobre menino…
O ROCHEDO DO SONO É TÃO FECHADO (Livro de Sonetos, 1949) – Jorge de Lima
O rochedo do sono é tão fechado,
tão pedra de Esaú, tão existido,
que ele cumpre na vida um grande fado,
— o de acolher um Édipo impunido.
Sempre em seu bojo há um anjo adormecido
e um menino num poço debruçado;
o cão noturno late, e o seu latido
é o grito do menino já afogado.
À noite, barba-azul dormindo joga
sete princesas pálidas no poço,
e o poço voracíssimo as engole.
E engole indiferente quem se afoga,
— sete pedras atadas ao pescoço
que pedra e amor é o mesmo no seu gole.
Ó FESTA DO REAL, TEUS CONVIDADOS (O mundo como idéia, 2002) – Bruno Tolentino
Ó festa do real, teus convidados
trocaram de paixão ou de endereço,
vestiram a fantasia pelo avesso
e lá se foram como os mascarados
ao castelo espectral, aos seus bailados
loucos, fantasmagóricos, de gesso
como esses anjos idealizados
de cemitério… Tudo tem seu preço,
sobretudo a ilusão: seguramente
o coração que anda a trocar o efêmero
pela paixão daquilo que não sente,
perde este mundo e vira o prisioneiro
de tudo o que imagina, um perdigueiro
roendo um ossuário inexistente.