Lamentou a ausência do neto como se um período muito importante da sua vida já não existisse.
Levantou-se da cadeira e, apoiando-se no sofá, olhou para o chão, mergulhando em pensamentos sombrios. Tirou as sapatilhas, deixou-as sobre o tapete e foi para a varanda a fim de ver o mar.
As balsas conduziam fogos de artifício para a noite de ano-novo. O dia estava nublado, e a orla da praia, vazia. Vez ou outra ouvia-se, distante, o barulho dos fogos, que chegava até ele num som abafado, fazendo com que sentisse vontade de se isolar ainda mais.
Respirou fundo e foi até a cozinha; encheu o regador de plástico e voltou para a varanda. Regou as plantas, demorando-se mais do que o normal em cada um dos vasos, arrancando folhas secas. Quis molhar as marantas que estavam na parede, mas não conseguiu alcançá-las. Tentou subir na espreguiçadeira, arrastando-a na direção do vaso, mas recuou. Um súbito mal-estar fez com que começasse a respirar de forma ofegante, e teve medo de que mais uma crise o levasse de volta às clínicas psiquiátricas. Retornou à sala, olhou para a mesa e não viu o cigarro de maconha. Por um segundo, teve a impressão de que o deixara no quarto. Fumava logo ao acordar na esperança de que as crises se tornassem cada vez mais espaçadas, até o momento em que desapareceriam, segundo lera numa revista científica.
Acendeu o abajur e começou a abrir as gavetas da cômoda, sentindo-se frustrado ao notar que não havia nada dentro delas, oscilando entre lembrar onde deixara o cigarro e a percepção de que já tinha fumado. Sentou-se no chão, e por um longo tempo ficou sem se mexer, olhando para as frestas do piso.
Desde que a filha o surpreendera, num dia em que se sentia muito mal, decidiu não deixar nada à vista, como se o contrário disso o incriminasse aos olhos dela. Vivia sozinho e na idade em que estava não tinha motivos para esconder seus hábitos, mas fazia-o por conveniência.
Levantou-se, abriu as gavetas do armário e revirou as roupas. Sem que o encontrasse, procurou-o na adega climatizada, cômodo que outrora era o quarto da filha e que por ele fora muitas vezes modificado.
Finalmente encontrou, dentro de uma sereia de vidro que ficava sobre o mármore da sala, o que restara do cigarro, acendendo-o mais uma vez. Sentou-se na cadeira e abriu o Moleskine onde costumava escrever, passando a mão pelo rosto, sentindo tudo ao seu redor girar.
Nas primeiras páginas, liam-se versos de poetas modernistas, parágrafos ilegíveis escritos sem nenhuma ordem. Certas frases justapunham-se formando desenhos, rostos de pessoas conhecidas, esculturas e reproduções malfeitas dos quadros de Matisse. Alongava-as até a margem, colorindo-as com tinta guache, o que dava à folha um caráter lúdico e ingênuo.
As duas últimas folhas estavam amassadas por incansáveis correções a lápis, mas era possível ver o desenho que nelas se formava — o rosto de um adolescente.
Marcou-as com a fita de cetim e levantou-se para atender o interfone. Voltou a sentar-se e olhou, com um orgulho autêntico de quem conhece a sua arte, para a lousa de vidro em que estavam as capas dos seus principais trabalhos como quadrinista, especialmente aqueles que considerava suas obras-primas.
Iniciara a carreira na Folha de São Paulo, fazendo charges. Anos depois, seria responsável por criar a primeira coluna de crítica de arte do jornal, que aos poucos perdera espaço, sem que ninguém se desse conta, dando lugar à seção de anúncios imobiliários. Àquela época, além do salário de chargista, sustentava-se com o dinheiro das encadernações que confeccionava no centro da cidade, ao mesmo tempo em que, silenciosamente, se dedicava a compor as primeiras histórias que mais tarde seriam publicadas em livro. Levou mais de dez anos, entre a desconfiança e o desânimo, até que conseguisse publicar a história de um casal de retirantes, inspirada nos livros de Graciliano Ramos. A recepção superou suas expectativas — chegou até mesmo a pensar, num raro momento de sinceridade, que não havia propósito para tal cerimônia, mas tomou-a como parte necessária a algo que o elevaria, ainda que a considerasse injusta —, e em razão dela recebeu alguns dos principais prêmios culturais do país, fazendo com que tivesse voz junto aos intelectuais de seu tempo. Também o Presidente da República, no comovente discurso de sua terceira e última posse, citou a obra, apontando semelhanças com sua vida. O Brasil tinha um verdadeiro artista, que não recuava ante os problemas socias.
Viam-no em comícios, empunhando a bandeira do partido e discursando sobre a Revolução Cubana. Era admirado por cantores e artistas; frequentava a Esplanada dos Ministérios com absoluta liberdade, presente na maior parte dos eventos que o Ministério da Cultura organizava. Apresentações em que indígenas mostravam danças tradicionais, reunindo deputados e senadores ao lado de rappers e músicos independentes. No Salão Negro, discutia-se literatura periférica; e as longas palestras sobre linguagem neutra, em que ele era o principal articulador e figura imperiosa, eram transmitidas pela TV Cultura. Em verdade, não havia tema: entretinham-se com a mais pobre e frouxa discussão. Preocupava-se mais em ser visto e comentado do que pela natural necessidade de se expressar de forma verdadeira. Muitas vezes, ao ver que, apesar dos seus esforços, perderia o raciocínio, elogiava os sucessivos investimentos culturais que o presidente incentivava, para enfim passar a vez a alguma mulher da mesa, não sem antes discursar sobre a importância das mulheres para a literatura brasileira contemporânea. Aplaudiam-no, e os aplausos eram sua glória.
O rosto de feição melancólica, aspecto que desde a infância o constituía, estava agora demudado pelo cansaço. Sentia-se fraco e angustiado por uma carência que desconhecia. Tinha consciência de que se dedicara com toda sinceridade à arte de ilustrar; considerava sua obra pronta e em razão disso se orgulhava. Agora, voltava-se a uma nova arte, como se inserisse na sua biografia um caminho pelo qual pudesse corrigir equívocos do passado. Sentia-os como o espinho em que pisamos e que horas depois vemos cravado na carne.
Passou a se dedicar, como colunista do Jornal Rascunho, à literatura, escrevendo haicais e microcontos. Enviava-os na expectativa de receber elogios que ressaltassem suas qualidades literárias. Tal expectativa o afligia; se ela não se realizasse, ruminava pensamentos que nada tinham a ver com a realidade, afastando-o de si mesmo, como acontece com os neuróticos.
Ela abriu a porta e passou pelo mosaico, olhando-o com uma fixação quase doentia. Sentou-se no sofá e pegou um dos gatos que estavam deitados sobre a manta indiana. O outro, bem menor, tinha um pequeno colar de esmeralda cuja pedra se afundava nos pelos, e seus olhos eram de cores diferentes. O esquerdo, azul; e o direito, cinza.
— É o meu conto mais recente — e, curvando-se, entregou-lhe uma edição da Rascunho cuja ilustração da capa era um machado sujo de sangue.
Folheou a revista e riu da foto de um homem, que se dizia poeta, segurando uma garrafa de whisky vazia.
Pensou em regar as marantas e olhou rapidamente para ela; perto dela se sentia melhor, como se a simples presença de uma pessoa estranha lhe desse o ânimo que faltava para viver.
— Tua filha não vem? — perguntou, acariciando o gato.
— Não.
Apoiou os cotovelos na mesa e, com uma tesoura cega, cortou a seda lentamente, observando as tatuagens do braço direito.
— Posso pegar uma garrafa de Brunello?
Assentiu, movimentando a cabeça.
Abriu a porta da adega e tirou duas garrafas do suporte mais alto. Em cima do frigobar, havia um cantil de aço envolvido por uma tira de couro, sobre a qual se estampava um escorpião. Pegou-o, escondendo-o no bolso.
— Preciso ir. Vim para uma visita rápida, saber como você está, desejar feliz ano novo…
— Fica mais um pouco — disse, acendendo o cigarro.
Passavam horas apenas conversando, ainda que não se entendessem.
— Não posso. Tem um cliente me esperando em Ipanema. Volto na semana de carnaval, preciso tirar umas férias.
Sabia muito bem o real significado daquelas “férias”. Todo fim de ano participava de eventos onde servia de acompanhante a empresários.
Não percebeu quando ela saiu. Escrevia trechos de Nietzsche numa folha em branco, como se nela ressumasse sua angústia, agora intensificada pela ausência de um ser a quem amara mais que todos.
Apagou o cigarro e levantou em direção à varanda. Observou, indiferente, a apresentação de uma cantora num dos palcos montados na praia, e em seguida arrastou a espreguiçadeira, olhando para os vasos em que estavam as marantas.
Na sala, estava um de seus últimos trabalhos, destacado por uma moldura branca. Nele, usou estilo cubista em mosaicos vermelhos, alternando o conjunto do rosto com cores claras, numa tentativa de imitar a composição dos quadros de Romero Brito.
Era o retrato fiel do neto quando criança.
— Vô, aquela! — e apontou para a girafa de pelúcia que estava em uma das prateleiras.
Segurou-a com uma alegria leve e cândida, lembrando-se de outro bicho de pelúcia, que para ele começava a diluir-se no torvelinho de imagens e sensações vindas da primeira infância. Por muitos anos, viveu apegado a um pequeno leão, presente da mãe — não dormia sem que o tivesse ao seu lado. Grudava-o ao rosto, e num movimento em que se balançava dentro do berço, fazia-o oscilar de um lado para o outro, entre o travesseiro e o cobertor, apertando os olhos de cerâmica e passando os fios de lã pelos lábios. Era um dos poucos brinquedos de que ainda se lembrava, muito mais pela forte impressão que deixara, de duradouro encanto, que o acompanharia até a velhice.
Olhou para o avô e desviou o rosto para o teto. Refreou a custo o entusiasmo, lembrando-se de que já não era mais uma criança. Recém completara doze anos, e à medida que crescia se via cada vez mais familiarizado com o mundo, como se vagarosamente se lhe suspendessem as cortinas de um palco em que se representava uma tragédia, a qual não entendia, ainda que o drama ali representado o comovesse. Muitas coisas já não eram mais estranhas para ele.
Por um momento, envergonhou-se. Não queria que o avô o visse como mal-agradecido, e lembrou-se da mãe, que o orientava a receber de bom grado o que lhe dessem com carinho, sobretudo em relação às pessoas próximas.
Artista plástica, vivia sozinha com os filhos. Era orgulhosa a ponto de, por muitos anos, não permitir que o avô convivesse com os netos; o acinte seria ainda mais doloroso se por acaso viesse a receber dele, em razão do divórcio, alguma ajuda, tendo em vista que não hesitara ao humilhá-la sem dúvida de consciência, ao demonstrar desdém em relação ao seu casamento. Perguntava-se constantemente como pôde permitir que a filha se relacionasse com uma pessoa tão promíscua. Certa vez, entrou na sala com uma camisa de regata do Vasco, pouco antes da final da Libertadores daquele ano. Apertou-lhe a mão sem o olhar, ignorando-o pela simples vontade de mostrar-se indiferente, como se com isso se elevasse a uma posição superior. “Tudo bem?”. Era ainda mais difícil para ele ouvi-lo, como se o seu modo de falar, de um sotaque pegajoso e carregado de gírias, resumisse o entendimento que tinha do sujeito. Evitava sentar-se próximo ao genro; e nos momentos em que ele tentava se aproximar, puxando conversa, respondia com frases curtas. Em verdade, repugnava-lhe a cor da pele, para onde convergia todo seu desprezo.
Tirou-lhe calmamente a girafa das mãos e disse, lembrando-se da neta:
— Sua irmã vai gostar.
Sentiu-se aliviado como se o avô lhe arrancasse um peso das costas.
Atravessaram o passeio e foram para o reservatório em que jacarés-de-papo-amarelo habitavam junto às tartarugas-da-amazônia. Ventava, e as astromélias vermelhas perdiam o viço sobre a rocha, rente a dois funcionários que distribuíam porções de alface e pedaços de frango. Enquanto os jacarés os engoliam, a réstia de sol que o fim de tarde criava estendia-se sobre a superfície da água, espelhando-lhes os rostos.
Levantou-o acima das pessoas, apoiando-o ao vidro da cúpula. Perguntou ao avô por qual motivo os jacarés não comiam as tartarugas, o que ele não soube responder. Trouxe-o de volta ao chão e colocou-o ao seu lado. Contornaram o reservatório dos hipopótamos e foram para o viveiro das aves.
Estava bem próximo do avô; tinha medo de se perder. Durante o tempo em que andaram pelo zoológico, não conseguiu se manter relaxado. Sentia uma mistura de sensações novas; de tudo que estava acostumado a ver, os animais se lhe apareciam como um elemento novo e estranho, incomodando-o, ao mesmo tempo que a surpresa da descoberta o estimulava a buscar outras, que o surpreendessem ainda mais. Inspirava-o a presença do avô. Na ausência paterna, era a quem se afeiçoava, erigindo pouco a pouco no seu espírito o senso estético — tão necessário às almas sensíveis.
Um pavão rodeava, com a plumagem recuada, um tronco de árvore fendido, dentro do qual havia frutas e sementes. As penas eram verde-escuras, assim como o pescoço, destacando os pequenos e luminosos olhos da cauda. Recuava alguns passos e avançava, com o peito erguido na direção dos visitantes. Ensejava trotes curtos em volta da casinha de palha, de onde era possível ver a cidade.
No viveiro das cobras uma píton vagava tranquilamente pelo reservatório, elevando parte do corpo em que se revelava o aspecto brilhante e opaco das escamas. No canto esquerdo, colada ao vidro, estava a píton albina, enrolada em si mesma. Leu a placa com as inscrições latinas para o neto e depois, subindo a rampa lateral, foram para o lago onde habitavam os flamingos.
O sol caía vagarosamente, refletindo sobre o lago a imagem comum aos melancólicos fins de tarde. A plumagem rosa-avermelhada dos flamengos suavizava o vermelho escarlate do pescoço, cuja intensidade lembrava a cor da romã. Virou-se e olhou para o neto, vendo-o aproximar-se da grade; lendo-lhe as inscrições da placa, notou que o seu rosto se tornava vermelho, como se se transfigurasse em um anjo de fogo. Pegou o bloco de notas e começou a desenhá-lo sob a insolação insistente que parecia vir das águas…
Anos depois, comprou, numa antiga loja de azulejos e pisos no centro do Rio de Janeiro, pastilhas de cerâmica vermelhas e rosas; além de rejunte e cola de contato à base de água. Na rua da Quitanda, comprou também uma moldura média cujas bordas eram pretas.
Reproduziu em uma cartolina o rosto que desenhara no bloco de notas, ampliando-o e corrigindo-o de modo a torná-lo cada vez mais parecido com o rosto do neto, esforçando-se para lembrar-se dele, uma vez que se diluía na memória a cena do zoológico, como se o vermelho, aos poucos, transmudasse a uma sombra carmesim seus pensamentos. Desenhou pequenos flamingos em volta dele — seria preciso comprar pastilhas menores para compô-los — e, molhando as mãos, espirrou água em volta do papel, para depois colori-lo com tinta guache, na intenção de criar um esboço para que mais tarde pudesse desenhar uma caricatura.
Deixou a cartolina sobre a mesa da sala e pegou a moldura, espalhando as pastilhas pelo chão. Organizou-as, separando-as por cores, fixando nos olhos castanhos do neto uma peça vermelha e outra rosa, limpando o rejunte com um pano seco. Trabalhou até se sentir na iminência de uma nova crise de ansiedade; constatou que já não tinha mais o mesmo controle emocional indispensável ao trabalho metódico, ou a habitual indiferença de quem trabalha até esquecer de si. Manuseava as pastilhas e o rejunte na expectativa doentia de que pudesse morrer a qualquer momento.
Lavou as mãos e bebeu um copo d’água; abriu as vidraças da varanda e deitou na espreguiçadeira. As marantas ainda não estavam suspensas na parede; conservavam-se em um vaso de cerâmica oriental, cujas figuras representavam lutadores de sumô ensaiando posições de ataque no fundo azul cobalto, ao passo que A Grande Onda de Hokusai, cujas cristas assemelham-se à labaredas, percorria o bocal rosa.
O vento do mar encheu-o de uma triste esperança. Acendeu um cigarro e olhou para a orla de Copacabana até sentir tédio.
Demorou um mês para que o mosaico ficasse pronto. Incomodava-o a ideia de deixá-lo junto aos demais trabalhos. Preferiu pendurá-lo numa parede isolada, distante de qualquer outra coisa que o ligasse ao passado. Emoldurou a caricatura e fixou-a ao lado das marantas.
Era uma tarde ensolarada de carnaval. O terceiro bloco do dia desfilava tocando marchinhas pela Avenida Atlântica. Fechou as vidraças da varanda, ligou o ar-condicionado da sala e colocou no Spotify uma playlist de Secos & Molhados.
— Seu neto não vem? — perguntou, abrindo a garrafa de whisky que tirara da adega.
— Não sei.
Cruzou as pernas e suspendeu parte do vestido, deixando à mostra o volume da coxa. Passou a mão sobre ela, avançando cada vez mais, no momento em que lhe segurou o pulso.
— Você nunca me tocou assim.
Ouviu-a com indiferença, apertando-a.
— Você não é uma puta? Não consegue agir como uma puta?
Segurou-o com as duas mãos, forçando-lhe o braço, e levantou-se rapidamente em direção à varanda. Acompanhou-a e tirou-lhe, com um tapa, a garrafa das mãos, para em seguida tentar sufocá-la. Desmaiou ao lado dos gatos, batendo a cabeça no vaso de cerâmica. Não estava morta; via-lhe a respiração incerta, a contração da musculatura.
Rodeou a varanda e a sala, olhando ora para a caricatura, ora para o mosaico, passando por cima dela sem que a notasse, ouvindo o som abafado dos tamborins e repiques que vinha da Avenida Atlântica. Na semana anterior, comprara novos ganchos, trocando os vasos antigos por peças portuguesas, fixando-as por toda parede. Multiplicara o número de plantas na varanda, povoando-a de novas espécies, alternando vasos de plástico dos mais vagabundos com peças raras e luxuosas.
Parou entre a televisão e o sofá. Suava muito; a camisa e o short estavam encharcados. Não conseguia se orientar dentro da própria sala — era como se estivesse em um cômodo vizinho. Passou a mão pela testa e abriu a adega, examinando a temperatura ambiente. Voltou-se a ela, olhando com interesse a perna nua, na qual estava a marca das unhas. Em seguida, subiu na espreguiçadeira, afastou os vasos em que estavam as marantas e pegou a moldura, retornando à sala.
O interfone tocou. Ouviu a voz do porteiro. “É o senhor Ricardo”. Pensou em dar-lhe a caricatura; o trabalho feito a duras penas ficaria com ele. Ademais, precisava se livrar daquilo que considerava um entulho do passado.
Viu-o sentado na recepção. Estava sozinho; não trouxera a esposa. Levantou-se e andou na direção do avô como fosse cumprimentar um estranho. Não reparou em seu evidente cansaço; não queria sujeitar-se ao incômodo de vir a compará-lo àquele homem que o acompanhou durante toda sua infância.
— É para sua mãe — disse, quase sem forças para erguê-la.
Olhou-a, trocando-a de mão, observando o rosto vermelho-claro.
— Isso não é arte.
Recebeu as palavras do neto com a honra abalada, e calou-se num ar de retraída tristeza.
Despediram-se com um rápido abraço, friamente, como se um período de seis anos — tempo em que não se viam — se resumisse a seis dias; e viu-os afastar-se como dois espectros de si mesmos.
Voltou ao apartamento e encontrou-a, seminua, sentada ao lado do sofá, o mosaico sobre as pernas, arrancando as pastilhas com uma espátula.
Atravessou o hall de entrada e sequer cumprimentou o porteiro. Não conseguia ouvir muito bem a marchinha que tocava, a cada passo irritava-se ainda mais — sentia vontade de esmurrar qualquer pessoa que encontrasse à sua frente. Devia ter rompido relações com a família há muito tempo, esquecer a mãe e sobretudo dar-lhe motivos para que ela também o esquecesse, mas desde que voltara da Europa sentia necessidade de agradá-la — motivo pelo qual, a contragosto, fora buscar a moldura —, como se com isso reparasse os frequentes desgostos e aborrecimentos que lhe dera. Não por um dever moral, sentimento que nele era vago e impreciso, mas por uma necessidade, que lhe era externa, de ao menos tentar ser justo. Estava certo de que aquela tinha sido a última vez que vira o avô. Ao tomar consciência do que ele se tornara, um pseudointelectual velho e presunçoso, não obstante o dinheiro e a fama, e por sabê-lo racista e misógino, a única coisa que se admitiria em relação a ele era o esquecimento.
O bloco avançava pela Avenida Atlântica. Pôs os pés na calçada, e, segurando a moldura, enfiou-se pela multidão. O suor e o cheiro de urina deixavam-no ainda mais irritado. Passou a mão pelo rosto xingando o país e as pessoas, um bando de selvagens.
Rente à fachada de um prédio, um homem vendia cerveja. Encostou a moldura na parede e comprou uma latinha. Esvaziou-a em poucos segundos, e logo pediu outra. Não demorou para que sentisse o efeito do álcool. Não ficava eufórico ou desinibido, e sim sonolento. A poucos metros dele, adolescentes bebiam vodka, passando a garrafa de mão em mão.
— Toma! — disse, entregando-lhes a moldura.
Duas meninas fantasiadas de mulher-maravilha suspenderam-na e rebolaram cantando Chiquinha Gonzaga.