Coro de uma só voz – #Resenha de “O Jumento e o Carcará”(Danúbio, 2024), por Dmítri Ramus

– por Dmítri Ramus

Editado este ano pela Editora Danúbio, “O Jumento e o Carcará” é o volume de estreia de Samuel Freitas. São dez contos que, a orelha do livro diz, transitam por diversos gêneros: a fábula, o conto filosófico, o conto religioso, a alegoria, a literatura fantástica, etc. 

Trata-se de mais um exemplar da editora que funciona como um navio quebra-gelo, publicando autores contemporâneos, muitos deles estreantes. Entre eles está Samuel, pernambucano de Tupanatinga, pequena cidade a sudoeste de Arcoverde, no chamado portão do sertão de Pernambuco. 

O livro, de pouco mais de cem páginas, apresenta problemas notáveis. O primeiro deles é a voz do narrador que, articulada sempre da mesma maneira, força a conclusão de que é, na verdade, apenas a voz do autor.

É certo que o autor possa ter sua marca; não há exigência de que se module o tom em todo conto, como Joyce conseguiu a ponto de confundir a ciência da estilometria (que atribuiu trechos diferentes do mesmo livro a autores distintos); mas se o tom escolhido tem seus exageros, acaba por afogar os potenciais do texto.

Do primeiro conto (que dá título ao livro) até o “Meu Funeral” todo narrador é cheio de vocabulário. Não chega a ser empolado, mas é firmemente pernóstico. A ironia seria uma atenuante, mas está presente em tantos momentos do texto que sugere estarmos testemunhando o esforço de causar impressão de sagacidade.

Vamos lá. Temos uma fábula de um jumento e um carcará, temos também um fumante que lembra da infância, um cara que empina pipa pela liberdade, uma criança que encontra uma aparição durante a noite, um rapaz que lava pratos. Todos contos narrados com o potenciômetro da espirituosidade “paraparnasiana” no talo. O efeito no leitor acaba por ser o mesmo: se perguntar sobre o que é o conto, se não sobre o “narrador” (no caso sobre o autor); e como ele usa “estoicamente”, faz referências à cultura grega, usa comentários batidos sobre terra molhada e a igualdade da morte em mais de uma ocasião, em contos supostamente de “diversos gêneros”.

O conto “Uma Pipa” tem algum potencial dramático. Ocultado, entretanto, pelo tom, acaba se somando aos demais. As estórias não são sobre nada em particular (talvez falte profundidade aos conflitos). Ou são sobre um particular efêmero que se busca amplificar por meio da intensidade do discurso. Há muito “tell” e pouco “show” e eu nem gosto dessa regra de escrita, mas acredito que faria bem ao livro guardar a retórica para os pontos principais da narrativa, que no geral é pobre de acontecimentos.

Outro ponto, entendo ligado aos anteriores, é o modo de encerramento das narrativas, que é muito similar. São quase como o “moral da história” utilizado em algumas fábulas. Eu diria serem todos desnecessários se alguns dos contos não chegassem a ocultar seu objeto central de tanto que o mencionado tom assume o primeiro plano.

O conto “Filho de Timeu” acaba diferente. Mas nele o problema da voz extrapola o narrador e invade os personagens que inclusive não se diferenciam entre si, têm a mesma voz. A isso se soma a inadequação do modo como um mendigo cego fala e também o outro personagem que o importuna como um McGuffin.

“A mundiça que falava “Mi” (Nova Liliput)” e “Quartinho” talvez sejam os melhores contos. O primeiro, pela paródia e tema, não conflita com o tom do narrador. O segundo chega a contar uma história. Quando chegamos a “Melindrez de aprendiz” já podemos pensá-lo como um mea culpa para todo o volume. Poderia ser um atestado de que o escritor não se leva tão a sério. Mas soa como um escritor que além de encantado com a arte que o deslumbra, se encanta consigo mesmo.

Em suma: quase todos os contos possuem um diálogo ping e pong em que não se distinguem os interlocutores, mas que se perdem em digressões ligeiras, compensando o tartamudear com vocabulário.

Por fim, título e capa sugerem uma unidade nordestina e sertaneja que não existe no livro. A unidade é dispensável, mas a sugestão do primeiro conto acaba sendo uma falsa promessa. A capa, assim, não faz sentido. 

Tenho esperança que o autor, que domina inquestionavelmente o idioma, submeta sua prosa a uma inversão e passe a servir a narração e não a se servir dela para mostrar tudo que sabe. É óbvio que o escritor vai ter suas preferências e suas obsessões emergirão em tudo que ele redija. O primeiro passo é ter consciência dessa recorrência, o segundo utilizá-la a partir da necessidade do texto. Quando o conto não as pede, calar-se aumenta a expressividade, por afastar o cheirinho da auto-referência.