“Un homme seul est toujours en mauvaise compagnie.”
– Paul Valéry
I
Um homem sozinho está sempre em má companhia, assim sentenciou o poeta Paul Valéry, propondo-nos um paradoxo fulgurante o bastante para ensejar um vislumbre daquela sombria realidade existencial que as Escrituras e a Tradição da Igreja, que os místicos, os teólogos e até poetas, como Dante Alighieri e John Milton, designaram como o “Inferno”, mas que Dostoiévski – com um prosaísmo mais verossímil, porém não menos angustiante – designou como o Subsolo.
Há 160 anos, mais precisamente em abril de 1864, quando publicou o romance “Memórias do subsolo”, então as confidências anônimas de um homem oprimido por um orgulho tão imperioso quanto despropositado – e pela força do qual, voluntariamente, ele foi se trancafiando numa solidão obstinada, numa alienante obscuridade, onde nenhum gesto ou palavra de alento podia penetrar – Dostoiévski nos legou uma parábola acerca do “mistério da iniquidade”, dando início a uma inusitada demonologia que atravessaria todas as suas obras posteriores, e cujo mérito principal seria uma sutilíssima demonstração de como, no arriscado campo do livre-arbítrio, a realidade do demoníaco, do Maligno, de Satanás propriamente dito, só pode ser apreendida pelo indícios de sua atividade sobre a personalidade e as relações humanas.
No caso específico do protagonista do romance, o demoníaco sobrevém como uma típica combinação de orgulho e inveja que, por mais desarrazoadas ou impotentes, têm o condão de transmutar pequenas frustrações em motivos de revoltas desmedidas, de mágoas perenes, que assim o vão aprisionando numa incomunicabilidade rancorosa e, por isso mesmo, torturante.
Dostoiévski expõe desse modo o subsolo não como um lugar, mas como uma tentação perigosa, porque extremamente banal, e cuja consequência mais trágica é a de nos tornar artífices de nosso próprio inferno, tal como nos adverte o profeta Isaías: “arderás no fogo em que vós mesmos ateates” (50:11). E esse fogo, que outra coisa não é senão uma infelicidade continuamente avivada por desejos tão enganosos quanto persistentes, arde sem se consumir, em qualquer tempo e lugar, sem que dele jamais se possa escapar, como também nos adverte o poeta Milton: “our prison strong, this huge convex of fire.” (The Lost Paradise, Book II).
Para o leitor já familiarizado com as Memórias do subsolo, estas imagens de fogo, inferno e demônios talvez pareçam excessivas, uma mistificação desnecessária e sem respaldo no texto do romance que, ao contrário das obras posteriores, não faz a mais mínima referência aos temas da revelação bíblica. De fato, não há no enredo uma única personagem religiosa, nenhuma que padeça crises de fé, e Deus ou o Diabo só figuram nas interjeições.
Não obstante, o próprio Dostoiévski, de um modo ainda mais contundente, disse ter se empenhado para fazer desse breve romance, escrito em poucas semanas, um testemunho vívido da “energia de Satanás”!… Esta expressão, muito recorrente no original grego do epistolário do apóstolo Paulo, Dostoiévski a citou numa carta enviada ao seu irmão Mikhail em fevereiro de 18631. Nela, o ficcionista se queixa das dificuldades enfrentadas para a publicação do romance, especificamente, da censura imposta por Pobietonostsev, o chefe do Santo Sínodo Ortodoxo (um autocrata eclesiástico com poderes similares ao de um inquisidor católico), que não queria ver o nome do Cristo e tampouco as verdades da fé cristã como objeto de um proselitismo vulgar, vinculados em enredos hediondos, impregnados de cenas violentas e personagens perversas. Era assim que os censores resumiam as obras de Dostoiévski, cuja reputação de ex-presidiário e propagandista de ideias subversivas ainda se sobrepunha à sua reconciliação pública com a Igreja Russa.
Ao comentar essa ocorrência com o irmão, o escritor primeiro confessa seu desapontamento não somente com a censura, mas sobretudo com as suspeitas da Igreja. Depois, ironiza tal oposição fazendo alusões ao capítulo II da segunda epístola de São Paulo aos Tessalonicenses, onde se lê que algo sempre “detém a revelação do mistério da iniquidade, de sorte que ele só pode se manifestar a seu tempo” (II Ts 2:6). Mais adiante, Dostoiévski diz que para contornar a situação e “mostrar a necessidade da fé e de Cristo”, trabalhou cuidadosamente os discursos do protagonista para indiretamente expor (e aqui ele retoma o texto dos versículos 7 e 9 da mesma epístola paulina) que “o mistério da iniquidade está ativo” (mustêrion éde énergeïtai / μυστήριον ἤδη ἐνεργεῖται), e, portanto, seu romance seria um testemunho dessa atividade ou “energia de Satanás” (enérgéian toù sataná / erἐνέργειαν τοῦ Σατανᾶ).
Ora, constatando-se que Dostoiévski de fato acatou a censura da Igreja, e que os discursos de seu protagonista não versam sobre qualquer realidade da fé, resta-nos especular como essas Memórias do subsolo prestam um testemunho inaparente dessa energia satânica.
Para tal empreitada, aqui será proveitoso recorrer a dois grandes pensadores de nosso tempo, René Girard e Jean-Luc Marion, cujas metodologias hermenêuticas (uma antropológica e a outra fenomenológica, respectivamente), têm a vantagem de nunca se limitar ao aparente, de sorte que, mesmo atuando em distintos campos investigativos, suas ideias são tão convergentes que podem ocasionar uma extraordinária sinergia intelectual. No tocante ao tema aqui proposto, ambos dispõem dos meios teóricos necessários para que possamos captar a frequência exata em que vibra a tal “energia satânica” que Dostoiévski concentrou não somente nesse enredo, mas nos enredos das obras-primas subsequentes, a saber: Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869), Os Demônios (1872) e Os Irmãos Karamazov (1875).
René Girard, que desenvolveu uma antropologia fundamental a partir de uma arrojada teoria do desejo humano, radicada na imitação, ou mímesis – e teve nas obras de Dostoiévski um dos seus principais marcos de orientação – é categórico ao afirmar que as Memória do subsolo são o retrato mais nítido de uma alma aprisionada por seus próprios desejos numa inexpugnável cadeia de reciprocidades2.
Neste mesmo sentido, Jean-luc Marion – apesar de nunca ter elaborado uma teoria do desejo, e nunca ter publicado quaisquer análises das obras de Dostoiévski – postulou que a fenomenalidade do Mal, contrariando toda presunção de injustiça e perversidade, quase sempre se manifesta através de uma lógica coerente, absolutamente aceitável e rigorosamente justa: a lógica da reciprocidade.3 Se no mais das vezes – diz-nos Marion – tornamo-nos vulneráveis ao Mal, se a ele aderimos sem resistir, e até mesmo sem perceber, é graças a essa lógica insidiosamente razoável, persuasiva, cuja dinâmica de causa e efeito a revelação bíblica assinalou, com aguda precisão etimológica, sob a rubrica do “satânico”, ou seja, da “acusação”.
“Acusação” e “reciprocidade” seriam portanto as palavras-chave para apreender a energia satânica que converte a vida desse personagem num infernal subsolo. Partindo desse pressuposto, podemos logo de início constatar que as duas partes nas quais Dostoiévski dividiu o romance têm em cada uma dessas palavras o seu mote narrativo.
A primeira parte, propriamente intitulada Subsolo, é um longo e, por vezes, disparatado libelo acusatório, no qual o protagonista atira invectivas contra tudo e contra todos, a começar por si mesmo: “Sou um homem doente, sou um homem raivoso. Sou um homem sem graça nenhuma. Acho que sofro do fígado. Na verdade, não tenho a menor ideia de minha doença, nem sei direito o que dói…4” A suposta doença do fígado talvez seja uma debochada alusão à astrologia médica que diagnosticava como “biliosas” as pessoas de temperamento colérico e impertinente. Com efeito, na sequência ele diz ser “supersticioso ao extremo, pelo menos o bastante para respeitar a medicina.”5
Mas qual seria a doença do homem subsolo? Prosseguindo na narrativa, ele nos dirá que sofre de um mal psíquico ou moral que se impõe como uma dor insuportável. Ora, tal dor, como qualquer outra, tem como reação imediata a necessidade de suprimi-la, de fazê-la cessar por completo. Mas para isso urge descobrir a sua causa. Com efeito, a busca por uma etiologia dessa dor é o que transforma a primeira parte das Memórias do subsolo numa copiosa lista de acusações onde figuram as causas mais diversas: circunstâncias socioeconômicas, ideologias políticas, decadência de costumes, vulgaridade estética, etc. E de tão diversas, essas causas se revelam até contraditórias: ele acusa indiretamente o capitalismo de Bentham e Mill, na mesma medida em que acusa o socialismo utópico de Tchernichévski; acusa a passividade do campesinato obtuso e o europeísmo ridículo dos aristocratas; acusa o esteticismo pedante dos artistas tanto quanto acusa a insensibilidade burguesa ante o “belo e o sublime”. Ele aborda cada uma dessas “causas” com uma argumentação ora veemente, ora irresoluta, ora brilhante, ora displicente; expõe as facetas de cada uma delas, fazendo-as cintilar de modo quase ofuscante, mostrando como podiam ser justificativas convincentes, perfeitas, inquestionáveis. Porém, já nas frases seguintes as desmente e rejeita dizendo: “Mas, na verdade, não é nada disso. Minto.”
O propósito desta errância argumentativa, que se prolonga por nove capítulos, não é nos irritar (embora o consiga), mas nos mostrar que o rancor é, por natureza, fluido e aderente, tudo lhe vem a calhar, ainda que em nada esteja a sua causa verdadeira. No caso dele, essa causa é a consciência de que o mundo e as pessoas à sua volta não lhe prestam o reconhecimento do qual se supõe merecedor. A grandiosa imagem que o homem do subsolo tem de si nunca surge no campo de visão de ninguém, não causa a mais mínima impressão a quem quer que seja: ou as pessoas estão cegas ou essa imagem é irreal.
Ele padece, portanto, daquele impasse ontológico, comum a toda pessoa humana, e que os fenomenólogos, como Jean-Luc Marion, denominam como uma angústia pelo “direito fundamental de aparecer, de se situar no horizonte possível de toda realização fenomênica – ou seja, no olhar alheio.”6 Saber-se visto pelo outro, concentrar sobre si o olhar atento dos outros é o “testemunho fundador do ser”, o momento inaugural do “Eu”, porque o olhar alheio, enquanto testemunho, é o que me assegura esse direito de aparecer: Sou visto, logo existo!… Não obstante – adverte-nos Marion – o olhar alheio é “um horizonte de indeterminação determinável”7, pois nunca sabemos como de fato seremos percebidos. Em vez do olhar atento e interessado que comprova a realidade existencial do Eu, pode sobrevir um olhar indiferente ou de menosprezo, que transformará o Eu num aborto existencial – tal é a condição do homem do subsolo.
René Girard concorda com a fenomenologia de Jean-Luc Marion. No entanto, ele dá outra volta no parafuso e diz que mais do que saber-se visto, o que melhor funda o Eu é o saber-se imitado. O outro pode me lançar um olhar apático e até antipático, mas se ele me imita é porque o meu Eu está sendo visto, atentamente percebido. E a realidade desse Eu é tão autêntica, tão notável, tão diferente que está servindo de modelo aos outros: Sou imitado, logo existo!… Só quando imitado é que o indivíduo obtém o testemunho de sua fenomenalidade, alcança o seu direito de aparecer, funda o seu “ser” – ou, no mínimo, é quando a bela ideia que ele faz de si mesmos adquire a estabilidade ontológica de um Eu perceptível e, portanto, diferente.
Mas, novamente, é a consciência de jamais ter sido objeto do olhar alheio, e tampouco um modelo a ser imitado, que o homem do subsolo sofre e maldiz: (…) estou firmemente convencido de que não só muita consciência como até qualquer consciência é uma doença. Eu insisto nisso. Tal consciência, portanto, é a doença da qual ele padece e não quer se curar. Por quê?
Divagando sobre a construção de um certo “palácio de cristal”, o homem do subsolo nos dá uma pista mostrando como a intransigente lógica de reciprocidade não somente o constrange pela emergência inadiável de sua alteridade, mas exige que seja algo absolutamente singular. Ele então caçoa desse palácio por representar um tipo de clube dos exitosos, de todos os que lograram se diferenciar (como diz Girard), todos os que alcançaram o direito de aparecer, situando-se no horizonte do olhar alheio (como diz Marion). Mas para o homem do subsolo, “todos” é uma palavra que não cabe em sua concepção radicalmente exclusiva de alteridade. Esta “todosnoisice”8 configura uma alteridade grupal, compartilhada, e, portanto, uma contradição em termos que apenas dissimula um ajuntamento identitário. Logo, o palácio de cristal tem para ele o mesmo prestígio e finalidade de um galinheiro.
A consciência dessa enganosa diferenciação satura-lhe o rancor, e o faz preferir o subsolo a qualquer outra impostura:
Portanto, viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem nobre até minha última gota de fel, ainda assim, nas condições em que eu o vejo, eu não quero ser ele. (Se bem que nem por isso eu deixe de ter inveja dele; não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!) Lá, pelo menos, é possível… Ah! Ora essa, agora eu também estou mentindo! Estou mentindo porque eu mesmo sei que dois e dois são quatro, que o subsolo não é melhor de maneira nenhuma, e que aquilo que eu almejo é algo muito diferente, só que não vou encontrá-lo em parte alguma! Para o diabo, o subsolo!9
No subsolo, ele se crê imune ao autoengano, livre das teias da reciprocidade. Isso fica mais evidente quando passa a se masturbar com frequência, entregando-se a uma devassidão noturna, secreta, sórdida10, para assim se convencer de que, mesmo no mais completo isolamento, pode se bastar. Contudo, quando diz que está mentindo, ele reconhece que se excluir das relações humanas para escapar da reciprocidade é ainda um gesto de reciprocidade: ele evita todos aqueles por quem se supõe evitado. Além disso, alcançar uma alteridade verdadeiramente diferente implica permanecer no campo das relações humanas, pois a emergência de qualquer alteridade decorre necessariamente do testemunho do outro. Sem esse testemunho a alteridade supostamente alcançada permanece duvidosa.
Daí a profunda intuição de Dostoiévski em intitular essa primeira parte do romance como Subsolo. Evitando o olhar do outro, o único campo possível para realização fenomênica, o protagonista encerra-se – como dito acima – num não-lugar, confina-se numa aprisionante insituabilidade que Jean Luc-Marion define como o paradoxo de uma “liberdade carcerária”, então o sentimento mais enganador e danoso da reciprocidade. René Girard reforça essa concepção, e diz que o subsolo é a própria reciprocidade que nos captura num alucinante sistema de feedbacks, como um círculo vicioso que vai se estreitando progressivamente11 (this huge convex of fire, do verso de Milton). E é precisamente isso o que o protagonista nos mostrará na segunda parte do romance.
II
A parte inicial do romance soa como um delirante solilóquio para nos dar uma medida exata do transtorno ao qual o homem do subsolo fora reduzido pelo rancor. Dostoiévski optou por uma narrativa retrospectiva, passando dos efeitos às causas para demonstrar, através de uma anamnese, que toda e qualquer acusação só pode adquirir sentido num contexto de reciprocidade. As inexoráveis demonstrações de rancor que até então ele voltava contra causas abstratas pediam um suporte mais concreto para não deixar tão explícita a sua gratuidade. Com efeito, na parte seguinte, a etiologia muda de método, e ele já não acusa o “ que”, mas “quem” o fez sofrer, passando do resmungo solitário ao embate direto contra pessoas com nome e rostos próprios.
Essa segunda parte se constitui da rememoração de três ocorrências conflituosas que o protagonista se esforçou em criar no intuito de provar a arbitrariedade do desprezo do qual se supunha vítima, e assim apontar um culpado, ou culpados dos quais pudesse se vingar. É quando sua narrativa atinge a alta voltagem do ressentimento, onde a energia de Satanás e o mistério da iniquidade por ele urdido vigoram de forma intensa.
De início, ele ratifica o enfoque fenomenológico de Jean-Luc Marion acerca da reciprocidade, quando diz da autoimagem degradante que via refletida nos olhares alheios:
Agora, para mim, está perfeitamente claro que, em razão da minha vaidade sem limites e, portanto, da exigência exacerbada comigo mesmo, eu me olhava o tempo todo com uma insatisfação furiosa, que beirava o nojo e, por isso, em pensamento, atribuía a todo mundo minha forma de ver.12
Porém, antes dessa epifania esclarecedora, o feedback mais recorrentemente apreendido nos olhares alheios, como ele mesmo admite, sobrevinha apenas para agravar a impressão de desimportância que ora o tornava invisível, ora o projetava numa mediocridade repulsiva. Por isso, urgia-lhe se autoafirmar e provar a excepcionalidade de sua pessoa “nem que fosse ao preço de levar pancadas nas costas, nem que fosse virando um troglodita.13” Esse apelo à violência indica que a expansão do rancor já propende para uma misteriosa iniquidade, pois os motivos alegados não o tornam menos gratuito. Aliás, isso fica mais evidente pela imprevisibilidade daqueles a quem haveria de culpar e, por conseguinte, tomar como vítimas de suas vinganças.
Tudo tem início quando a lógica da reciprocidade revira-lhe a vaidade pelo avesso: considerando-se desde sempre injustamente execrado, ele decide fazer dessa execração uma auréola, pois se nunca havia atraído olhares de interesse, simpatia ou admiração, restava-lhe atrair olhares assustados, pasmados, escandalizados. Convicto de que a sua alteridade jamais era testemunhada porque todos à sua volta a obstavam, ele resolve se chocar contra tais obstáculos, fazendo do choque o único testemunho possível e o mais imediato.
É precisamente o que ocorre em seu primeiro confronto. Durante um passeio pela avenida Niévski, lugar onde desfilava a mais fina flor da sociedade de São Petersburgo, e cuja visão lhe causava “incontáveis tormentos, humilhações, ataques de rancor”, ele entra numa taverna onde alguns homens estão brigando e se sente um vivo desejo de participar da confusão. Ocorre, porém, que um oficial que estava de saída o repele com um puxão nos ombros como se ele fosse uma coisa qualquer: Uma surra, eu até podia desculpar, mas nunca poderia perdoar o fato de ele ter me tirado do lugar sem sequer perceber minha existência.14
Prontamente, esse oficial se torna no culpado de todas as suas amarguras, na vítima substitutiva da sociedade que o trata como “uma sórdida e obscena mosca15”. Ele passa a persegui-lo diariamente na ânsia de perpetrar uma vingança exemplar, ou seja, esbarrar no homem, obrigando-o assim a reconhecer sua existência. Mas todas as vezes que a oportunidade surgia, ele recuava acovardado, reforçando a acabrunhante sensação de impotência. Até que um dia cria coragem e se choca com o oficial que, tendo o dobro do seu tamanho, pouco ou nada sente, encaro-o indiferente e prossegue deixando aquilo na conta de uma trombada casual. Ele, por sua vez, “leva a pior”, sai cambaleando com o impacto do “inimigo”, não recebe sequer um pedido de desculpas, e, no entanto, considera-se vingado: o oficial o olhou, logo ele existe. Tanto bastou para voltar ao subsolo extasiado, cantando árias italianas numa alegria tão intensa quanto efêmera, pois, no dia seguinte, o ridículo daquela vingança haveria de se impor como uma náusea.
Mesmo assim, a lógica da reciprocidade não lhe dava sossego: ou bem ele se fazia testemunhar através de uma vingança drástica, ou bem continuaria na obscuridade do Subsolo. Sem perder tempo, ele acredita que encontrará uma nova oportunidade e novas vítimas numa festa de reencontro entre antigos colegas da juventude. Ali, aos seus olhos, estariam reunidos alguns daqueles deslumbrados moradores do palácio de cristal, os presunçosos e iludidos que ele tanto detestava. Sua nova vingança consistiria em os afrontar e humilhar pelo desengano. Isso, porém, resultaria numa das cenas mais grotescas do romance. De início, sua conduta varia do franco menoscabo a uma simpatia quase adulatória. Percebendo, porém, que os colegas se mantinham numa deliberada indiferença, ele logo perde a linha e começa a zombar de Zvierkov, o convidado de honra, para quem convergia toda a atenção do grupo. Recorre então aos expedientes mais tresloucados para se fazer notar: interrompe as conversas com perguntas inconvenientes, provocativas; cantarola ou fala sozinho, e sempre num tom mais alto; até chegar ao extremo de passar três horas caminhando de um lado a outro da sala, martelando o piso de madeira com passos furiosos. Nada disso abala a firme impassibilidade dos colegas que prosseguem na comemoração como se toda aquela algazarra fosse música. Eles já o conheciam e não esperavam um comportamento diferente.
Quando a comida e a bebida acabam, os colegas decidem prolongar a festa num bordel, e se retiram sem consentir que ele os acompanhe. Vendo-se sozinho, como se fosse parte do lixo que ali resta, o homem do subsolo sucumbe noutro fracasso, a situação mais ultrajante e injuriosa a que ele jamais se vira exposto. Mas é quando a lógica da reciprocidade sobrevém num rebote e o impele a desafiar Zviervok para um duelo. Depois dos sucessivos malogros nos propósitos de vingança, ele chega a conclusão de que só a morte poderia consumá-la a contento.
Com efeito, ele sai no encalço dos colegas arrastado pelos ímpetos mais contrastantes, ora desejando um embate violento ora uma reconciliação, ora se dizendo pronto para espancar ora para ser espancado, ora querendo matar ora querendo morrer: Eu vou me vingar, senão, nesta mesma noite, hei de encontrar o meu fim.16 Aqui podemos constatar que a reciprocidade já exorbita toda a razoabilidade, despontado como uma vontade heterônoma, cujo poder de alienação é praticamente inescapável – o Subsolo. Essa heteronomia que transmuta o rancor numa irreprimível pulsão de morte (quer seja a sua ou a dos outros), pode ser lida como a primeira irrupção evidente da “energia satânica” referida por Dostoiévski na correspondência com seu irmão. Para que isso fique mais inteligível, convém considerar a seguinte reflexão fenomenológica de Jean-Luc Marion:
Tanto o ato extremo de matar como o de provocar a própria morte, ou ambos, configuram uma vingança perfeita, através da qual o indivíduo procura conquistar e destruir de uma vez por todas o horizonte do olhar do outro, cujo acesso sempre lhe fora barrado. No momento decisivo de uma morte violenta, e em razão dessa violência, ele pressente que alcançará o testemunho de sua alteridade nos olhos perplexos daquele que sofrerá a vingança, impondo-lhe enfim o seu direito de aparecer. Para o vingador, a morte não implica numa anulação imediata desse feito, mas na sua pregnância, porque uma vez obtido o direito de ter a alteridade testemunhada, ele teme perdê-la e, por conseguinte, vê-se na urgência de matar a testemunha, de fechar-lhe os olhos e assim destruir esse instável horizonte de realização fenomênica no qual finalmente conseguiu se situar. Se, por fatalidade, ocorrer a sua morte, o sucesso será ainda mais completo, porque percebendo-se igualmente testemunhado, ele pode fechar os próprios olhos e destruir em si mesmo o horizonte do testemunho. (…) Atentar para o paradoxo iníquo dessa lógica, mensurando a sua irredutibilidade, bem como a sua magnitude, é o que basta para apreender o mistério satânico que constantemente nos assedia com a tentação de uma inexistência.17
“Tentação da inexistência” é a definição cabal do estado de espírito do homem do subsolo não somente nesta situação, mas ao longo de toda a narrativa. Dela podemos inferir essa vontade obstinada, irrefreável de aniquilar a tudo e a todos, e que só pode ser consumada no ato extremo de uma autoaniquilação. Trata-se de uma tentação paradigmaticamente satânica porque compreende a mesma obstinação escatológica no orgulho, na inveja e na raiva que condenou Satanás a uma igual e misteriosa inexistência, conforme nos descreve o profeta Ezequiel (28:19): “Pelas tuas muitas iniquidades, eu fiz sair do meio de ti um fogo que te consumiu, reduzindo-te em cinzas sobre a terra. Todos os teus conhecidos estão apavorados por causa de ti. Motivo de horror te tornaste e para sempre deixaste de existir.” Nestes versículos se enquadra não somente a figura Satanás, mas também a triste figura do homem subsolo, cujas pulsões de destruição e autodestruição, a partir desse capítulo, ele passa a confessar com toda franqueza. É o que vemos enquanto ele ainda está a procura de Zvierkov e rumina as possíveis consequências do duelo, como a perda do emprego, da residência, de sua irrelevante posição social, seguida de uma demorada prisão na Sibéria, da qual voltaria anos depois como um mendigo andrajoso para se expor ao mundo. A expectativa de um porvir tão fracassado mostra como ele já entorna sobre si o ódio que não consegue despejar sobre o outro, e assume o papel adverso desse outro, convertendo-se em vítima da própria vingança. Quanto a isso, Girard propõe uma observação certeira:
O orgulhoso se vê como um no sonho solitário, mas no fracasso ele se divide entre um ser desprezível e um observador que despreza. Ele se torna Outro para si próprio. O fracasso o obriga a tomar, contra si mesmo, o partido desse Outro que lhe revela o seu próprio nada.18
Podemos achar uma confirmação, ou melhor, quase uma encenação dessa análise girardiana no último parágrafo do capítulo, quando o homem do subsolo chega ao bordel onde esperava alcançar seus colegas e descobre que eles não estão ali. Tapeado e novamente humilhado, ele contempla-se num espelho e pensa consigo: “Meu rosto perturbado me pareceu repugnante ao extremo: pálido, maldoso, infame, de cabelos desgrenhados. Tanto pior, isso até me deixa contente…”19 Nestas sentenças há uma reverberação dos versículos de Ezequiel, visto que as pulsões destrutivas nelas expressadas estão fazendo da vida do homem do subsolo um contínuo e vagaroso suicídio, dando-lhe o aspecto apavorante daquilo que o poeta Fernando Pessoa definiu como um “cadáver adiado”.
A partir deste ponto já é possível perceber como a lógica da reciprocidade, consolidando-se como uma vontade heterônoma e autodestrutiva, pode inspirar-lhe o silogismo mais desesperado: acuso-me, logo existo!… Fazendo-se acusar, ofender e até destruir, o homem do subsolo obtém de si mesmo o testemunho que jamais conseguiu encontrar alhures. Eis o motivo de não querer se curar de sua consciência acusatória, porque adiando, prolongando a auto-acusação, ele prolonga a autodestruição e, portanto, o autotestemunho. Quanto a isso, leia-se o seguinte parágrafo:
O ser humano adora criar e abrir caminhos, isso nem se discute. Mas por que ele também adora, até as raias da paixão, a destruição e o caos? Aí está, digam lá os senhores! Todavia, sobre isso, eu mesmo gostaria de acrescentar duas palavrinhas à parte. Será que ele, talvez, adora tanto a destruição e o caos (afinal, isso nem se discute, às vezes ele gosta demais disso, não há dúvida), porque ele mesmo, de forma instintiva, teme alcançar o objetivo e terminar o edifício que está em construção?20
O edifício em construção, como visto na primeira parte, é a alteridade de sua pessoa. Mas a construção da alteridade pessoal, diz-nos Marion, quando feita em isolamento, e à custa dela mesma, só pode resultar na satânica realidade ontológica de uma “antipessoa”. Marion emprega aqui um conceito teológico cunhado pelo Papa Bento XVI (quando ainda era o jovem e brilhante sacerdote católico que ocupava a cátedra de teologia fundamental da universidade protestante de Tübingen), que numa arguta exegese da profecia de Ezequiel, enuncia nestes termos a energia intrinsecamente disruptiva de Satanás, dissociando-o da positividade constitutiva que a fé cristã atribui ao conceito de “pessoa”, como unidade tendencial de todas as potências do ser realizadas segundo a graça do amor divino e, portanto, em necessária comunhão com Deus e com o próximo. Essa comunhão, que o homem do subsolo deprecia como outra abominável “todosnoisice”, é o nexo da economia prosopográfica inferida da misteriosa realidade da Santíssima Trindade, um fenômeno dialógico cujos componentes se manifestam e definem na medida em que mutuamente se relacionam. Marion traduz a síntese dessa economia, ou seja, “três hipóstases (pessoas) e uma mesma ousia (essência)”, como três alteridades que emergem distintas e unidas numa mesma identidade. Satanás, obviamente, não participa, ou melhor, não comunga desta prosopografia. Para melhor explanar esse raciocínio, Marion, numa referência à Epístolas aos Romanos (4:17 ), observa que se Deus, por amor, “chama à existência o inexistente” (kalountos ta mê onto ôs onta), Satanás só pode operar em sentido contrário, como um obstáculo ou fator de degeneração existencial que suscita uma recusa obstinada da participação nesse amor21. Com efeito, o “inexistir” de Satanás como antipessoa designa um fenômeno hipostático fadado à incompletude pela negação do Outro (quer seja Deus ou o próximo). E disso o próprio homem do subsolo dá testemunho quando diz: meu sofrimento é dúvida, é negação.22
Aqui, num parêntese, convém notar o equívoco de Sartre quando, na peça “Entre quatro paredes” (sua versão do Subsolo), declara que “o inferno são os outros”. Dostoiévski, fiel à sua fé cristã, mostra precisamente o contrário, que o inferno (ou o Subsolo) é a negação do outro, a impossibilidade de toda alteridade. Isso ficará primorosamente demonstrado na terceira e última ocorrência, onde o protagonista narra seu encontro dramático com a prostituta Liza.
III
Dostoiévski, de um modo bastante significativo, faz com que o homem do subsolo conheça Liza no exato momento em que ainda se contemplava no espelho. Sua presença destoava das outras mulheres do bordel pelo semblante carregado por uma seriedade entristecida, na qual ninguém reparava, mas que para ele acusava uma alma igualmente derrotada, igualmente revoltada. De imediato, ela se avulta como a sua contraparte feminina, ou – como diria Girard – o seu “duplo”, e portanto uma rival que ele decide levar para cama ainda movido pelo desejo de perpetrar a vingança da qual seus colegas haviam escapado.
O intercurso entre eles decorre numa volúpia inamistosa como se fossem dois bichos. Sem o descaramento próprio das meretrizes, Liza o olhava com um ar contrafeito, quase hostil, o que encorajava ainda mais seu propósito de a ultrajar. Consumado então o coito, enquanto ambos se vestiam, ele começa a descrever uma cena mórbida que, supostamente, teria presenciado horas antes: o caixão de uma prostituta sendo retirado do subsolo úmido e repugnante dum bordel da praça Sennaia.23 Liza escuta intimidada, sem saber se aquilo é uma ameaça ou um aviso. Depois, com uma eloquência cruel e uma muita destreza psicológica, ele passa a anunciar o futuro lúgubre que a espera: o embotamento ligeiro dos seus parcos atrativos físicos, seguidos da derrocada da saúde que a obrigaria a se mudar para prostíbulos cada vez mais baixos, num aviltamento constante, até findar na indigência do subsolo. Liza, ingênua e sugestionável, cai num pranto aflito, fazendo rebentar a couraça de cinismo com que se defendia das vicissitudes do mundo.
A fruição daquele desespero foi para o homem do subsolo mais intensa e prazerosa do que o pífio gozo sexual que o antecedeu. Finalmente ele lograva consumar a vingança tantas vezes adiada, tornando-se para a prostituta o acusador que até então não havia achado para si mesmo. Para não perder tal papel, e tampouco o preciosíssimo bode expiatório que o enseja, ele se faz de compadecido, prontifica-se em ajudá-la a sair daquele descaminho, e dá-lhe o endereço de sua casa para que ela o visite tão logo seja possível. Mal sabia ele que aquela visita ocasionaria um revés que o fecharia irremediavelmente no subsolo.
Dostoiévski nos faz pressentir esse desfecho ao dar à narrativa uma gravidade que vai transmutando o tom anedótico das páginas subsequentes em puro suspense. Após uma demora que se prolonga por quatro dias, deixando o protagonista numa ansiedade atroz, Liza reaparece no momento mais inoportuno, quando ele choramingava enraivecido pelas tentativas vãs de atormentar seu velho criado, flagrando então toda a sua vulnerabilidade emocional. Naturalmente, aquela surpresa termina por o inflamar e, sem se conter, ele a cobre de impropérios. Acuada, a moça tenta se justificar dizendo que viera em busca de seu apoio para deixar a prostituição. Isso, porém, retiniu em seus ouvidos como uma licença para o escárnio mais desapiedado: “eu despejei meu rancor e zombei de você. Eles me humilharam, e eu também quis humilhar; estraçalharam-me como um trapo, por isso eu quis mostrar o meu poder… E você achou que eu estava lá com o propósito de salvá-la?…24” Mas é precisamente neste momento que sobrevém o revés mais inesperado: em vez de se contagiar pela raiva, ou outra vez cair em prantos, Liza avança ternamente para ele num abraço consolador. Fulminado pela subitaneidade e o calor daquele gesto, ele desata num choro sincero e, por isso mesmo, reconfortante.
Mas seria coisa de instantes. Depressa, a lógica satânica da reciprocidade torna a se apoderar de sua mente e coração, revertendo aquela circunstância com o raciocínio insidioso: “Acudiu-me também à transtornada cabeça o pensamento de que os papéis estavam definitivamente trocados, que ela era a heroína, e que eu era uma criatura, tão humilhada e esmagada como ela fora diante de mim naquela noite, quatro dias atrás”.25 E, ainda impelido por essa mesma lógica, o homem do subsolo conspurca aquele abraço tornando-o em ocasião para a estuprar. Era o castigo pela audácia de querer consolá-lo. Ao final de tudo, num requinte de vileza, ele ainda enfia uma nota de cinco rublos na mão de Liza. Aturdida pela enormidade daquele opróbrio, sentido-se mais violada na alma do que no corpo, Liza se retira deixando o dinheiro sobre a mesa. Ao perceber a cédula amassada, o homem do subsolo se enche de remorso e corre para rua com o propósito de alcançá-la e suplicar seu perdão. Porém, seu remorso logo é sobrestado por outra investida da lógica satânica que o faz ponderar que talvez a sua violência tenha inoculado em Liza o veneno do mesmo orgulho rancoroso, que a lembrança daquela ofensa se tornará uma consciência corrosiva (igual a sua) que haverá de purificá-la e elevá-la pelo ódio contra tudo e contra todos. Em suma, que Liza se tornará noutra criatura do subsolo: ofendida, revoltada, mas verdadeiramente livre em seu ódio e solidão! Ele então volta para casa, constatando que tudo à sua volta é escuridão e “neve molhada” (título dessa segunda parte), e naquela mesma noite adoece de angústia.
Com essa penetrante ironia final, Dostoiévski permite que o homem do subsolo alcance uma compreensão plena e terrível da reciprocidade e, sobretudo, do dano acarretado pela energia satânica de sua lógica iníqua. A visita de Liza foi para ele como um “descensus Christ ad inferos”, o primeiro e único raio de luz a atingir as trevas de seu subsolo, demonstrando, através da própria humilhação, da identificação sincera com os tormentos dele, de uma humilíssima capacidade de autossacrifício, que só o amor podia libertá-lo daquela cárcere e trazê-lo de volta à “vida viva” (vitalis vitae, expressão agostiniana que Dostoiévski repete por quatro vezes nestas páginas finais). Quando Liza o apertou contra seus braços, pensando não em si mesma, mas nele, manifestou-lhe na carne essa “vida viva” contra a qual lógica da reciprocidade o havia prevenido e afastado (p. 185) com profunda repugnância (p. 189). Aqui a arte eminentemente religiosa de Dostoiévski, como sublinha René Girard, vem à tona nessa imagem aterradora do homem do subsolo acendendo o fogo de seu inferno nas chamas do amor recusado.
No estupro de Liza, a lógica da reciprocidade faz com que ele destrua por completo a possibilidade de se tornar verdadeiramente livre, amando e sendo amado. Em vez disso, ele optou pela liberdade de um “não” decisivo ao amor, fechando-se de um modo igualmente decisivo no inferno do subsolo. E tanto mais eterno será esse inferno quanto mais eterna for a possibilidade desse amor. Isso é o que Dante já nos havia afirmado quando escreveu na porta do Inferno os seguintes versos: “por mim se vai à cidade dolente / por mim se vai à eterna dor / por mim se vai a gente danada / foi justiça que moveu meu Feitor / potestades divinas me fizeram/ suma sapiência e primo Amor…” O inferno (ou o Subsolo) como um feito do “primo amor” (1 João 4:19), ou melhor, como feito da negação desse amor, é precisamente o que Dostoiévski quis nos mostrar.
Mas não somente isso. Seu enredo configura uma sutilíssima demonologia (i.e., um discurso sobre o demoníaco), por tornar perceptível a “atividade satânica” (enérgéian toù sataná / erἐνέργειαν τοῦ Σατανᾶ) ao mesmo tempo que mantém imperceptível o seu “ator”. Logo, não causa estranheza que, desde a sua publicação, essa estranha novela, quase sempre mal recepcionada, venha extrapolando os limites do testemunho para se impor como uma profecia. Dostoiévski que, no prefácio, já nos previnira que tais antipessoas – iguais ou piores do que o homem do subsolo – estão ao nosso redor, não se espantaria com as atuais notícias de anônimos que repentinamente atraem para si todos os olhares do mundo perpetrando chacinas em escolas infantis, engajando-se em atentados terroristas ou, muito simplesmente, valendo-se da deepweb ou da darkweeb (subsolos par excellence) como horizontes de manifestação fenomênica de suas pulsões destruitivas e autodestrutivas.
Tudo isso demonstra o quão certeira foi a intuição de expressar o mistério fenomênico de Satanás como uma hipérbole acusatória suscitada pela lógica da reciprocidade. Sumido nessa lógica, diz-nos Jean-Luc Marion, transmutado em rancor, Satanás mune o indivíduo com as acusações mais justificáveis e profusas, através das quais faz com que ele vá se excluindo, se isolando até que não lhe reste mais a quem acusar, até que se ache numa infernal solidão onde nenhuma alteridade é possível – nem mesmo a sua, nem mesmo a do próprio Satanás. “Um homem sozinho está sempre em má companhia”, aqui o paradoxo de Paul Valéry ressoa ainda mais nítido. Inexistindo objetivamente, Satanás faz com que todo o peso do rancor desabe sobre o indivíduo como uma autoacusação que o induz à tentação do mesmo inexistir.
Com as suas “Memórias do subsolo”, Dostoiévski nos deixa contemplar, ou no mínimo pressentir o mistério iníquo dessa tentação, e mais ainda do Tentador, que pode dar à vida uma aspecto de quase morte, e fazer com que uma pessoa se degrade a ponto de se tornar uma antipessoa: uma alteridade indefinidamente residual, animada apenas por esse mínimo de consciência que lhe permite testemunhar, pelo ódio, a própria inexistência.
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1DOSTOÏEVSKI, Fédor. Correspondance de Dostoïevski, 1859-1865 (Tomo II). Tradução: Dominique Arban. Paris: Calmann-Lévy, 1959.
2 GIRARD, René. A Crítica no Subsolo. Tradução: Martha Gambini. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2011.
3 MARION, Jean-luc. Prolégomènes à la charité. Paris: Grasset, 2018. pp. 55-63.
4 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Memórias do subsolo. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Peguin-Companhia das Letras, 2021. p. 18.
5 Ibid.
6 MARION, Jean-Luc. Étant donné. Paris: Presses Universitaires France, 2013. § 19.
7 Ibdi.
8 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. opus cit. p. 180.
9 Ibid. p. 60.
10 Ibid. p. 81.
11 GIRARD, René. Opus cit. p. 30.
12 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Opus cit. p. 72.
13 Ibid. p. 57.
14 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Opus cit. p. 83.
15 Ibid. p. 87.
16 Ibid. p. 127.
17 MARION, Jean-luc. Prolégomènes à la charité. Paris: Grasset, 2018. p. 92.
18 GIRARD, René. Opus cit. p. 82
19 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Opus cit. p. 133.
20 Ibid. p. 60.
21 MARION, Jean-Luc. Dieu sans l’Être. Paris: Presses Universitaires de France – PUF, 2010. p. 106.
22 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Opus cit. p. 62
23 Ibid. pp. 137-38.
24 Ibid. p. 180
25 Ibid. p. 181-82.