– por Leonardo T. Oliveira
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Uma hermenêutica cindida
Ele ajuda os bêbados miseráveis, mas foge da própria senhoria. Sofre de pesadelos com tortura animal, mas quer matar uma velhinha. Em sua cisão (раско́л, raskól) consigo mesmo, com os outros e com a própria terra, as contradições do jovem Raskólnikov — o protagonista de Crime e Castigo (1866), de Fiódor Dostoiévski (1821–1881) — forjam um espaço em que toda uma era pode ser pensada. Também por isso, em meio ao céu de leituras a que tem dado asas, tem sempre havido uns passarinhos manquitolas e tartamudos a extrapolarem o livro com voos e cantos mais arrebatados: uns arriscam que a culpa da ruína do jovem foi da mãe, outros, que a sua identificação com os oprimidos era mentirosa até nos sonhos; uns juram que foi o sentimento de culpa o que o denunciou em seus crimes, outros, que ele jamais se arrependeu. E alguns, claro, simplesmente não resistem em propor ajustes para que o tal crime saísse perfeito.
Mas, se as aves-balas da hermenêutica gostam sempre de voar mais livres com os clássicos, uma leitura que nunca deveria ser ignorada é aquela que o próprio protagonista oferece e, ainda mais importante: com a qual podemos produzir atrito em cheio se a confrontarmos com tudo o que ele atravessa.
O artigo “Sobre o crime”
Meses antes do tempo do enredo no romance, Raskólnikov, como estudante de direito, enviara a um jornal um artigo seu chamado “О преступлении” (O prestuplenii, “Sobre o crime”). O jornal terminou falindo e o próprio Raskólnikov só descobriu um pouco tarde demais que o texto ainda fora publicado a tempo. É claro, o artigo não é reproduzido no romance, mas a sua filosofia se faz conhecida pela sua recepção entre as personagens que o leram, especialmente com as instigações do brilhante detetive Porfíri.
E eis que, em suma: observando os grandes nomes da história, como Newton e Napoleão, e a gente medíocre pela qual se via cercado, Raskólnikov dividia a humanidade entre обыкнове́нные (obyknovénnyye, “vulgares”) e необыкнове́нные (neobyknovénnyye, “invulgares”). Ele, um jovem inteligente e autoconsciente dos seus talentos, identificava-se obviamente com a trajetória dos “invulgares”, mas, ao mesmo tempo, não passava de um pé-rapado que mal conseguia se formar na universidade enquanto assistia à ascensão oportunista e vazia dos “vulgares”.
Ora, os “invulgares” são aqueles que, em suas trajetórias, tudo sacrificam para oferecer uma “palavra nova” ao mundo, motivo pelo qual se tornam indispensáveis mesmo após morrerem. E o que separa a maioria dos homens da grandeza desses feitos não é apenas o “talento” com que precisam ter nascido, mas, principalmente, a exigência de sacrifícios, que, por natureza, tanto atemorizam os homens. Afinal, quando o assunto é a grandeza dos séculos, é esperado que, eventualmente, um homem invulgar precise se provar libertando-se das leis dos vulgares e cometendo um sacrifício, que pode envolver abrir mão não apenas dos seus interesses mais imediatos, mas até mesmo …dos interesses de outras pessoas, por que não?, que atravessem o seu caminho. E não é difícil pensar em como será “justo” esse sacrifício: para abrir as portas das suas boas e geniais ações, que servirão as gerações pelos séculos, homens invulgares têm o direito natural de se tornar como que legisladores do mundo, pagando rapidamente os sacrifícios cometidos pelos ganhos adquiridos a prazo para a humanidade.
Note-se, aliás, que, para Raskólnikov, o sacrifício de outras pessoas na trajetória dos invulgares mal é um problema moral, pois não exclui que seja mesmo lamentado como um ato infeliz. Mas é que se trata, no fim das contas, de uma questão de “proporção” bem resolvida com os bens em jogo. No fim, é esse tipo de sacrifício o “portal” da grandeza que poucos ousam atravessar, senão os que se provam (à la Cálicles, do Górgias, de Platão; à la “Übermensch”, de Nietzsche) os verdadeiros invulgares, de cujas grandezas alcançadas a história logo se torna testemunha.
A invulgaridade na prática
E Raskólnikov logo se depara com uma oportunidade de exercitar a sua teoria como “invulgar”: diante de uma velha agiota que ele vê como insignificante — pois logo morrerá e não fará falta a ninguém — e que, no mais, parece-lhe apenas repugnante — pois faz mal a tantas outras pessoas, aproveitando-se dos que precisam de dinheiro e oprimindo a própria irmã mais nova —, ele pensa em como poderia assassiná-la, tomando-lhe o dinheiro e investindo em seu próprio futuro brilhante, pelo qual poderia sustentar a mãe e a irmã (que, ele adivinha, está prestes a se desgraçar em um casamento infeliz pela ascensão, em última instância, dele próprio), além de terminar tendo eliminado uma pessoa má do mundo.
Apesar de, neste ponto, alguns leitores traírem a própria carniceirice, o ato é vil, sim, claro, e o próprio Raskólnikov não tem dúvida disso; mas, em sua teoria, faz um sentido proporcional ao bem pelo qual termina se justificando completamente.
Ao executá-lo, porém, ele falha em transpor o seu sentido completo, pois, na hora, vê-se obrigado a também assassinar uma testemunha e, em seu nervosismo, sequer consegue pegar todo o dinheiro ou usufruir do que roubou, sendo sobrepujado dia após dia pela pressão de ser pego.
Os cacos vulgares do fracasso
Enquanto Raskólnikov assiste à própria impotência de se fazer valer na trajetória dos invulgares, várias outras personagens mostram-se-lhe como espelhos para o fracasso da sua teoria. Por um lado, afora a falta de talento para dizer qualquer “palavra nova” ao mundo, Lújin também não é muito diferente em sua sanha de homem “invulgar”, mas, apesar disso, gera uma repulsa instintiva em Raskólnikov e prova mesmo não passar de um pulha; Svidrigailov dobra facilmente todos à sua vontade — física e emocionalmente —, nunca encontrando punição que o detenha, mas não consegue dobrar a vontade de uma mulher para amá-lo de verdade, mesmo quando garante que não será punido se tentar fazê-lo à força, e essa impotência, que, a princípio, deveria ser insignificante para um invulgar, termina nada menos por obliterar todo o sentido de uma vida. Por outro lado, a abnegação de Sônia, mesmo em todo o seu sofrimento, é o exato contrário do “super-homem” nietzscheano em que Raskólnikov queria se provar, mas, ao mesmo tempo, inspira-lhe uma nobreza superior a todos os homens; mais tarde, Nikolai também representará a busca deliberada no sofrimento por uma forma de santificação — entre tantas e tantas outras personagens de força e vida paradoxais.
A pedra no caminho
Nesses exemplos de seres humanos e suas trajetórias, esconde-se o conceito que “emperra” a teoria de Raskólnikov: o amor e as suas exigências mais graves, em toda a sua complexidade de aniquilação pessoal. O “homem do subsolo”, em outro famoso romance de Dostoiévski, diz que a sua ideia de amor é irremediavelmente a de “dominação” dos outros, o que, depois de conseguida, logo se transforma em ódio e prontamente o condena à incapacidade de amar. Em sua trajetória de tentar ser um “super-homem”, Raskólnikov também parece oscilar confusamente entre o amor e o ódio, tanto para com aliados (sua mãe, sua irmã e seu leal amigo Razumíkhin) como com inimigos (Porfíri e o estranho fascínio por Svidrigailov, apesar do que fez e tentaria fazer com sua irmã), guardando, talvez por isso, uma especial e efêmera empatia apenas pelos oprimidos com que se depara — e sim, o sonho com o cavalinho torturado ou a genuflexão diante de Sônia mostram isso enraizado de maneira sincera. Ou seja, como todo homem, Raskólnikov também mostra o anseio por amar e ser amado, mas isto se dá como conflito dentro dele: quando decide que odeia a todos e se isola, ainda assim se sente acompanhado; quando volta ao convívio das pessoas, despreza a todos; às vezes trata a mãe com carinho, mas logo depois parece se sentir humilhado etc. De modo estranhamente “vulgar” para ele, o amor, portanto (quem diria!), mostra-se mais difícil de ser superado do que ele gostaria em sua invulgaridade.
Amor de Caridade (gr. ἀγάπη, agápē; lat. Caritas)
Dividido entre uma necessidade inescapável de outros seres humanos e um desejo de glória independente, Raskólnikov assiste impotente aos próprios afãs até o final do período de impunidade, quando abandona Sônia antes de ir se entregar à polícia e se dá conta de que a procurara apenas pela necessidade de outro ser humano, em profundo contraste com os seus delírios de independência.
E o que estava escondido nos exemplos desfilados de outros seres humanos para Raskólnikov nessa primeira trajetória do livro — sobretudo no caminho da fé para Sônia suportar (e sublimar) o sofrimento e no interesse de Nikolai em abraçá-lo — é que a verdadeira resposta a esse seu afã de triunfo — que, no fundo, é um afã de vida — está no amor que se dá através da aceitação da “cruz” por algo ou alguém ao invés de apenas por si mesmo. Ao fim do período como foragido, Raskólnikov desiste de se matar, considera mais nobre enfrentar o fracasso em não ter dado cabo da sua teoria, mas ainda assim considera que faltou apenas ser bem sucedido no assassinato, em transpor por completo o “portal” da grandeza — ou seja, ainda não se arrepende do que fez.
Depois que Raskólnikov é preso, inicia-se uma nova e breve trajetória no epílogo do livro. A sua consciência chega a resistir e a ficar ainda mais empedernida: ele considera que não se suicidou apenas por medo da morte e, voltando-se novamente para a sua teoria, que a ideia do seu “crime” não é sequer mais absurda do que tantas outras, mas que apenas não deu conta de completar o que planejou.
Nisto, o narrador já se adianta em explicar que, neste ponto, Raskólnikov ainda não enxergava que não se suicidara porque, na verdade, já pressentia que as suas convicções eram simplesmente falsas. E é isso o que a prisão o obriga a enxergar: ainda afundado nessas convicções, ele vê que elas não lhe conferem qualquer sentido e que ele já ia imitando o seu mesmo fracasso social do mundo externo, agora entre os presos, com quem não se conecta. Enquanto isso, Sônia continua se mostrando o exato oposto: as suas convicções são vida e lhe conferem a força que ele não tem, o que todos à sua volta percebem facilmente.
A “teoria” da cruz
Abreviadamente, como se Dostoiévski sinalizasse uma nova história que não teria mais espaço para contar, uma transformação é enfim narrada a tempo ao fim do livro. Com a experiência do cárcere, Raskólnikov enxerga aquilo que lhe falta em relação a Sônia. Ela tem as suas mesmas misérias, inclusive a de uma transgressão moral (com a prostituição pregressa), mas não as vive por si mesma, e sim pelos outros e pela sua fé. Em um momento em que Raskólnikov mais teme perder essa presença viva, pela qual se vê talvez mais ansioso do que nunca naquele ambiente em que já atrofiara totalmente a si mesmo, ele aprende a amar Sônia quando aprende a receber o seu amor. A partir de então é que se torna capaz de vislumbrar, mesmo que neofitamente, a respectiva “teoria” dela: a da contradição da cruz cristã, que ainda terá que descobrir no labor diário dos anos da sua pena como um Jacó a desposar Raquel.