Antinotícia – conto de Matheus Araújo

Ploc, ploc, ploc, o barulho vinha do quarto. Não adiantava gritar, sempre de fone, ele nunca escutava.

— Wilson, chama o seu irmão! — gritava a mãe lá embaixo — O almoço está pronto.

Foi chegando perto e o som aumentava, ploc, mais perto, encostou o ouvido na porta, ploc ploc, deu duas batidinhas.

— Léo?

Nenhuma resposta. Girou a maçaneta. Na tela do computador, um desenho japonês de duas mulheres nuas; em cima da escrivaninha, condicionador e um rolo de papel higiênico. O irmão se encolheu, cobrindo-se com uma toalhinha e fechando a aba do computador com a mão que sobrava.

— O que é, porra?

— Nossa mãe está chamando pra almoçar. Pára com isso e desce lá.

— Sai daqui, pirralho. Avisa ela que tô chegando.

Léo desceu, pegou o prato de comida e voltou para o quarto, como sempre fez.

Wilson costumava ter uma boa relação com seu irmão mais velho. Cresceram juntos, só tinham parentesco por parte de mãe, mas o pai de Wilson criou Léo como filho de sangue. Na infância jogavam videogame, futebol de botão, pebolim, RPG de mesa, assistiam anime e viam os antigos tokusatsu. Aonde um ia, o outro tinha que estar.

Lembrou-se de um momento em que, na espreita, o irmão lhe falou baixinho:

— Presta atenção: não pode falar pra ninguém. Se a mãe achar, não fui eu que te dei.

Léo estirou a mão e ofereceu a Wilson um papel dobrado. Ele foi abrindo e os olhos arregalaram-se. A primeira mulher nua que viu: uma página solta da Playboy. Guardava embaixo do travesseiro. Devia ter uns dez.

Léo era quatro anos mais velho. Quando entrou na adolescência, esqueceu-se do irmão: passava o dia dentro do quarto, não interagia com ninguém. Vez ou outra saía fantasiado de algum personagem, dizia que namorava uma menina do Pará e começara a trabalhar na internet. Engordou, as espinhas surgiram e pelinhos ralos se acumulavam na papada.

Quando entrou na faculdade de Tecnologia da Computação não era mais visto em casa.

— Onde está o Léo? — perguntava o pai, na mesa de jantar.

— Na faculdade, esqueceu? — a mãe sempre respondia.

— Não o vejo de manhã, nem à tarde, nem à noite. Ainda mora na minha casa?

Tornou-se estranho, calado, não cortava o cabelo e, pelo cheiro, não tomava muitos banhos. De quando em quando amigos esquisitos apareciam na porta de casa perguntando por ele.

— Não sei se ele está. Liga pra ele aí — respondia o irmão.

Ficavam com raiva, mas era verdade. Léo virou um fantasma, um vulto. O pai queria ajudá-lo. Não sabia como.

— Deixe ele, — dizia a mãe — é uma fase. Super normal. Logo passa.

Não passou. Veio a pandemia, o pai morreu. Léo ficou ainda mais esquisito. Como não se falavam, Wilson tentava descobrir o que ele fazia. Certa vez, brechava o irmão pela porta. O quarto todo apagado, somente a luz vermelha de um ringlight direto no rosto gordo do rapaz, coberto por uma máscara de médico medieval. Ele gritava contra uma câmera, vamos pegar esses filhos da puta!, globalistas do caralho, eles verão o que é bom, a primavera está chegando, aguardem! Enquanto isso, mensagens pipocavam no chat e era possível ouvir a cada minuto um barulhinho de moeda caindo.

Em outro momento, entrou no quarto do irmão escondido (enquanto ele ia ao banheiro) e achou um gládio, uma roupa de Templário e a bandeira do Brasil Império na parede. Da última vez em que entreouviu conversas dele, captou poucas palavras, o papo não era atropelado, em baixo tom, mas tenso, e ouviu bomba, invasão, sacrifício, prisão.

A mãe, Dona Júlia, desligou-se do mundo — passou a precisar de ajuda em tudo e Wilson assumiu os cuidados da casa, dava os remédios para a depressão, aguava as plantas do jardim, pagava a empregada, levantava a autoestima durante aqueles vários meses trancados. Neste meio tempo, a mãe encontrou o seu único consolo; passando dia e noite na frente da televisão, assistia do primeiro ao último programa, dormia no sofá e ao acordar logo cumprimentava os âncoras, beijava a tela quando aparecia um ator bonito e passou a ver o mundo pelo antinoticiário. Não gostava de ser interrompida — o horário da TV era sagrado. Assim, foi-se esquecendo do que tanto a atormentava.

Nas últimas semanas, a mãe e o irmão começaram a brigar. Todo dia, na hora do almoço, antes de levar o prato ao quarto, Léo dizia:

— De novo assistindo isso, mãe?

— Que é que tem?

— São todos uns mentirosos filhos da puta.

— Me deixa e vai comer, vai.

Na internet Léo falava grosso, xingava, ameaçava. Pessoalmente, andava devagar, era desengonçado, tinha ficado tão gordo que criara tetinhas. Cansado, sem forças, parecia um hipopótamo compacto. Tentava discutir com a mãe, mas desistia logo no primeiro fora, abaixava a cabeça e voltava com o prato na mão, o rosto vermelho de raiva.

Um dia, foi diferente.

— Mãe, tenho que falar com você.

Ontem, às 20h, não ocorreu um sequestro de ônibus na Asa Sul. Dois homens armados não entraram na linha, não renderam o motorista e não pediram resgate. Os dois assaltantes e mais três passageiros não foram mortos em tiroteio.

— Mãe, você precisa parar de ver esse tipo de coisa.

O Presidente da República não acaba de assinar uma lei extinguindo as fronteiras amazônicas. O tratado não foi acordado no último domingo em uma cúpula do G-20.

— Isso está fazendo mal para a senhora. O tempo inteiro com as telas ligadas, absorvendo esse tipo de coisa. Me preocupo com você.

Os cientistas não descobriram uma nova doença que se alastra pela Europa. Não é verdade que ela chegará aqui até o mês que vem, no Carnaval.

— Precisamos conversar.

Não ocorreu hoje pela manhã um protesto em frente ao Palácio do Planalto…

— Mãe!

— O que é, menino? — gritou Dona Júlia — Não gosto que atrapalhem meu antinoticiário. Diga logo!

— Eu preciso conversar seriamente com a senhora. Por favor, me escute. Wilson, pode me ajudar?

Wilson lavava as louças do jantar enquanto escutava um podcast — tirou um dos fones de ouvido e olhou para a sala. Léo sentou-se na poltrona, enquanto a mãe, no sofá, bordava alguma coisa e acompanhava o antinoticíario da noite.

— Parem de brigar, por favor. E não me metam nisso.

Prisões não foram realizadas ao redor de todo o país. É falso que pessoas inocentes estariam sendo presas sem defesa nem acusação formal.

— Ela fica assistindo isso o dia inteiro! Eu só preciso conversar dois segundos com ela.

Também não é verdadeira a informação de que não existe risco de contaminação nas ruas. Recomendamos sempre o uso de máscaras…

— Chega! — Léo levantou-se num repente, puxou o controle remoto e desligou a TV — Eu preciso falar com você!

— Moleque atrevido, insuportável — a mãe rosnava. Sua voz, já gasta pelo cigarro e pela idade, ficou trêmula de raiva. Rapidamente apanhou o celular ao seu lado, mas logo seu filho também o tomou — Diga de uma vez.

Wilson observou o irmão atentamente. Não tinha o mesmo olhar de antes — semblante preocupado, expressão tensa, testa enrugada. Suava, o que era normal, mas estava nervoso. A mãe, por sua vez, tinha uma feição vazia. Mesmo ao olhar para Léo parecia distraída, como se os pensamentos estivessem em outro lugar.

— O que eu quero falar com a senhora é o seguinte: amanhã de manhã vai ocorrer algo bem grande. Esteja preparada, não quero que se assuste — disse Léo, segurando as mãos da mãe, apreensivo.

— Vira essa boca de praga pra lá.

— É sério: talvez eu não volte para casa. Caso isso aconteça, atrás da minha estante estão as minhas senhas do banco e embaixo do meu colchão tem uma quantia legal em dinheiro.

— O que você vai aprontar, garoto?

— Se eu te contar, você pode correr perigo. Eles podem estar nos ouvindo.

— Eles quem? Lá vem você com paranóia!

— Estamos sendo vigiados, mãe. Nos escutam por toda parte: TV, celular, computador…

— Fake news! Já vi no antinoticiário que isso é teoria da conspiração.

Léo se levantou, enxugando o suor da testa e ajeitando os cabelos. Andou para um lado e para o outro. Wilson, da cozinha, somente observava.

— Você precisa parar de ver esse tipo de coisa. Está te prejudicando, só você não percebeu. Não se lembra como era antes?

— Claro que me lembro, era terrível! Muita bagunça, notícia falsa, guerra de narrativas. O antinoticiário é bem melhor.

— Eu não vou mais discutir com você — deu-lhe um beijo na testa — Te amo. Fica com Deus.

Léo, na ponta da escada, chamou o irmão. Wilson achou esquisito: há muitos anos o seu irmão não lhe convidava para nada. Nunca tomava a iniciativa de lhe dirigir a palavra. Provavelmente ele iria se explicar, porém Wilson não queria entender o lado certo ou errado da discussão. Não sabia nada sobre a época em que ainda transmitiam notícias: sua mãe dizia que era terrível, seu irmão elogiava. Preferia ficar sem saber. Odiava política e tinha coisas mais importantes para se preocupar na vida.

Mesmo assim, seguiu Léo pelas escadas.

O irmão o levou pelo corredor até o quarto. Ao abrir a porta, subiu um cheiro de meia usada. Pelo chão, papéis amassados, roupas jogadas, caixas de pizza, uma ou outra sacola de delivery. Nas paredes, a bandeira do Brasil Império; um quadro antigo de um homem branco, queixo fino, cabelo curto de topete — devia ser inglês; a imagem de uma cobra enrolada num fundo amarelo; porretes, tacos de beisebol, máscaras de gás e uma maquete da terra plana.

Léo escalou um banquinho e pegou a mochila em cima do guarda-roupa. De dentro tirou uma pequena caixa de metal cor de ferrugem:

— Põe teu celular aí.

— Oi?

— É uma gaiola de Faraday. Relaxa, é só uma caixa revestida de chumbo e cobre. Põe teu celular. Ninguém pode escutar o que vou te dizer.

Wilson encolheu os olhos e observou o irmão com o rosto inclinado, achando esquisito, mas tirou o celular do bolso e fez o que foi pedido. Léo trancou a caixa e tirou de dentro da mochila dois chapéus pontudos de alumínio, veste esse, Wilson vestiu, cismando ainda mais. Viu, logo depois, ele desligar a luz, pegar uma lâmpada quadrada e trocá-la pela que estava no quarto: o cômodo inteiro foi preenchido por vários feixes de luz vermelha que atravessavam retilíneos de uma parede a outra.

— Ótimo. Assim eles não nos vêem, não nos ouvem e nem lêem nossos pensamentos.

— Léo, você está bem? — ele derretia, a mão gelada, a respiração ofegante.

— Mais ou menos, mais ou menos — respondeu bufando — Preciso que me escute e faça o que eu estou dizendo, ok? Vou sair de casa esta noite e não sei se eu volto. Caso vocês tenham qualquer notícia de mim, não venham ao meu encontro nem tentem me ajudar, ouviu?

— Por que isso? Não estou entendendo.

— Não posso te contar. Se a polícia vier atrás de você, diga a verdade: você não sabia de nada, não estava envolvido e quer ajudar em toda e qualquer investigação — Léo começou a roer as unhas, nervoso, até que escutou duas buzinadas. Olhou pela brecha da persiana e voltou-se para o irmão, segurando-o pelos ombros — Seja firme, ajude nossa mãe. Estou indo.

Deram um abraço desajeitado e ele partiu. Wilson voltou para o seu quarto ainda pensando no que o irmão havia dito. Com quem ele estava metido? Por que ele faria algo tão grave? Onde? Contra quem? Não quis pensar muito. Tinha prova da faculdade naquela semana e precisava estudar. Acima de tudo, queria ver, antes de dormir, as streamers que tiravam a roupa e jogavam algum FPS. A verdade é que deixou de ter uma ligação forte com o irmão ainda na infância. Não gostava da forma que tratava a mãe, da desobediência, das suas amizades e do seu jeito. Tentou não pensar no que ele disse, porém, mesmo quando a moça vencia uma partida e arrancava o sutiã, a lembrança retornava, feito um zumbido permanente. Deitou-se, contudo, ligou um ASMR no telefone e adormeceu.

Quando acordou já era meio-dia. Ficou mexendo no celular por pelo menos uma hora, até que sentiu fome, foi ao banheiro, escovou os dentes, organizou o cabelo com a mão e saiu. Primeiro, abriu a porta do quarto do Léo. Igualzinho ao dia anterior. Descendo as escadas devagar, já podia ouvir o antinoticiário.

Hoje, aproximadamente às 10h15 da manhã, a Câmara dos Deputados não sofreu um atentado a bomba. É falsa a informação de que 17 deputados da base do governo tenham sido mortos e outros 35 pessoas tenham sofrido ferimentos graves.

Pela primeira vez na vida, Wilson observou atentamente o antinoticiário. O estúdio era claro, com cores vivas, um azul forte e um tom branco que davam sensação de limpeza, confiança e seriedade. O âncora, sempre bem-vestido, terno impecável, cabelo grisalho e escovado, sabia sorrir nos momentos certos e alterar o tom de voz quando necessário. Seu timbre encantava. Entre suas expressões, porém, Wilson pôde notar um toque de cinismo, uma falsidade que escapava como a barata pelo ralo do banheiro. Mas não podia ficar pensando nisso, ficaria que nem o seu irmão.

— Bom dia, mãe — ele disse e foi direto para a cozinha botar cereal na tigela e tomá-lo com leite.

— Bom dia, filho — Dona Júlia, no mesmo lugar de sempre, não tirava os olhos do bordado e ouvia a TV em alto volume.

As falsas informações falam de um grupo terrorista que entrou na Câmara dos Deputados com ajuda de parlamentares, infiltraram-se na votação acerca da PEC 9057, plantaram duas bombas embaixo das cadeiras da bancada do governo e saíram de lá momentos antes da explosão — Wilson voltou a observar com atenção o antinoticiário até perceber que havia colocado muito leite e pouco cereal — Vídeos que circulam na internet, que mostrariam o momento da explosão, já foram analisados pelas agências de checagem e considerados Fake News.

Por que eles nunca mostravam o que realmente ocorria? Não seria mais fácil? Não seria mais útil? Exibiam fotos e vídeos sempre alegando montagens e manipulações, porém não apresentavam a prova contrária. Qual era o motivo?

Sua mente fervia. Com os olhos grudados na TV, percebeu que tinha errado na proporção de novo, agora pouco leite e muito cereal, e as teias do seu pensamento se formavam e se uniam incessantemente. Pela primeira vez em seus vinte e um anos começou a cogitar se existia algo por trás de tudo aquilo: um interesse político, financeiro, moral? Não entendia — e talvez seu irmão soubesse lhe explicar. Mas agora não sabia quando iria vê-lo.

Também é falso que um dos organizadores, Leonardo de Melo Silva, 23 anos, teria sido assassinado por um agente da Polícia Legislativa.

Wilson deixou cair no chão a tigela, que se quebrou espalhando leite e cereal pela cozinha. Dona Júlia levantou brevemente o olhar e começou a prestar atenção. Na tela, uma imagem borrada de Léo, jogado no chão de braços abertos, com um furo na cabeça, de onde escorria sangue.

Este rapaz, que teoricamente seria morador aqui de Brasília, nem mesmo existe: esta foto que veicula em grupos de auxiliares dos terroristas extremistas foi montada em estúdio, como atesta nossa plataforma Fato em Cheque.

— Mãe! — Wilson foi até o lado dela e apontou para a TV — Você viu? Você viu? Era o Léo!

Dona Júlia encarou-o com curiosidade, concentrou nele o seu olhar por um tempo e com a expressão fechada de quem se esforçava para puxar, da memória, o fio de uma lembrança, perguntou:

— Que Léo?

— Léo. Meu irmão. Seu filho. Estava conosco ontem. Conversou com a senhora aqui, ele disse o que iria acontecer!

Ela olhava para um lado, para o outro e em um certo momento fechou os olhos, parecia buscar dentro de si o significado daquele nome. Wilson, impaciente, batia os pés, sentia o sangue quente, esperava uma resposta. Então, a pauta mudou. O antinoticiário começou a falar de esportes.

Dona Júlia balançou a cabeça, como se espantasse da mente um sonho ruim, e voltou ao bordado.

Leia este e outros contos de Matheus Araújo no seu primeiro livro lançado: “Nunca Mais Será Domingo”, Danúbio, 2024.