– por Christiano Galvão
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“O olho é a lâmpada do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado. Se teu olho estiver doente, todo o teu corpo estará nas trevas. Se a luz que está em ti são trevas, quão grandes serão as trevas!”
(São Mateus, 6: 22-23)
São noturnas as lembranças mais antigas de minha vida. Por vezes me ocorrem outras, mas tão vagas que chego a duvidar de sua realidade. Nestas – que de uma lonjura de quarenta anos ainda consigo avistar – há também imprecisões, e nunca pude lhes dar melhor claridade. Nem sei se seria possível. Foram as noites da minha infância em que a escuridão se me impôs com uma nitidez quase opressiva.
Eu tinha oito anos, minha mãe adoecera e meu pai teve de acompanhá-la durante sua internação. Deixaram-me no sítio onde minha avó materna – viúva e já caduca – morava com uma irmã solteira, a única que lhe restava, e que, mesmo sendo a caçula, era igualmente idosa. Esta cuidava daquela, e agora cuidaria de mim. Chorei, por óbvio. Ficaria ali um tempo indefinido, separado não somente dos meus pais, mas também da pouca civilidade que a energia elétrica nos propiciara, como a televisão da praça pública, quase sempre ligada, onde a qualquer hora do dia ou da noite eu encontrava outras crianças. Seria uma custosa privação. Quanto a isso meu pai me deixara mais prevenido do que conformado. Nem podia ser de outro jeito. O recuo temporal era drástico: na penúltima década do século XX, os sítios sertanejos, ainda na expectativa da eletricidade, permaneciam no atraso sombrio do século precedente.
Não obstante, minha mãe tentou me alentar dizendo da afetuosa solicitude daquela tia-avó que doravante seria minha tutora; e à qual eu devia corresponder com o mesmo afeto e não menos obediência. Acatei tal recomendação sem dificuldades, pois aquela tia, então uma moça envelhecida, com perto de oitenta anos às costas, nada tinha do azedume que dizem derivar da inexperiência erótica. Pelo contrário, ela era capaz de um amor tão gratuito que em nenhuma outra idade da vida eu voltaria a receber atenção mais sincera e constante. Assim que cheguei ao sítio ela se apressou em me arranjar companhias, fazendo-me familiar dos cachorros e gatos que, naquele ermo, eram seus vigias e amigos mais chegados. Também conheci gente, outros sitiantes das adjacências, aos quais fui apresentado como o novo vizinho. Suas casas, porém, ficavam a intervalos tão espaçados, tão remotos, que me pareceu descabida a proximidade amistosa conotada por esta palavra. Entretanto, indo ou vindo, esses vizinhos nos visitavam. Exceto à noite. Fosse pela idade avançada, pelo hábito consolidado, ou pelo simples fato de nada mais terem a fazer, minhas parentas se recolhiam tão logo o dia começasse a declinar, apagando as cores e os contornos do mundo. Na primeira noite de minha estadia, porém, na luz esmaecida do poente, minha tia-avó, munida de uma vara comprida, saiu a bater os matos ao redor da casa para afugentar as corujas, os anus, os bacuraus, ou qualquer outra ave cujos piados lastimosos ressoassem como agouros de morte. E aquela preocupação deixou-me a suspeita de que, para aquém da moça, ela era antes uma criança envelhecida que, tanto quanto eu, receava a treva iminente. A diferença é que ela sabia como se precaver, eu ainda não.
Fixado no vão da porta, olhando de relance para dentro da casa já invadida pela penumbra, mal percebendo o vulto silencioso de minha avó que começava a se inquietar, eu esperei ansioso o final daquela ronda. E não demorou muito. Sempre diligente, minha tia regressou às pressas para nos tranquilizar acendendo dois candeeiros: um na sala, outro na cozinha. A casa clareou o quanto a luz pôde. E, mais iluminada, tornou-se ainda mais soturna.
Um rádio de pilha foi ligado para que durante o jantar ouvíssemos o Ofício Divino, mais especificamente a hora litúrgica das Vésperas. Embora a sintonia fosse ruidosa, intermitente, as vozes capitadas deram a impressão de haver mais gente na casa. A certa altura da recitação, que era uma cantilena lúgubre, de notas arrastadas, ouvi o coro dizer:
“Aos servos que vos louvam
cansados do labor
as trevas não envolvam
pedimos, ó Senhor!…”
Tanto bastou para que a noite adquirisse peso e densidade, como uma sombra espessa, uma bruma negra e abafada que descera sobre aqueles campos. Já à mesa, com os olhos fixos no prato, eu comia menos atento àquele ofício do que aos murmúrios de minha avó, que repetia as palavras finais de cada rogo como um eco desconcertante. Ao final da refeição o rádio foi imediatamente desligado para não gastar as pilhas, e uma súbita quietude perpassou todos os recintos. A tia mandou que minha avó e eu fôssemos para junto do candeeiro da sala; depois se retirou carregando o outro para os confins do quintal onde ficava o tanque de lavar louça. Com a metade dos cômodos apagados, pareceu-me que as trevas tinham avançado sobre a casa, deixando-a ainda menor e mais abafada.
Na expectativa de alguma brisa, eu abri o postigo da frente e logo um retângulo de luz se alongou pelo terreiro deitando um esplendor mortiço na ramagem circundante. A silhueta de um cacto, ou talvez de alguma árvore baixa e retorcida, despontou como alguém à espreita. Contemplei aquilo por algum tempo, paralisado, até que uma inesperada gargalhada me sobressaltou. Era minha avó que estava num daqueles momentos retrospectivos em que a demência lhe trazia imagens de horas antigas, reavivando emoções alegres ou tristes, fazendo com que ela repetisse frases que eram destroços de conversas já ocorridas, e cujos interlocutores há muito tinham deixado de existir. Completamente atemorizado, descolei-me da porta e varei os cômodos escuros, dando encontrões contra a mobília, procurando às apalpeladas o rumo do quintal onde a minha tia ainda estava.
Fui encontrá-la numa atitude igualmente suspicaz. Tendo a louça aos seus pés, já limpa e enxuta, ela erguia o candeeiro na direção do matagal resseco que as aragens noturnas balançavam. E tal como eu, contemplava imobilizada um ponto que parecia fasciná-la, como se tentasse localizar algum som ou forma que não compreendia.
Indeciso entre ficar no limiar da porta, com a escuridão e os solilóquios de minha avó atrás de mim, e avançar para a margem da outra escuridão que a minha tia então encarava, eu só tive coragem para chegar a meio caminho, onde parei imitando o mesmo gesto expectante. Mas foi uma parada breve. Voltando a si, vexada com a minha presença, minha tia recolheu a louça do chão e, ainda de costas, disse eu que não devia estar ali, exposto aos ventos ruins da noite. Uma ligeira apreensão que pude pressentir em sua fala acabou por me contagiar. Estávamos ambos com medo. Talvez ela soubesse do quê. Eu, porém, não quis saber.
Dentro de casa, ela cuidou em fechar todas as portas, e depois de deitar minha avó, chamou-me para que rezássemos a última hora litúrgica do Ofício Divino, as Completas. Se ela tinha nisso o propósito de me sossegar – ou de sossegar-nos – não soube proceder da maneira mais adequada. De início, para não gastar o querosene, ela apagou os candeeiros, reduzindo toda a luminosidade da casa à chama da única vela do oratório, que então tremeluzia sob o sopro ofegante de nossas preces iniciais:
Agora que o clarão da luz se apaga,
a vós nós imploramos, Criador:
com a vossa paternal misericórdia,
guardai-nos sob a luz do vosso amor…
Mas como por instinto, para que o clarão da luz não se apagasse tão depressa, diminuímos o ritmo da litania e da respiração. Logo a chama se aquietou, ficou mais acesa, e foi quando, pelo canto do olho, eu vi nossas sombras crescerem contra a parede. Espantado, acheguei-me à minha tia, que num gesto de terna prontidão deitou um dos braços sobre meus ombros – e assim, sem querer, justapôs nossas sombras num mesmo vulto descomunal, dando uma medonha corporeidade à escuridão que parecia agora prestes a cair sobre nós. Arrepiado, incapaz de qualquer outro apelo além da reza, continuei:
Coragem concedei-nos nesta vida,
as nossas forças renovai,
da noite a pavorosa escuridão,
com vossa claridade dissipai…
A coragem suplicada nestes versos não se mostrou proporcional ao fervor com que os dizíamos. E nesta estrofe a minha tia sobresteve como que alarmada pelo rebote de alguma cogitação. Daí a pouco se ergueu e, sem reparar na angústia que em mim se agravava, saiu dizendo que se esquecera de soltar os cachorros. Sem ânimo para segui-la e ultrapassar a segurança do curto raio de alcance da luz, resignei-me àquela solidão momentânea, acompanhando-a com olhos e o coração contrariados.
Desaferrolhando a porta da conzinha com gestos bruscos que confirmavam certa inquietação, minha tia parou na soleira, tomou altura às estrelas e prosseguiu desaparecendo cinco ou seis passos depois. Resguardado pelo brilho tímido da vela, eu estiquei a cabeça um pouco para fora, bati as pestanas meia dúzia de vezes para me acostumar àquela treva, e logo a vi ressurgir acompanhada pelos sabujos alvoroçados. Percebi que os latidos daqueles cães haviam restituído o ânimo e a cor do semblante de minha tia. Mas antes de entrar e trancar a porta, ela os dispersou com um longo assovio que era o seu comando de vigilância.
Regressando ao oratório para completarmos as Completas, ela novamente me afagou e ajoelhou-se abraçada comigo. Dessa vez eu não quis me virar e rever a presença ameaçadora que nossas sombras unidas configuravam. Procurei me manter concentrado no que dizia o versículo final do ofício:
Verão a sua face e o seu nome resplandecerá sobre suas frontes. Não haverá mais noite: não se precisará mais da luz das lâmpadas, nem da luz do sol, porque o Senhor vai brilhar sobre eles e reinarão por toda a eternidade. Amém.
Confesso que senti uma viva consolação. Todavia breve. Apagada a vela, a noite enfim triunfou e, até que viesse a deixar de existir – conforme estava predito nas Completas – ela me pareceria eterna. Deitado ao lado de minha tia, que já dormia, ou fingia dormir para me impor confiança, eu vivenciei as horas mais aflitivas das quais ainda posso me recordar. Sucumbidos numa tenebrosa quietude, meus ouvidos se aguçaram para compensar a impotência dos olhos; e de tal sorte que eu era capaz de perceber qualquer rumor, alguns próximos, outros distantes, alguns reais, outros… talvez! Mas desejei ficar mouco, pois de minuto a minuto escutava silvos, piados, um contínuo bater de asas, como se todos aqueles pássaros aziagos, repelidos por minha tia ao entardecer, voltassem agora num desagravo, para se aninhar sobre o nosso telhado.
Não sei se ela os ouviu, se os ouvia. Só sei que se mantinha naquele sono duvidoso, talvez para não dar vazão ao medo. No entanto, o medo já me tomara: ora eu ouvia os estalidos de galhos se partindo, ora o rojar de pedras sob passos esquivos. Levantando-me, espiei pela fresta da janela e divisei um dos cães apoiado no rebordo do alpendre, desconfiado, pronto para ladrar contra aqueles ruídos furtivos e insituáveis.
Não me iludia. Cometi então a ousadia de reacender o coto da vela, e foi quando pude constatar que minha tia de fato adormecera. Mas não a minha avó, que outra vez me fez sobressaltar dizendo: “Mesmo as trevas para Vós não são escuras!…” Parecia uma réplica tardia às orações das Completas, ou até mesmo um esconjuro que ela balbuciava ao resvalar para o sono. Fosse o que fosse, aquelas palavras me atingiram e ficaram a reverberar em meus ouvidos por minutos, por horas a fio. Voltando para a cama, exaurido por uma vigília tão agoniada, deixei-me tranquilizar pela ideia de que Deus estava do outro lado da noite, que nos via. E, conquanto se mantivesse mudo e afastado, Ele podia irromper ali a qualquer instante, como uma luz transfigurante e protetora!… Mesmo as trevas para Vós não são escuras… Tal sentença se converteu num estribilho de prece, que fui repetindo em murmúrios cada vez mais confiantes, mais hipnóticos. O medo e os olhos foram esmorecendo, a voz foi se partindo descompassada, e o corpo deixando que o sono enfim o dominasse. Escorando então as pálpebras com toda a força que pude, voltei-me para a chama já fraca da vela, fitei-a como uma brecha que se abria para a praça iluminada de minha rua, e, antes de tombar adormecido, vi-me livre, escapulindo por ali, todavia consternado por não poder levar minha avó e a minha tia.