O cândido Medeiros

– por Gabriel Coelho

É impossível deter-se na Central do Brasil um segundo sequer sem que um mendicante brote de súbito ao seu lado rogando por esmola. E quanto mais tempo se fica ali plantado, mais eles se sucedem à passagem dos minutos, uns pedindo trocado para matar a fome; outros, que se lhe compre uma caixa de doces para revender; outros ainda a pedir que ajude a inteirar a passagem de volta pra casa. Tamanha é a quantidade de pedintes que se faz inevitável recusar-lhes ajuda em certo ponto, sob risco de, ajudando-os a todos, acabar por vir a aumentar-lhes o número juntando-se a eles à cata de esmolas.

Sabendo disto tudo, Medeiros não pôde porém evitar de encostar numa barraca ali dentro para fazer um lanche. O dia até ali fora fatigante e a viagem pra casa duraria mais de hora. Aguentar a fome por mais tempo seria tortuoso – tinha que forrar o estômago.

E não é que, quase sem surpresa, tão logo Medeiros sentiu do lanche o gosto da primeira mordida, assomou-se-lhe ao lado um maltrapilho a rogar esmola, por favor? Só que o interpelado havia usado os últimos trocados para salvar-se da própria fome. A fome do outro chegou tarde: já não restava nada na carteira.

Insatisfeito com a negativa, o pedinte apelou ao seu drama de vida: não comia desde o almoço do dia anterior, que nem fora lá uma refeição, pois as marmitas que distribuem à noite pelo Centro, não as vieram distribuir da última vez; e o que juntou de esmolas até agora não soma mais que alguns reais e pouco, mal dava para um salgado, que já havia tentado adquirir à base de negociação, mas cuja proposta era recusada repetidamente pelos vendedores, que mal o deixavam completar a fala. Se as coisas seguissem assim, só lhe restaria ficar prostrado, sem forças nem para estender a mão e sussurrar por esmolas. Definharia.

Apesar de desconfortado com a proximidade do sujeito, que além de fedido e sujo, não parava de falar, Medeiros não pôde evitar de se comover com a situação daquele que, ao fim das contas, era um seu semelhante. Disse então que resolveria, que o pedinte o acompanhasse dali a fora, até o banco atravessando a rua. Ia sacar dinheiro.

Engoliu o lanche sem nem sentir-lhe o gosto, isto para compensar o tempo que o imprevisto tomaria, e embalou na contra-mão do fluxo, tendo o mendigo ao seu encalço, ambos esbarrando ombro na gente que vinha em direção aos trens, a caminho de casa.

Vencida a correnteza da multidão, atravessada a rua lateral à estação (não a principal – Presidente Vargas), alcançaram a agência de defronte, onde o mendigo, mostrando-se consciente, deixou-se voluntariamente esperar do lado de fora, enquanto Medeiros adentrava sozinho para tirar quantia que socorresse aquela alma necessitada.

Mas quando chegou num caixa eletrônico, Medeiros soltou um grito mudo ao constatar “Só nota de cinqüenta!?”. Pulou pro caixa ao lado, e pro outro, e pro outro, mas as opções intercalavam entre a quantia repetida e a impossibilidade de saque por falta de nota.

Resignou-se Medeiros: teria que ser aquilo mesmo – andar em busca de outra agência ou tentar que lhe trocassem a nota atrasaria mais ainda sua vida.

Sacou os cinqüenta reais, entorpecido.

Quando, de volta à calçada, estendeu ao outro a quantia sacada, este foi acometido por sincero regozijo. Já nem lembrava da última vez em que vira aquela nota, tampouco de quando por último viera-lhe a tocar. Pegou com grande alegria a quantia ofertada e agradeceu a Medeiros rogando que a ele abençoassem Pai, Filho e Santo Espírito.

Dali, ambos reatravessaram a rua (lateral, não a principal) e dispersaram-se em direção rumo à estação defronte da agência de defronte. Medeiros adentrou a correnteza, dessa vez acompanhando o sentido em direção aos trens. Quando alcançou a bilheteria, atinou enfim com um inconveniente: não tinha mais dinheiro na carteira! Usara para aquele lanche que engolira às pressas. Teria de novo que sair para sacar. E, pra piorar, a agência mais próxima só tinha nota alta, dificultaria o troco. Além de sair de novo, teria que andar mais, em busca de outra agência que emitisse notas menores. E, além do além, teria a fome, que aumentaria, e o tempo, que mais perderia. Quando aquele dia enfim terminaria?

Aceitou Medeiros o próprio destino e retomou o caminho contra a multidão, lutando contra o fluxo de pessoas entre as quais abria passagem, batendo ombros. Dirigiu-se dessa vez a uma outra saída, que dava para a rua principal – Presidente Vargas.

Quando enfim venceu a multidão e alcançou o portal do prédio da Central do Brasil, Medeiros estacou nos poucos degraus que davam para fora. Ali à frente, a luz alaranjada do sol poente incidia por toda a extensão da calçada, por sobre os pedestres que vinham ainda esparsos, sem se aglomerarem como lá dentro. Estacou ali quando deu com uma figura familiar, escura e maltrapilha, sentada à sombra, de lado, no banco dum quiosque, as pernas cruzadas, o cotovelo apoiado na bancada, sustentando o punho sobre o qual repousava um lado da face. O corpo estava voltado para Medeiros mas a atenção era toda centrada no grupo com o qual ria leve e falava solto, dividindo a cerveja que, a julgar pela brancura da garrafa, devia estar trincando. O malandro lhe passara a perna. A fome que tinha era de algazarra; e se mais tarde houvesse de quedar prostrado, seria por embriaguez.

E Medeiros, que, por mais que meio a contragosto, não deixou de ajudar o mentiroso, agora se encontrava ali, cansado e esfomeado. E sem a grana, a breja, a sombra e a honra.