Dentro do Lustre – por Matheus Bensabat

por Matheus Bensabat

a arara morreu
na
aroeira.

Orides Fontela

                                                                 1.

Um homem morava dentro do lustre do Sr. Aristides, sem que ele percebesse, há cinquenta anos. Dormia nos cristais superiores e passava o dia nos de baixo, oscilando de um a outro por uma estreita passagem, que o sugava, num frêmito.

O Sr. Aristides não estranhava o movimento pendular que agitava o globo quando ele, contraindo-se como se fosse ser arremessado por um canhão, fluía pelos cristais. Dentro da estrutura ovalada a sua única distração era observar os hábitos peculiares do Sr. Aristides, todos os dias.

Esperava-o, naquela manhã fria de agosto, sentado dentro do último cristal do lustre. Ao vê-lo passar pelo corredor, levantou-se e pressionou o rosto contra o vidro. O Sr. Aristides ia em direção ao banheiro, arrastando as enormes pantufas de crocodilo. Ao pôr os pés no tapete coçava o nariz até deixá-lo vermelho. O inquilino, de tanto vê-lo repetir o mesmo gesto, ao passar de um cristal a outro começou a coçar o nariz.

Ele não era um homem propriamente dito. Ainda não chegara próximo da aparência humana, como adiante se explicará. Tinha todos os membros superiores e inferiores, mas seu corpo era transparente. No topo da sua cabeça havia um semicírculo no formato de uma meia-lua, que vez ou outra acendia. Era do tamanho de um grão de areia e as suas mãos eram oblongas, de modo que ao fluir pelos cristais punha-as abaixo dos pés, passando-as por último.

Acompanhou-o, olhando para a careca que parecia uma bola de bilhar, até ouvir o rangido da porta. Não era possível vê-lo além da sala, estava limitado ao lustre e tinha uma vaga impressão dos outros cômodos. Colocou as mãos em volta das têmporas e inspecionou o sofá pela milésima vez, um chesterfield revestido em couro verde cujos braços constituíam-se de cabeças de crocodilo mumificadas. Sobre o assento estavam o cachimbo de ouro e uma cigarreira adornada com um jardim de tulipas. Na mesa de centro havia inúmeras xícaras de chá e uma pistola bengala do século XIX; perto da porta de entrada havia dois vasos canópicos. Afastou-se e passou aos cristais superiores, que ficavam próximos à parede do banheiro. Grudou o ouvido nas claras ondulações do cristal, esticando as pernas.

Sentado no chão, segurando uma bucha vegetal, o Sr. Aristides limpava as pantufas de crocodilo, esfregando-as com tanto empenho como se quisesse poli-las. Em seguida, as deixaria na veneziana pelo lado de fora, mas estava tão frio que não teve coragem de abri-la. Olhou para o teto e coçou a cabeça, contrafeito. Irritava-se ao perceber que alguma adversidade o impedia de fazer o que já estava habituado. Quis deixá-las no corredor, mas como já estava nu não teve coragem de abrir a porta do banheiro. Pensou mais um pouco e por fim deixou-as sobre o lavatório. Esticou o braço e abriu o registro do chuveiro, afastando-se. Segundos depois, encostou a ponta do pé na água e atirou-se a ela, trincando o maxilar.

O inquilino passou ao globo e pôs-se a olhar as araras que ficavam numa gaiola um pouco abaixo das venezianas da sala. Na vila em que moravam, no alto da serra, todas as casas se pareciam. Distinguiam-se pela cor. A do Sr. Aristides era verde, a do Sr. Galvão, azul, a do Sr. Guimarães, amarela, a do Bacharel Duarte, cinza.

O Sr. Aristides penteou o cabelo e passou água de colônia na nuca e nos braços. Ela gostava de sentir o cheiro penetrante da água de colônia. Enrolou-se na toalha, calçando as pantufas de crocodilo. Foi até o quarto e logo voltou para a sala.

Sentou-se no sofá e acendeu o cachimbo de ouro. Lentamente, pôs-se a fazer fumaça, contraindo as volumosas sobrancelhas cujas pontas eram tingidas de vermelho.

O inquilino passou aos cristais inferiores e encostou o rosto no vidro. A fumaça era tanta que, por alguns segundos, não pôde vê-lo. Virou-se de costas, aborrecido, a olhar para os cristais de cima, mas não se moveu. Ficou parado até anoitecer.

O Sr. Aristides sentiu sono e foi para o quarto. Passara o dia inteiro no sofá, esperando-a. Em cima da cômoda havia um minúsculo porta-retrato, dentro do qual a desenhara. Lia-se na moldura: Margarida. Olhava-o todas as noites, erguendo-o sobre o rosto e chorando.

O inquilino, ao ouvir-lhe os soluços, grudou-se ao cristal, mas não demorou muito para que passasse aos cristais superiores.

Em verdade, começava a entediar-se.

                                                                2.

O Bacharel Duarte subia a serra no trem noturno, segurando uma pasta com documentos confidenciais, na qual se lia, em letras de fôrma arredondadas, História dos Inquilinos, cujo autor era um laureado historiador e linguista contemporâneo, professor de grego antigo.

Segurava-a com a mão esquerda, folheando uma edição antiga da Vogue. Pôs os óculos para enxergar melhor a foto de uma modelo quando viu a moça, que o impressionara desde o embarque, sentar ao seu lado. Não estava tão próxima de modo que pudesse tocá-la, mas a distância que os separava não era tão grande ao ponto de não conseguir ver os detalhes da sua fisionomia. Vestia-se como uma boneca de porcelana: o longo vestido decorado com flores de seda e renda, o chapéu de plumas com algodão florido e uma pena de pavão no topo. Suas mãos eram delicadas e as unhas tingidas de verde purpurina. No dedo anelar era possível ver uma pequena tatuagem de crocodilo. Olhando-a de viés, confirmou a impressão que tivera ao vê-la na estação. “É de fato muito atraente”, pensou. Sentia-a cada vez mais perto de si, e um suor percorreu-lhe a espinha. Suspendeu levemente o vidro da janela e respirou o ar fresco da serra, relaxando o tronco. Deixou a revista no suporte do banco e abriu a pasta.

O texto estava redigido em grego antigo e o Bacharel Duarte lia grego antigo sem dificuldade. Passou à epígrafe, um parágrafo de Torto Arado, livro que, até aquele ano, fora traduzido para todos os 7.139 idiomas, e seguiu para o primeiro capítulo. Passava muito rápido pelas sentenças, com o pensamento na moça, quando chegou na parte em que o autor explicava como os inquilinos se espalharam pelo mundo. Antes do primeiro congresso que os reunira, viviam concentrados nos Países Bálticos, sem que pudessem, por um motivo obscuro, deslocar-se a outros países do continente. Congregaram-se na Lituânia, na torre do Castelo de Gediminas, numa tarde em que a nevasca deixava no ar uma confusa opacidade. Quem a olhasse, na alvura que a circundava, poderia enxergar cintilações que pareciam irradiar-se de corpos celestes. Dentro da torre os inquilinos investigavam de que forma se expandiriam pelo mundo. Até aquele momento, tinham um sistema único e organizado de Estado, com ordem hierárquica e política. Os mais importantes — os que determinavam o destino de todos os outros — ocupavam as pupilas de chefes de Estado lituanos, transitando pelos olhos de senadores e ministros. Tinham um aspecto que se aproximava do humano e diferiam-se dos outros pelos objetos que ficavam no topo de suas cabeças, de acordo com a importância de cada um deles, adquirindo, lentamente, forma humana, ao passo que os considerados inferiores tinham membros disformes e não conseguiam raciocinar corretamente. Naquele dia os inquilinos mais importantes estavam reclusos nas torres de defesa, observando de longe aqueles que comandavam. Não participavam do congresso, que tinha como objetivo estabelecer entre os inquilinos inferiores igualdade e independência, segundo o que entendiam por igualdade e independência, tendo em vista que jamais puderam escolher o ambiente no qual transitariam. Os inquilinos superiores, um reduzido grupo constituído de oito pessoas, não decidiriam por eles, tão somente aprovariam o que fosse determinado. Depois de quase dez anos de discussão, estabeleceram novas leis e deixaram a torre. Dispersaram-se em grupos escolhidos previamente, cada qual para um dos seis continentes. A instituição política que os organizava fora dividida de modo a acompanhá-los, aumentando a influência sobre eles, sem que soubessem. A noção de uma instituição política aos poucos tornava-se vaga e imprecisa, mas existia e afetava-os. No capítulo seguinte o autor discorria sobre os inquilinos da Itália. Os primeiros foram encontrados no Coliseu, concretados na parte superior do pódium. Os arqueólogos, com pincéis e espátulas odontológicas, cada qual em uma escada, mal percebiam o destaque que se formava no concreto ao usar o paquímetro. Enxergavam pequenos sulcos em que viam objetos suavemente contornados por tonalidades variadas, como se alguém os bordasse a lápis de cor. Um cachimbo indígena ao lado de um relógio de bolso cuja corrente despedaçava-se ao longo da pilastra; e na extremidade do pórtico, uma meia-lua azul junto a um castiçal vermelho. Os relatórios foram enviados ao governo e supostamente criptografados com um sigilo de mil e quinhentos anos. O autor procurava evasivas para explicar a origem dos inquilinos, citando o Velho Testamento e inúmeras constituições. Ora afirmava que o primeiro fora criado por governos totalitários, ora dizia que o mesmo surgira no sexto dia da criação. A notícia da existência dos inquilinos ficara por muitos anos restrita a jornalistas e escritores em exílio, os quais relatavam em publicações independentes que uma parte deles vivia na Nigéria e no Sudão, no centro das cidades mais pobres do continente Africano. O Brasil fora o único país em que a população dos inquilinos diminuíra rapidamente, em razão da dificuldade que tinham de transitar de um lugar a outro. Tendo em vista que só conseguiam sobreviver movendo-se por diferentes regiões, observando novos costumes, no Brasil muitos morriam ao passar a existência em um único lugar.

Ao chegar no último capítulo, intuiu que ele também estaria sendo observado. Fechou os olhos, imaginando-se em todos os cômodos da casa, até lembrar-se de que em um dos arcos do teto — todas as casas da vila eram de madeira — pendia uma bússola. O Bacharel Duarte estranhava-a, pois toda manhã exibia uma tonalidade avermelhada, igual à de um rubi. Segurou firme no assento, respirou fundo e passou às fontes, entre as quais — o que o impressionou — estavam as obras completas de Kant. Leu todas as páginas em quinze minutos, como se estivesse lendo um conto.

Antes de continuarmos, é preciso explicar como A História dos Inquilinos foi parar nas mãos do Bacharel Duarte, vizinho e inimigo do Sr. Aristides. Esse Bacharel Duarte era diretor de uma biblioteca no interior do Rio de Janeiro, e naquela tarde comum de ócio, antes de assinar a folha de ponto e ir para a estação, decidiu reorganizar, pela centésima vez, a estante de literatura brasileira contemporânea. Levantou-se da cadeira, bocejou e abriu a porta que dava para uma sala mal ventilada. Aproximou-se do balcão de empréstimo, pegou uma cadeira para que pudesse alcançar as prateleiras de cima e começou a organizar os livros em ordem alfabética, quando viu uma pasta branca com um CONFIDENCIAL na capa, entre os livros de Conceição Evaristo.

Esticou o pescoço e notou que o vagão estava cheio. Fechou a janela e passou as mãos pela alça do assento, olhando atentamente para o estofado do banco. Colocou os óculos a um palmo do nariz e ficou de cócoras, inspecionando o assoalho. Em seguida, levantou-se, e, boquiaberto, olhou para o rosto endurecido das pessoas.

O trem passou pelas rochosas e enviesou, num solavanco, por uma elevação. Ele, que por alguns minutos esquecera-se da moça, viu-a balançar-se. O chapéu de plumas caiu ao lado do Bacharel Duarte, que imediatamente pegou-o, oferecendo-o de volta. Na fita que o envolvia tinha um pequeno retrato da moça.

Ajeitou mais uma vez os óculos a um palmo do nariz e leu: Para Aristides, com amor.

Imediatamente franziu a testa e trincou os dentes.

— Aqui, Mademoiselle — disse, olhando para a manga do vestido.

Ela retribuiu com um sorriso, envergonhada.

O trem percorreu o alto das montanhas até chegar à estação final. Os passageiros desceram e o Bacharel Duarte ficou no vagão.

                                                               3.

      Abriu cuidadosamente a porta da sala e deixou as sapatilhas ao lado dos vasos canópicos. Em seguida, colocou o chapéu de plumas sobre a cabeça de crocodilo e foi até o quarto do Sr. Aristides. Nas paredes, era possível ver quadros do Renascimento — de Botticelli a Vasari — emoldurados em estilo barroco, todos originais. No chão, havia inúmeros objetos sem nenhuma finalidade, alguns até mesmo não catalogados. Vendo-a, o Sr. Aristides pulou da cama e enxugou as lágrimas, abraçando-a.

— Prometes não me deixar? — perguntou, tirando-lhe o vestido.

— Prometo — respondeu, escondendo um riso de escárnio.

Minutos depois, o inquilino ouviu um barulho idêntico ao ronronar dos gatos. Rapidamente, passou ao globo para observar as araras. Colou a testa no vidro para enxergá-las melhor, mas aborreceu-se. Elas estavam tal qual estátuas, movimentando tão somente as asas, soltando grunhidos roucos. Contraiu-se, enfiou a cabeça no vão e foi sugado de volta aos cristais superiores. Expeliu ar pela boca, olhando para o seu próprio reflexo nas ondulações do vidro. As horas passavam e o inquilino começou a sentir sono. Deitou e levantou as pernas, bocejando. Imediatamente lembrou-se de que há cento e quinze anos vivera na fazenda de uma rica família estoniana, nas pás de um moinho de vento. Percorria-as por meio dos fios das palhas de centeio, fluindo como se estivesse em um escorrega. Em dias de vento fraco, sobretudo no verão, passava as tardes no topo da hélice. Sentado, com as mãos apoiadas na madeira, via o extenso campo como um quadro de Van Gogh; o gado no pasto e o cão pastor, ao longe, rodeando as ovelhas no aprisco. Foi num domingo, pouco antes da missa, ordinariamente celebrada num vilarejo próximo. Olhava o nascer do sol no momento em que viu a senhora sair de casa com a filha no colo, o cão acompanhando-as. Parou em frente ao estábulo e ajoelhou-se, tocando o corpo inerte do marido. Anos depois, a fazenda fora vendida e o moinho posto abaixo.

O seu novo cenário passou a ser a casa de uma belíssima senhora, no centro do Rio de Janeiro, tão logo espalharam-se pelo mundo. No sobrado, vivia dentro de um relógio carrilhão, transitando pelos ponteiros e engrenagens. Passava as tardes sentado no pêndulo, atento aos móveis e ao cotidiano da moradora. Por vezes, quando se via deveras entediado, pulava sobre os ponteiros, alterando a hora e confundindo-a. Numa manhã em que estava no ponteiro menor — era véspera de Natal — viu passar além da porta um mulato de estatura mediana, de terno desbotado e sapatos rotos, o rosto sulcado e lasso, firmando nos dedos inúmeras páginas manuscritas. Sentou-se na mesa de jacarandá, de frente para o inquilino. A senhora apareceu minutos depois, muito bem vestida, com a toalha de linho com que cobriria a mesa para a ceia. O inquilino passou ao ponteiro maior e sentou-se no pequeno círculo que o adornava, grudando a testa no vidro. Ela contornou as cadeiras, deixou a toalha no aparador e aproximou-se do relógio, abrindo-lhe a portinhola. Ajeitou os ponteiros que estavam atrasados, olhou minuciosamente o mostrador e voltou para a cozinha. O inquilino, vendo-a, foi para a roldana, acomodando-se no disco. Permaneceu por muitas horas lá dentro, escorregando da correia ao pêndulo. Quando voltou aos ponteiros viu que o mulato dormia sobre os papéis, aparentemente bêbado. O corpo da senhora estava estirado na varanda e ao fundo ouvia-se o badalar dos sinos. Em breve começaria a Missa do Galo.

Poucos anos depois o sobrado foi demolido, dando lugar a um desarrazoado edifício comercial. Antes de chegar à casa do Sr. Aristides, esteve em muitos lugares, até mesmo na Cruz de Ferro de um soldado nazista.

Era madrugada, o inquilino sentiu um leve impacto que balançou o lustre, seguido de um clarão. Deu uma cambalhota e colocou-se de pé, olhando para os cristais inferiores. Contraiu o corpo e foi sugado para baixo. Caiu em um cristal que ficava na penúltima fileira e grudou a testa no vidro, olhando atentamente para o globo. Dentro dele estava o inquilino do Bacharel Duarte. Suas mãos não eram como as do nosso inquilino, ovais e alongadas, e sim idênticas às de um ser humano. Olhando-o, era possível perceber o tronco bem formado, os membros bem distribuídos e harmônicos, os olhos negros. Ele não tinha no topo da cabeça aquela meia-lua azul comum a todos eles, mas um castiçal vermelho. Quem tivesse lido a História dos Inquilinos e os comparasse, diria que o inquilino do Bacharel Duarte era superior ao inquilino do Sr. Aristides.

Percebeu que a meia-lua azul se tornava vermelha, iluminando-se intensamente, e tirou-a do topo da cabeça. Ao colocá-la no colo, o clarão irradiou-se por todo o cristal, transformando-o em um rubi.

Contraiu-se e foi sugado para o globo.

O inquilino do Bacharel Duarte, vendo-o, pulou dos filamentos da lâmpada em que estava sentado e desceu para o fundo do globo. Equilibrou-se com as mãos, projetando o castiçal vermelho para o alto, fazendo com que os cristais inferiores e superiores fossem ocupados por vários castiçais vermelhos. A luz era tão forte que por um instante desorientou o nosso inquilino. Sentiu medo e afastou-se, procurando a passagem de volta aos cristais sem que pudesse encontrá-la. Grudou-se ao vidro, piscando os olhos com força.

— Quem é você? — perguntou, com voz vacilante de quem já não falava há mais de cinquenta anos.

— Sou o inquilino do Bacharel Duarte — disse, reduzindo a intensidade da luz.

Não o respondeu. Estava impressionado com o aspecto daquele que lhe parecia tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. Olhou para a lâmpada e viu que os filamentos estavam queimados. Contraiu-se e deslizou para cima, sentando-se no encaixe que prendia o globo à estrutura do lustre. Movia-se em círculos, assustado. Em determinado momento, olhou para os cristais, que estavam bem próximos a ele, e viu-os brilhar intensamente. As araras faziam barulho, bicando a grade da gaiola. Tentavam alcançar o cadeado com que o Sr. Aristides as prendia, unindo-as pelo pescoço por meio de uma corrente. Olhou para a sala e não conseguiu ver o sofá e os objetos que estavam sobre a mesa. Arrastou-se pela borda, fugindo da vista do outro, ocultando-se por trás da lâmpada. Começava a sentir-se fraco e sonolento. Vendo-o esconder-se, o inquilino do Bacharel Duarte ria, balançando a cabeça.

De cômico fez-se sério e grudou o rosto no globo, olhando para a sala. Estranhou a peculiaridade dos móveis, o chesterfield verde e as cabeças de crocodilo mumificadas, a pistola de bengala em meio às xícaras.

A casa do Bacharel Duarte era diferente da casa do Sr. Aristides, pequena e sem os adornos lúdicos que enfeitavam os móveis. Eram todos em miniatura e não havia divisória entre os cômodos. O Bacharel Duarte tinha os mesmos hábitos que o Sr. Aristides. Acordava muito cedo, cobria-se com um pijama de bolinhas e ao pisar no tapete também coçava o nariz. O inquilino observava-o da bússola, sentado na ponta da agulha magnética, transitando pelo disco de leitura e pela caixa circular. Mas não se limitava a ela — tinha liberdade para mover-se pelos móveis. Unia as mãos e fechava os olhos, e num átimo via-se dentro das minúsculas jarras inglesas e das estátuas em bronze que o Bacharel Duarte colecionava com muito rigor, percorrendo antiquários.

O seu lugar preferido era uma licoreira de cristal soprado, com sutis iridescências que lembravam a superfície de bolhas de sabão. Deitava-se no fundo e incidia o castiçal vermelho para o alto, iluminando o gargalo cujo tapador assemelhava-se a uma pera. Escolhera a bússola para que pudesse ver todos os cômodos da casa, que, como já foi dito, era pequena, um pouco menor que uma caixa de fósforo.

Desgrudou-se do vidro e pôs-se de pé, apontando o castiçal vermelho na direção da lâmpada. O nosso inquilino coçou os olhos e despencou, caindo sobre os calcanhares.

Reduziu a intensidade da luz e disse, olhando as araras que se debatiam na gaiola:

— Para que sejamos de fato independentes, se faz necessário sacrificar uma vida humana — e fez com que surgisse em todo o globo, num clarão imagético que emergiu sobre sua cabeça — substituindo o castiçal vermelho —, a História dos Inquilinos, que deliberadamente alterara, incluindo partes falsas. 

Entendeu que o visitante era superior a ele. Teve medo e mostrou-se resignado, não o olhava nos olhos.

Em verdade, o inquilino do Bacharel Duarte era um daqueles oito que observavam da torre de defesa os subordinados, no dia em que se congregaram. Fora relegado por seus pares por não aceitar as mudanças estabelecidas na ordem hierárquica. Queria que todos se mantivessem fixos e ordenados, sem que se expandissem para além dos Países Bálticos, tendo em vista que lhe foi oferecida uma posição secundária de comando, sem que ocupasse as pupilas de chefes de Estado. A raiva tomou-lhe conta e o orgulho excessivo fez com que abrisse mão da alta posição que ocupava para isolar-se. Estava perturbado pelo ressentimento.

A projeção era conduzida pelo primeiro inquilino da história e em nada se parecia com aquela que o Bacharel Duarte lera no vagão. Viu holocaustos com uma nitidez opressiva; foi convencido sem se deixar convencer. Voltaria para a Europa ou iria para algum outro país da América do Sul. Lembrou-se de que já estivera no inferno — etapa imprescindível —, espremendo-se numa fenda de argila mole, quase fluida, vendo as labaredas de fogo cortarem as rochas, crocodilos com cascos chamuscados mastigando pernas e braços, à margem de um lago de lama. Ergueu a cabeça, olhando para as fileiras inferiores. Os cristais lembravam sangue. À medida que a projeção avançava, sentia-se confuso.

— O Bacharel Duarte acordou, preciso ir — disse, e fez com que o clarão se apagasse.

Tirou-lhe a meia-lua azul do topo da cabeça, substituindo-a pelo castiçal vermelho.

O inquilino do Bacharel Duarte desapareceu fazendo com que o lustre pendulasse.

                                                               4.

Aproximou-se da lâmpada mais uma vez e tentou passar aos cristais superiores, mas não conseguiu. Ocupavam-nos pequenos castiçais vermelhos. Percebeu que já não se movimentava com a mesma rapidez, sentia arrepios em todas as partes do corpo.

O Sr. Aristides saiu do quarto, pisou no tapete e coçou o nariz. Entrou no banheiro, tirou as pantufas de crocodilo e começou a limpá-las com a bucha vegetal.

Enquanto isso, na sala, Margarida arranjava a mesa para o café da manhã. Quando ela o visitava, o Sr. Aristides tomava café da manhã; do contrário, não. Tirou os talheres de um armário que ficava próximo ao lustre. Nele, os Alpes Suíços destacavam-se formando ressaltos como certas gravuras medievais. O Sr. Aristides organizava os pratos meticulosamente alinhados, com um espaço de dois dedos entre as louças. Usava uma régua para medir os vãos, se por acaso via-os fora do lugar, sentia-se frustrado e chorava.

O inquilino tirou o castiçal vermelho do topo da cabeça e começou a apalpá-lo. Colocou-o no colo, olhando atentamente para as ranhuras que havia no suporte da vela. Devolveu-o ao topo da cabeça e fechou os olhos. A seguir, ouviu a porta do banheiro abrir-se e grudou a testa no vidro.

O Sr. Aristides sentou-se à mesa enrolado na toalha. Cortou o pão com uma faca dourada e cega, tirando-lhe o miolo. Cobriu-o com mel silvestre, levantando-se em direção à gaiola. Abriu-a — a ferrugem fez com que ecoasse um enorme barulho — e deixou o miolo na gaveta. Toda vez que abria a gaiola, o lustre e todos os móveis da casa estremeciam.

O inquilino, agora, não conseguia se mover. O peso que sentia sobre a cabeça era tão grande que sequer movimentava o pescoço. Cerrou os punhos, arrastando os joelhos, mas não saiu do lugar.

O Sr. Aristides comeu o pão com mel silvestre e bebeu um copo de leite. Limpou as mãos na toalha de algodão egípcio, levantando-se. Deitou no sofá, abriu a cigarreira e estendeu as pernas, apoiando-as sobre a cabeça de crocodilo. Margarida comia um pedaço de torta de banana.

Depois de sucessivas baforadas virou-se para ela:

— Vem, meu amor — disse, imitando a voz de um desses apresentadores norte-americanos. Depois, com voz de barítono, começou a cantar João Gilberto, formando círculos na ponta da sobrancelha. Ela agachou-se ao lado dele, acariciando-lhe o queixo. Ficaram juntos até anoitecer e em seguida foram para o quarto.

O inquilino olhou para a gaiola e viu que uma das araras estava de cabeça para baixo enquanto a outra forçava a grade, como se quisesse arrancá-la. Em pouco tempo, começaram a se bicar, fazendo com que se depenassem. Ouviu o tétrico e lânguido lamento que emitiam sobretudo ao ferirem as asas. Esperaram o sangue escorrer pelas penas e comeram o miolo de pão que o Sr. Aristides deixara na gaveta.

Forrou a cama e guardou na cômoda os objetos que estavam espalhados pelo chão. Sentou-se em frente ao espelho do armário para pentear os cabelos. O Sr. Aristides ajoelhou-se, beijando-lhe as pernas, num misto de felicidade e tristeza. Ela afastou-lhe a cabeça, fazendo com que ele deitasse. Os móveis eram todos de madeira e a cama do Sr. Aristides se parecia com leitos de hospital.

Era madrugada quando jogou no chão todos os objetos que arrumara cuidadosamente. Abriu as gavetas em que o Sr. Aristides guardava livros e rasgou-os; tirou da parede um dos quadros de Botticelli, colocando-o entre os braços. Pegou o chapéu de plumas e saiu pela porta da sala.

Nunca mais voltou.

                                                                5.

Os meses passavam e o inquilino se impressionava cada vez mais com o emagrecimento acentuado do Sr. Aristides. Não comia há dias e passava as horas estirado no sofá, em silêncio.

Via-o do globo. Durante todos esses meses não pôde sair dele, o seu corpo estava paralisado. O castiçal vermelho criou um ponto luminoso dentro do globo.

O Sr. Aristides saiu do quarto, pisou no tapete e coçou o nariz. O inquilino olhava-o obliquamente, e mesmo sem conseguir se levantar também coçou o nariz.

Abriu o chuveiro, apoiando-se no lavatório a fim de limpar as pantufas, mas não teve forças para manter-se erguido e escorregou, batendo a cabeça no mármore. Agarrou-se a ele e ensejou vômito, o que não passou do susto. Esfregou as mãos pelo rosto, relaxando o tronco. Segundos depois, sentou-se no chão do box, e com o rosto entre as pernas deixou a água escorrer pela nuca. Enxugou-se e foi para a sala.

O inquilino acompanhava-o movendo apenas os olhos. À proporção que se aproximava, conseguia ver com nitidez o quanto estava abatido, e por um segundo sentiu pena.

Soltou o cadeado e abriu a gaiola, erguendo-a na direção das venezianas escancaradas, mas as araras não alçaram voo. Virou-a de cabeça para baixo, sacudindo-a, mas elas não se mexiam. Estavam imóveis, com as garras fincadas à grade, transformadas em dois totens de pó. Colocou-a sobre a mesa e assoprou com toda força que tinha, mas faltava-lhe fôlego, mal conseguiu fazer com que esvoaçasse insignificantes partículas secas. Irritou-se, mas até mesmo sua irritação era frouxa. Pegou cada qual em uma das mãos, sentindo-as desfazer-se, e atirou-as contra a parede. O ar lentamente tornou-se cinzento.

Foi para o quarto, deitou-se e olhou para o desenho da amada no porta-retrato. Em seguida, quebrou-o, jogando-o na direção do armário. A claridade que vinha da sala mal ultrapassava a soleira da porta, desaparecendo na penumbra mórbida que começava a se formar no cômodo.

Já se passava das duas da manhã quando ouviu o barulho da campainha. Levantou-se, calçou as pantufas e encaminhou-se para a sala. Abriu a porta, lançando um olhar enviesado para a rua. Chovia e ventava muito. Bateu-a, desapontado, enxugando o rosto com uma toalhinha bege. Segundos depois, viu passar por baixo dela um envelope. Rompeu o lacre marrom e leu: História dos Inquilinos. Andou pela sala com a pasta a dois palmos do rosto, impressionado com a extravagante caligrafia da capa. Parou ao lado do lustre, folheando rapidamente todas as páginas. Voltou ao quarto, pegou o pince-nez e deitou-se no sofá.

O único idioma que o Sr. Aristides conhecia além do português era o húngaro, e o texto, como sabemos, estava em grego antigo. Traduziu-o com a ajuda de um pequeno dispositivo preso ao aro do pince-nez e começou a ler.

Em determinado momento, ergueu subitamente o tronco, olhando para a cabeça de crocodilo. Abriu-lhe a boca, mas os filamentos de linho enrijecidos e empoeirados dificultaram-lhe a inspeção. Mexeu nas xícaras que estavam sobre a mesa e passou os dedos pelos desenhos da cigarreira, aproximando-a de si a ver se encontrava alguma coisa nos elásticos que fixavam os cigarros. Pegou a pistola bengala e olhou dentro do cano. Manobrou-a algumas vezes, como se fosse atirar, contornando-a pela sala. Distinguiu um ponto luminoso dentro do lustre, que parecia aumentar de intensidade à medida que olhava. Ergueu a pistola, trincou os dentes e atirou. A bala explodiu o globo, estilhaçando todas as fileiras inferiores e superiores.

Demorou para que o inquilino chegasse ao chão, debatendo-se no ar por alguns segundos. Quando deu por si, estava sobre o tapete, em meio aos cacos e farelos de vidro. Via-se pela primeira vez fora do lustre e estranhou muito o tamanho das coisas, os móveis tinham a altura e o volume das grandes montanhas.

O Sr. Aristides caiu no chão com o recuo do disparo e não conseguiu se levantar.

— Urge pôr fim ao meu desespero — e concluiu, tragicamente, que só a morte poderia livrá-lo da angústia.

Trincou o maxilar e enrijeceu as pernas, numa expectativa de morte. Mirou o coração — órgão que a crença egípcia acreditava ser responsável por julgar o espírito — e atirou mais uma vez.

Fora do lustre, aos poucos, conseguia movimentar-se com naturalidade. O castiçal vermelho já não pesava sobre sua cabeça. Lentamente, aproximava-se dele, mas em determinado momento percebeu que flutuava. A cada passo, pairava no ar por alguns segundos, balouçando o corpo e impulsionando-se.

O Sr. Aristides ainda estava vivo, o que o agoniava. O disparo não acertara o coração; perpassou-lhe as costelas em direção ao estômago. Lera em algum livro de biologia que o ser humano, antes de morrer, começa a sentir muito sono. Aguardava, com uma mão na ferida, olhando as pantufas de crocodilo.

Não conseguia enxergar com nitidez o lustre estilhaçado, seus olhos marejavam. Olhou acima da cabeça e viu que aquele mesmo ponto luminoso movimentava-se pelo piso. Viu-o chegar muito perto de si e desaparecer.

Pulou sobre a barriga do Sr. Aristides e viu-se como um grão de areia no corpo de um gigante. Tentou agarrar-se ao pijama, mas suas mãos não conseguiam prender-se ao tecido. Quis aproximar-se do rosto e pulou algumas vezes para que flutuasse, mas não foi capaz de se orientar de modo a seguir sobre aquela montanha humana. À sua vista, os vincos da blusa interpunham-se como obstáculos invencíveis, sem que pudesse avançar. O Sr. Aristides sentiu que alguma coisa estava presa ao pijama e abriu os olhos. Passou a mão na lateral da barriga e notou que perdia muito sangue, quando viu que um clarão vermelho cintilava na altura do seu umbigo. Procurou-o, passando o dedo indicador pelo tecido. Em determinado momento, a dor que sentia tornou-se tão forte que sua respiração ficou lenta e compassada. Esqueceu-se do inquilino e mirou o teto, cuja madeira deteriorava-se, e num raro momento de lucidez arrependeu-se de não ter cuidado com o devido empenho e zelo da casa que pertencera aos seus pais. Também lhes herdara os móveis e as obras de arte, mas sobretudo a indiferença com que conduziam a vida. Engoliu seco, pensando no seu último amor. O inquilino percebeu que o corpo do Sr. Aristides se tornava lasso. Olhou para cima e projetou do castiçal vermelho, que inicialmente o mataria, todos os cinquenta anos de vida do Sr. Aristides. Ao ver que toda sua infância passava diante de si, sentiu uma dor ainda mais forte no peito e teve vontade chorar.

— Traíste-te, Aristides! — tinha uma voz longínqua que os seres humanos não ouviam.

Colocou a mão na boca e tossiu sangue. As nódoas mancharam o pijama e ele pôde ver, pela primeira vez em cinquenta anos, aquele que continuamente o observava.

Deu-lhe um leve tapa que o fez voar na direção dos vasos canópicos.

Dias depois, não estava mais no Brasil. Viu-se dentro de uma bomba nuclear, cruzando o Atlântico.

O caixão do Sr. Aristides desceu a serra no trem noturno. O enterro fora custeado pela associação dos Empregados do Comércio.