Educação sem adjetivos para uma cultura sem adjetivos

– por Hugo Langone1

Que grandes nomes da arte e da cultura tenham se ocupado de manifestações culturais que o senso comum tem por “menores” pode ser de enorme alento. Penso, em especial, no carinho que figuras como Nelson Rodrigues e Albert Camus destinaram ao futebol, o que me permite tocar este tema que parece díspar, fruto de uma experiência pessoal mais ou menos marcante — e, como todas as experiências pessoais, de grande relevância para quem a viveu e aparentemente tola a quem de fora a contempla.

A que me refiro? A um pequeno torcedor do Fluminense na década de 1990, quando equipes de expressão e tradição não costumavam deixar o pelotão de elite do esporte brasileiro. E ocorreu, para a desgraça desse pequeno torcedor que fui, que fosse o seu time a inaugurar — ao menos é assim que a mim se afigura — isso que é hoje bastante comum. Como de se esperar, no dia seguinte à tragédia, como se se tratasse de uma tragédia nova, ter de ir à escola mostrou-se um suplício, qual o de Joana sendo consumida pelas chamas, e que ali traduziu-se, no momento oportuno, na figura de um colega de classe cujo nome e sobrenome até hoje conheço, e que se aproximou do triste torcedor com um papel preenchido por um único dizer, em letras pretas, cursivas: “Segunda divisão. Segunda divisão. Segunda divisão”.

É estranho que mencione esse trauma pessoal quando deveria me pôr a tratar de educação em um evento de educação, mas aqui o motivo se revela: é tal a situação social corrente que não me admiraria se, em lugar de uma provocação futebolística, um dia após certa eleição os colegas de classe se provocassem entre si da mesma maneira, à luz de qualquer vicissitude política. Noutras palavras, em poucas palavras, não me admiraria se, escolhido um presidente, um aluno tal recebesse um bilhete de troça em que se lesse: “Jair”, “Luiz Inácio”, “Simone”, “Ciro” — o que for.

Não parece isso algo tão fora da realidade, pensem bem, tamanha é a onipresença, em todos os estratos da sociedade, da polarização ideológica. Que um menino possa sofrer mais por razões políticas do que pelo rebaixamento de sua equipe de futebol é menos um sintoma de maturidade do que de doença. E não se trata de doença propriamente sutil: está clara, evidente, mas, como podemos todos estar implicados nela, seria bastante natural que dissimulássemos os seus riscos.

Nós, porém, não temos o direito de fazê-lo. Não se quisermos assumir as exigências de uma educação digna do nome — isto é, de uma formação que contemple todo homem e toda mulher e todo o homem e toda a mulher.

Esses dois “braços” da educação não são novidade — e eu não gostaria de me deter neste segundo em especial, o de que a educação tem de contemplar todo o homem e toda a mulher. Neste fórum, achamo-nos todos particularmente convictos de que, não obstante nosso sistema de ensino e de trabalho se volte sobretudo a soluções técnicas e pragmáticas, a educação como tal deve ver cada homem e cada mulher em todos os seus âmbitos, e não somente naquela esfera do conhecimento técnico ou intelectual. Corpo e alma, intelecto e vontade — eis o que o homem é, e precisamente nestes pontos o cinzel da educação deverá lapidá-lo. Desejamos a ciência e o saber, mas também a virtude; a destreza técnica, mas também a piedade.

É bem verdade que precisamente nesta esfera da educação, neste “braço”, jaz seu principal desafio, os esforços cotidianos de pais e mães, de educadores e educadoras — das instituições de ensino e das famílias. É, por outro lado, também verdadeiro que uma distorção do primeiro “braço”, do princípio de que todo homem e toda mulher devem ser contemplados pela educação, causará danos que só em aparência podem ser ditos inofensivos.

Não se trata de um problema abstrato, mas bastante comum e que se insere na dinâmica mesma da polarização política da sociedade. Em concreto, consiste em praticar formas de educação segundo a posição de cada pai ou educador no espectro político ou cultural. Ou seja, a educação troca a profundidade e a complexidade da alma humana pela superficialidade dos jargões, das palavras de ordem, das teorias conspiratórias, do alimento de uma guerra que só pode ser qualificada de “cultural” por quem acredita que a cultura há de ser antes a aniquilação de um oposto do que uma ponte em sua direção. Como consequência, encontramos pérolas como “educação para crianças feministas” e “encontro da educação conservadora”, “fórum de ensino revolucionário” e “simpósio de pedagogia tradicional”, ou quiçá um “congresso de pedagogia popular”, bem como tantas outras expressões que mostram quão engenhosa é a imaginação humana. Essas opções podem até estar em oposição no plano das disputas sociais, mas apenas como ramos de uma árvore cuja raiz é a mesma.

Não seria isso, porém, coisa natural, própria da vivência do homem em comunidade? Ora, não tendemos a conviver com os que partilham dos mesmos valores, sobretudo quando se trata de nossos filhos e daqueles valores que nos parecem mais caros? É verdade, e portanto é preciso indagar; e é também verdade que essa não é apenas uma atitude natural, mas uma atitude natural importantíssima. Conhecemos seus benefícios em nós mesmos: fortalecemo-nos interiormente naqueles espaços em que há “iguais”. Somos melhores.

Por outro lado, quem destes que desejam proteger os valores, o apreço pelas virtudes, o rigor intelectual, o bom uso de fontes e conteúdos, diria que esses traços são benéficos apenas aos seus? Que a diligência e a ordem, a atenção e a pureza, a abnegação, uma boa bibliografia e metodologia, o que for, devem se restringir aos que os valorizam? Não queremos, se tivermos ordenado nosso coração, precisamente tudo isso para os nossos porque gostaríamos de que todos partilhássemos de cada um desses pontos? Porque é universal? Porque cabe ao homem?

Esta é, inclusive, uma excelente pedra de toque para a retidão das perspectivas e decisões educativas: porventura as adoto porque têm por trás uma visão adequada do homem em sua integridade, e por isso, em suas linhas gerais, é aplicável a todos os homens e todas as mulheres? Ou as adoto em oposição a quem talvez defenda opções contrárias? Neste último caso, não estamos preocupados com filhos e alunos, mas tão somente em utilizá-los para alguma sorte de batalha no seio da infame “guerra cultural”. A tal ponto isso parece ocorrer que, se uma facção “rival” se pusesse a defender os mesmos princípios e abordagens da sua, esta automaticamente trocaria de sinal e defenderia o que antes lhe parecera absurdo. E isso, bem sabemos, não é zelo pela educação, mas cálculo político.

Eis, portanto, este que me parece ser o grande risco dessa adjetivação da educação: estar antes a serviço da desintegração social (e do próprio indivíduo a ser educado) do que dos meninos ou das meninas; inseri-los num círculo propriamente adulto de ideologias que se voltam para ideias e desconsideram tudo quanto não seja abstrato ou combativo, inclusive… as pessoas. Ao ver que determinado congresso de educação é um “congresso de educação tradicional” ou um “simpósio de educação popular”, um “fórum de pedagogia libertária” ou um “encontro dos pais da tradição”, fico a pensar em quão mais sincero não seria dar-lhes o nome de “comício”, de “disputa de poder”.

Tenho plena ciência de que há razões didáticas para posicionamentos assim, de que os departamentos de marketing têm suas artimanhas, de que os mais bem-intencionados também devem disputar a atenção com inúmeros ruídos de fora. Sei, ademais, que muitos dos que vão falar em “educação clássica”, como neste foro, por exemplo, estão de fato alicerçados numa perspectiva que leva em consideração a pessoa e todos os seus âmbitos, como mencionamos antes; ou que um congresso de educação proposto, digamos, por algum dicastério tal da Santa Sé fará o mesmo, não obstante venha a recorrer à “educação católica” para descrever-se a si mesmo. Notem que não se trata de suspeitar de toda e qualquer qualificação; se assim fosse, eu poderia ser acusado de inúmeras injustiças, e com toda a razão. Mas que possamos identificar com facilidade exceções à regra deve nos deixar alertas quanto à ubiquidade deste fenômeno que macula de política e combatividade a educação.

Volto a mim: para um poeta, para um escritor, para um artista, essa realidade é particularmente dolorosa porque também ele, em razão da natureza do seu ofício, sabe que lhe cabe construir pontes e circular, por sensibilidade própria, entre o que o ser humano é capaz de produzir de mais elevado e de mais vil, independentemente de considerações políticas, econômicas etc. Mas, acima de tudo, sabe que condicionar a realidade a um embate político e cultural é escravizar o homem, é mutilar sua capacidade de pensar, é malbaratar a vontade, é fazer adormecer a capacidade de assombrar-se ante o que é diferente, mas também nobre. Difícil seria conceber crime maior contra a educação — e, se contra a educação, também contra a dignidade de cada um.

Naturalmente, esta ideologização é apenas mais um entre os tantos elementos que podem distorcer e já distorcem a prática educativa. Bastaria recordarmos outro um tanto banal e um tanto absorvido: a ideia de que educar se resumiria à transmissão desta ou daquela série de conteúdos valorizados por um “mercado de trabalho” abstrato, ou mesmo para uma “transformação social” estabelecida como um feixe de transformações desejadas pelos bem-pensantes. Mas a verdade está em que todos esses elementos desfrutam de um denominador comum: de um olhar que se volta para fora do homem e não para dentro dele. E essa adjetivação de que falamos, essa adjetivação, repito, na medida em que é fomentada pela oposição ideológica, e não pela contemplação da natureza da educação e seu objeto, não pode senão agravar esse quadro já desolador.

Poder-se-ia afirmar que tudo isto se resume a uma crítica contra o que seria um mero jogo de palavras; que, mesmo sem as caracterizações da educação, as diferenças entre elas existirão e se chocarão umas com as outras em razão do dinamismo da própria cultura. Em certo ponto, é verdade: em muitos casos aborrece-nos ter de dizer o óbvio, ter de convencer outras pessoas de que é preciso haver uma visão do homem que seja objetiva o bastante para fundamentar ao menos um mínimo de educação comum, ter de lidar com o relativismo em questões de grande relevância. No entanto, não seria fomentar ainda mais este mesmo relativismo resvalar no jogo de oposições ideológicas?

Mas a questão de fundo permanece a mesma: a de que, em geral, a ordem a determinar as decisões educativas se inverteu. Educa-se para que não se seja o outro, e não a partir das necessidades do educando. E isso — para encerrarmos fazendo referência ao mote deste evento — é precisamente a corrupção da liberdade, a escravização da própria alma, da própria vida: consiste em distorcer a consciência por meio de pretextos pedagógicos para que ela se submeta à ordem do dia, ao jargão preferido, ao grito de guerra dos seus.

1 Exposição apresentada à Conferência Internacional Educar para a Liberdade.