Destino e liberdade no chiaroscuro de um romance

Quando cai de joelhos diante da vida, abatido pela inércia de sua fraqueza, nauseado por seus próprios vícios, mirado de cima por seus rivais, dorido, atormentado e desesperado pela enfiada de erros que desenham a sua história, o homem vê-se diante de uma assustadora encruzilhada moral: de um lado, mil e uma consolações, mil e uma mentiras; do outro, não mais que uma verdade penosa e fria, cujo significado luminoso só a muito custo é desvelado. Em Luz em Agosto, dentre os infindos dramas que interpõe na narrativa — abrangendo psicose, racismo, puritanismo, a relação do indivíduo com a comunidade e com o seu passado —, William Faulkner leva à máxima tensão o drama do homem que tem de admitir ou renunciar sua liberdade, isto é, aquele momento crítico em que, perante o destino do seu “eu”, o homem se declara autor ou mero espectador.

Não raro percebo em mim e no outro a confusão em que entramos ao tentar compreender os fatores decisivos que vieram a formar o estado presente de nossas vidas. A começar por nossas ações, frequentemente é tão difícil entender por que as praticamos, e teorias que pretendam explicá-las podem ser tão confusas, que pouco a pouco passamos a duvidar de nossa responsabilidade sobre elas. Daí em diante, perdemos de vista a relação entre destino e liberdade, e aquele, só o compreendemos enquanto resultado quase necessário de forças invisíveis. Disto, em vãs tentativas de compreender sua vida, há quem entre nesse assunto a partir de conceitos abstratos, genéricos e ambíguos assim, mas esse caminho é longo e sinuoso. Felizmente, existe o gênio do escritor capaz de condensar em símbolos verossímeis aquilo que em carne e ossos mal enxergamos.

Enquanto para seguir os episódios do tempo presente, o leitor é levado ao passado das personagens, gradativamente se criará a impressão de que esses capítulos retrospectivos servem apenas para mostrar que o estado presente daqueles indivíduos explica-se inteiramente pela força que fatores externos exerceram sobre eles no passado — sobretudo as pessoas com quem elas conviveram. Então vai-se reforçando em nós uma imagem terrivelmente fatalista da existência, a qual recorremos repetidamente sem perceber. Assim, como sinais máximos da arbitrariedade do universo, que parece favorecer uns e humilhar outros, poderíamos indicar as vidas de Lena Grove e Joe Christmas.

Desde que partiu em longa viagem a pé, grávida, à procura do pai de seu filho, Lena alcança grandes favores de desconhecidos, desde informações a caronas, hospedagem e comida. Pronta para dar à luz a qualquer momento, chega a Jefferson, cidade onde provavelmente se esconde o homem. Quando enfim deveria encontrar Lucas Burch, o pai da criança, esbarra, sim, com Byron Bunch, sujeito correto que, apesar de ter-se apaixonado logo à primeira vista por ela e conhecer a natureza ignominiosa do fujão, promete-lhe buscá-lo. O protetor confuso e bem-intencionado, ainda lutando contra a tentação de aproveitar-se do momento e cortejar a jovem, arranja-lhe um lugar para ficar, enquanto faz malabarismos para guardá-la dos boatos que se espalham pela cidade — houve um assassinato, e o tal Lucas Burch seria um dos envolvidos. Poucos dias depois, Lena entra em trabalho de parto, e lá está apenas Byron para prover-lhe o necessário: neste caso, não um médico, porque não houve tempo, mas o velho Hightower, que, nada tendo de médico, provou-se parteiro de emergência. No fim das contas, Lucas Burch não era assassino, apenas sem-vergonha, e, quando Byron, duramente resignado, encontra um modo de finalmente pô-lo face a face com Lena, o sujeito sai a correr como diabo que viu a cruz. Era o ensejo de que Byron precisava para ficar com Lena. Finalmente, ela decide continuar a viagem, dessa vez em busca de um lugar para viver com seu filho e… possivelmente, seu fiel protetor.

Do outro lado, com pai e mãe mortos ainda antes que pudessem ser vistos e reconhecidos, Joe Christmas entra na vida com a experiência traumática de ser arrancado de suas raízes e colocado num meio hostil. No orfanato sofre as dores do isolamento e da humilhação por parte das outras crianças, orientadas pelo zelador a repetir quanto a ele: “Nigger!”. Christmas não sabia e jamais soube que este indivíduo era também o seu avô, sujeito de olhos e língua de fogo, orgulhosamente responsável de ter estourado os miolos do genro ao suspeitar que ele teria ascendência negra e de privar a própria filha da assistência médica necessária durante o parto porque, ao dormir com tal homem, ela teria praticado “bitchery and abomination”. Somando à experiência da rejeição as injustiças sofridas pelas mãos de uma funcionária do orfanato, já aos cinco anos Christmas começa a nutrir ressentimento contra negros, brancos, mulheres e qualquer autoridade. Tudo isto se reforça mais tarde, quando, recusando-se a aprender o catecismo presbiteriano que o pai adotivo tenta impingir-lhe, ele tem de resistir a surras e jejuns forçados. Aos dezessete, conhece um discreto restaurante da cidade e lá apaixona-se por quem ele acreditava ser uma garçonete. Torna-se frequentador do local, aprende os modos daquelas pessoas, passa a fumar e beber. Aos dezoito, mesmo entendendo a verdadeira atividade da moça, foge de casa para viver com ela, que já não o quer, e ele recebe um fora acompanhado de uma coça dos proxenetas. Enfim, pelos próximos quinze anos, Joe Christmas segue por um caminho apontado pelo narrador como “street of imperceptible corners”, entre roubos, contrabando, estupros e, afinal, um assassinato que acaba por encaminhá-lo à morte.

Narrando as vidas de Lena e Christmas, Luz em Agosto é um romance agridoce. Ficamos contentes com Lena, restabelecida para a vida com filho, esposo e lar. E por Joe Christmas resta-nos compadecimento, pois não o vimos apenas enquanto ladrão, estuprador e assassino; vimo-lo também enquanto criança órfã humilhada, desconsiderada e enganada. E como gostaríamos de ver Christmas receber as graças da fortuna, que tanto fez concorrer para o bem de Lena! Mas o que lhe estava reservado era uma grande arapuca. E nós leitores podemos nos enxergar nisso, afinal, quantas vezes não nos vemos qual barquinhos de papel no mar, vítimas de forças que nos levam a erros e mais erros sem que depois nos reconhecêssemos naqueles atos? No entanto, seguindo por esta via, devemos passar por Gail Hightower e Byron Bunch, cujas vidas elucidam essa série de conclusões a que podemos nos precipitar.

Nomen est omen — há pouco mais de duas décadas, o reverendo Hightower vive isolado e estacionado em sua casa de andar. Gail Hightower não é criminoso, misantropo ou antipático; apenas um indivíduo terrivelmente mal compreendido por si e pelos outros. Viver numa torre de marfim não é, para ele, estar acima da sociedade; é tão somente estar separado dela, bem no alto, nas nuvens, na lua. Tornou-se órfão na infância e, até então, mal experimentara uma relação de fato com os pais. Ficou entregue aos cuidados da criada da casa, antiga escrava — e grande devota — do avô do menino. Então ele cresceu ouvindo histórias que, lançadas de tal maneira ao seu coração, criaram uma espécie de nostalgia estranha e obsessiva do avô, morto em Jefferson, num momento inesperado da guerra, antes mesmo que o menino nascesse. Assim, o rapaz torna-se pastor com o intuito oculto de ser enviado a Jefferson e lá poder encerrar seus dias, repetindo o destino do avô, que, despertando tão forte obsessão no garoto, parece, muito mais do que um fantasma szondiano, um demônio. As pregações, decisões e interesses de Hightower, inteiramente centrados na figura de seu avô, ultrapassam o limite do racional e aceitável, de modo que resultam na depressão e no suicídio de sua esposa. Mais tarde, no funeral, uma expressão de menoscabo mal disfarçada lhe escapa — é a gota d’água para a comunidade. Aceitando afastar-se do ministério, sem, no entanto, deixar a cidade, como querem, o reverendo sofre com assaltos, calúnias, ameaças de morte, e, enfim, tortura. Tudo muito bem suportado com paciência e coragem de mártir, a comunidade aceita deixá-lo em paz, isolado.

Vinte e cinco anos depois, uma conjunção de eventos envolvendo Christmas, Lena e Byron traz Hightower de volta à vida; recordações de sua história vão surgindo. O filme de suas ações estira-se em todo o seu comprimento, abrangendo intenções e consequências, desde as mentirinhas para conquistar os anciãos da igreja até o suicídio da esposa. E, sem ter atinado inicialmente que o exame de consciência sincero que acompanhava suas recordações o revelava como “capitão de sua alma”, cai no desespero. É a primeira contemplação de seus pecados, jamais reconhecidos. São cinquenta anos vividos sob a égide de uma mentira existencial, cinquenta anos consumidos em cenários fantasiosos em troca de consolações morais. Portanto, não nos surpreendemos que neste momento, o mais grave de sua vida, mesmo com a consciência moral restabelecida, ele decida destituir-se da autoria que lhe cabe, primeiro tentando se convencer de que era inocente, jovem, e de que fez mal apenas a si mesmo, e, depois, tentando a derradeira fuga — suas escolhas teriam sido, na verdade, determinadas por um agente externo: o falecido avô.

Se, antes, com os fados de Christmas e Lena, tivemos a impressão de que o destino do homem é a mera soma de forças que estão além de seu alcance, com a experiência de Hightower, por outro lado, a imagem da responsabilidade do homem sobre seu próprio destino não poderia ficar mais clara — de uma clareza desconcertante até, pois quem, vendo os danos que causou, as coisas boas que apenas sonhou em fazer, as graças que desprezou, quem confessará quanto de sua vida já perdeu? Mas este cenário não é muito melhor que o outro. Conquanto Hightower não fosse, como Christmas, um fatalista entregue à própria maldade, as absurdas racionalizações que ele fez para não reconhecer seus erros podem dar a entender que a opção da luta pela realização do bem na vida é despropositada: ao fim e ao cabo, o homem não sabe usar sua liberdade, restando-lhe apenas o murmúrio do apóstolo: “Querer o bem encontra-se ao meu alcance, mas não fazê-lo. Porque eu não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm VII, 18–19).

Mas tudo isso não passa de primeiras impressões. A sugestão de que a vida é um jogo de cartas marcadas, não a escutamos todos, quando descemos ao abismo? Assim acontece enquanto descobrimos o mundo de Faulkner. Seja no Yoknapatawpha County, seja neste mundo, são tantos os fracassos morais, tantos os sonhos esquecidos e tantas as vidas desperdiçadas, que esta ubiquidade da miséria desacredita-nos, a um só tempo, da liberdade e do homem. A possibilidade de triunfo do homem, então, vai escapando ao nosso conhecimento. Mas, aqui, uma rara luz em agosto a reafirma.

Byron Bunch vive com austeridade. O solitário homem de trinta anos segue há quase uma década a mesma rotina: trabalha de segunda à sábado numa serraria e sempre fica no último dia para fazer hora extra até o final da tarde; em seguida, voltando para sua pensão, janta, arruma-se, pega sua mula e parte para um povoado próximo, em vista de, no dia seguinte, reger o coro de uma igreja; na madrugada de domingo para segunda, retorna, e começa tudo de novo. No meio da semana, também visita Hightower — é a única pessoa no mundo que ainda tem contato com o reverendo. Quando conhece Lena, tem de lidar com o conflito entre cumprir a promessa de reunir o casal ou aproveitar-se do momento e “tomá-la” para si. Finalmente, ajuda-a no parto e cumpre a promessa de lhe pôr face a face o descarado. Numa tal situação, indiferente aos seus sonhos de amor, decide partir da cidade. Nesta hora de resignação Byron percebe a força própria do homem, a força de liberdade que ele mesmo exercera e continuava a exercer:

Byron sobe na mula e põe-na em direção à estrada. Não olha para trás.

A suave estrada vermelha estende-se por uma colina sob a tarde pendente e tranquila. “Bem, eu posso com uma colina”, ele pensa. “Eu posso com uma colina, um homem pode”. O caminho tranquilo e quieto é conhecido desde há sete anos. “Parece que um homem pode suportar praticamente qualquer coisa. Pode suportar até mesmo as coisas que nunca fez. Pode suportar até mesmo a ideia de que algumas coisas são simplesmente mais do que ele pode suportar. Pode suportar até mesmo o fato de que, se pudesse ceder e chorar, não o faria. Pode suportar até mesmo o desejo de olhar para trás, mesmo sabendo que olhar ou não olhar para trás não servirá de nada”.

Byron tomou para si a responsabilidade de reunir uma família em detrimento do malogro de seus desejos, responsabilidade que só assumiu por entender consciente ou inconscientemente que era capaz de escolher agir orientado pelos valores que julgasse os mais altos.

Então a névoa quase sobrenatural que circundava as vidas de Christmas e Lena vai-se dissipando. São pessoas tão responsáveis por si mesmas quantos as outras duas. As circunstâncias de suas vidas constituem não mais que o material de suas ações. O que mascarava-se de imposições externas — agora vemos claramente — era simples efeito de atos livres. Joe Christmas, segundo o que se poderia defender, deveria ter sido um religioso fanático, como o pai adotivo, mas escolheresistir à religião; poderia ter vivido uma relação afetuosa com a mãe adotiva, que sempre o ajudava, mas escolhe desprezá-la; poderia ter integrado a comunidade por meio da família, mas escolhe seisolar. Daí por diante cresce em estultícia, em idade e em ressentimento contra Deus e os homens. Faz o caminho pela “savage and lonely street which he had chosen of his own will”. Mais tarde, quando depois de um ano vivendo com Joanna Burden, ela propõe-lhe o casamento, vemos a clareza com que ele enxerga a situação: “No. If I give in now, I will deny all the thirty years that I have lived to make me what I chose to be”.

Do outro lado, é bastante significativo que Faulkner não se alongue em detalhes acerca da infância ou adolescência de Lena. A menina que aos oito anos perde os pais, para em seguida morar com o irmão rude e folgado e, anos depois, enamorar-se e engravidar de um sem-vergonha, esta menina não acha que deve permanecer no mesmo curso do seu passado, como quem tivesse de obedecer a um roteiro. O motor de sua vida encontrava-se num modesto, mas vivificante ideal: casar-se e ter uma família. Modesto como fosse, esse ideal era sincero e bom, fundado no que ela concebia de mais belo e nobre. Lena aferrou-se a ele o bastante para descobrir em si a força de cruzar estados inteiros a pé, com uma criança no ventre; para suscitar generosidades que certos corações desconheciam; para inspirar drásticas mudanças de vida e transformar destinos. E, se com um ideal simples assim ela fez tudo isso, o que não fará depois, quando descobrir que pode muito mais? “Ela era a capitã de sua alma”, Faulkner resume.[1] E, naturalmente, atrai o amor de uma pessoa concorde, por ela disposta a abnegar-se de sua estabilidade e reputação.

Tudo isso, no entanto, não quer dizer que Faulkner tenha separado os bons e os maus à direita e à esquerda. O problema de Christmas e Hightower por um momento parecerem títeres de forças negativas, na verdade, é efeito de que, subscrevendo a mentiras autocomplacentes que os aliviavam do peso de suas ações, eles renunciaram, no mesmo ato, à liberdade.

Entre uma via e outra — a renúncia ou assunção da responsabilidade pelo seu próprio destino —, optar pela primeira é negar a existência da segunda. E, não assumindo a nossa própria liberdade, também perdemos de vista o traço característico do ser humano, e daí já não reconhecemos as “Lenas” e os “Byrons” da vida, que aos nossos olhos serão apenas sortudos, e tanto menos os grandes homens de hoje e de outrora, que serão apenas venturosos nascidos com “talentos” ou “dons”. O que resta, então, é recordar e assumir a verdade tantas vezes dolorosa de que somos plenamente responsáveis por nossas ações e de que, portanto, somos capazes de piedade, coragem e sacrifício, tendo, assim, pleno direito sobre o destino do nosso “eu”.  E é deste princípio que vem a força luminosa do romance de William Faulkner, que cumpre com sua palavra:

“Creio que o homem não irá perdurar, simplesmente: ele triunfará. Ele é imortal, não porque somente, dentre as criaturas, tem uma voz inexaurível, mas porque ele tem uma alma, um espírito capaz de compaixão e sacrifício e pertinácia. O dever do poeta, do escritor, é escrever sobre essas coisas. É privilégio seu ajudar o homem a perdurar, elevando-lhe o coração, recordando-o da coragem e da dignidade e da esperança e do orgulho e da compaixão e da piedade e do sacrifício que têm sido a glória do seu passado. A voz do poeta deve ser não meramente o registro do homem, ela pode ser um dos esteios, dos pilares, que o ajudará a perdurar e triunfar”.[2]


[1] Em entrevista concedida à The Paris Review. Tradução própria.

[2] Em discurso feito ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1950. Tradução própria.