Em um país literariamente saudável, a mera menção ao fato “Feérico Luar No Copacabana Palace é o novo livro do escritor Alexandre Soares Silva” seria um evento por si só. “Alexandre publicou um novo livro!’ seria a manchete do principal jornal. Milhões de resenhas, pessoas comentando nas ruas sobre o lançamento e revistas culturais das mais diversas discutindo o livro. Não é o caso do Brasil, pelo menos com livros bons de verdade. E Feérico Luar No Copacabana Palace é, de fato, um livro bom de verdade.
Não é surpresa para quem lê os textos e os outros livros do autor. O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos, lançado em 2020, certamente é um dos melhores e mais inventivos livros de contos já publicados no Brasil. Totolino, lançado em 2022, é um romance-surrealista-cômico-pós-moderno que não deixa a desejar em relação aos melhores escritores nonsenses da literatura nacional e estrangeira. E a Trilogia de Quaresmeiras Roxas (A Coisa Não-Deus, Morte e Vida Celestina e A Alma da Festa, todos lançados nos anos 2000) já havia demonstrado, em ato e em potência, as qualidades artísticas de Alexandre.
A diferença é que Feérico Luar No Copacabana Palace, por uma questão cronológica, é o livro mais completo e mais bem acabado do autor. Não existem cenas desnecessárias, personagens ruins e frases desconjuntadas. Na realidade, isso também ou existe pouco ou não existe nos outros livros que citei — mas no caso do Feérico, que é o maior de todos, fica ainda mais evidente: há um controle total e natural de cada linha, de cada piada e de cada personagem que surge na história.
Por falar em personagens, falemos do logo narrador do livro. Lilico de Gama Bensaúde é um dândi brasileiro, um playboy extraordinariamente rico, um pouco bobão, um pouco sagaz e um dos primeiros moradores do ainda não inaugurado Copacabana Palace. Não inaugurado porque a história narrada se passa em 1922, um ano antes da inauguração oficial.
O nome do narrador, de certa forma, adianta o tipo de trama e o tipo de romance que temos em mãos — absolutamente todas as facetas do livro remetem ao falso, ao exagero, ao estereótipo e, exatamente por isso, ao cômico. Além do nome excêntrico e de algumas divagações, somos apresentados ao motor da história logo no início: Lilico quer entrar para um club de mulherengos — o Femeeiros Club. Para isso, precisará provar que conseguiu seduzir uma mulher importante. Por ser abobado e ingênuo, Lilico pede ajuda ao primo galanteador Laurindo, o Lalau, e, mais para frente, ao amigo meio futurista meio modernista meio médico meio teatrólogo Patápio Cruls, um personagem caricato que participa de algumas das melhores piadas do livro.
Para não me estender e não cair em terrenos que possam estragar a experiência do leitor, adianto que não é apenas isso. Em certo momento da história aparece um ladrão famoso de técnicas não-violentas e chics, o Lobo Guará, uma atriz famosa de cinema americano, dois poetas brasileiros pra lá de conhecidos, uma reencarnação do Machado de Assis, um livro de poesias fakes e brigas verbais violentíssimas, onde termos como papalvo e papai bolsinhos deixam o clima muito pesado! Vejam só como é agressivo e moralista o nosso personagem narrador Lilico, num parágrafo que, penso eu, resumo bem todo o clima do livro:
“Não sou, por natureza, rancoroso ou ressentido. É preciso uma certa fixidez mental pra essas coisas, e é muito raro que eu pense no mesmo assunto por mais que cinco minutos; e desse modo a dispersão me torna pacífico.”
É curioso notar como esse ar ingênuo do narrador Lilico e da própria história são características que, sozinhas, depõe a favor do livro. Não há, em nenhuma linha da obra, qualquer tentativa de nos transmitir uma ideia profunda, uma moral e um ressentimento. Diferente de quase todos os livros populares no Brasil, não há aqui uma mão gigante do tamanho de nossas culpas saindo das páginas, apontando o dedo em nossas caras e dizendo “sinta-se culpado, homem malvado”. Ao contrário, é repleto de comparações imprevisíveis, de diálogos muito bem escritos e de uma leveza surrealíssima. O motivo do livro existir é um só: nos divertir mostrando um Brasil imaginado por uma mente criativa e povoado de personagens engraçados. Parafraseando C. S. Lewis acerca da obra do amigo J. R. R. Tolkien, Feérico Luar No Copacabana Palace é uma flautinha de êmbolo tocada no meio de uma reunião de sindicalistas.
Não posso deixar de mencionar um fato importante: esta é a obra de Alexandre mais inspirada no estilo e no ritmo do escritor britânico P. G. Wodehouse, um ser praticamente desconhecido no Brasill mas um dos grandes titãs da literatura anglófona. Há reflexos wodehouseanos ao longo do livro todo: nas tramas engalfinhadas, nos personagens caricatos, no uso de certos termos desconhecidos e nas cenas escabrosas: em tudo podemos ouvir ecos de Wodehouse. Isso está longe de ser algo criticável. Temos, pela primeira vez na história das letras brasileiras, não Wodehouse em português, traduzido, mas um Wodehouse nascido no Brasil, com número de CPF, DDD paulistano, voz própria e que talvez tenha ouvido numa fila qualquer alguém dizer que conhece alguém que muito possivelmente aplicou uns golpes no INSS ou coisa que o valha.
Alexandre Soares Silva prova-se escritor mais uma vez sem precisar da máquina dos grandes grupos editoriais, dos prêmios literários duvidosos e dos grupos políticos ideologicamente comprometidos. Alexandre prova-se escritor pelo estilo, pelas frases bem pensadas, pelo bom humor criativo e pela obra que escreveu e segue escrevendo.
Não é escritor porque assim quis a mídia e os ungidos. É escritor porque assim quis a literatura e a língua portuguesa.